Des Contos: Quem, eu?

watEnquanto os últimos raios de sol abandonam o horizonte, uma figura solitária contempla seu destino. Do alto de um íngreme penhasco banhado pela furiosa dança das ondas do mar revolto, seus pés perigosamente próximos da borda, um homem severamente marcado pelas agruras da vida reúne a coragem necessária para arremessar-se rumo à morte certa.

O turbilhão de imagens e sentimentos que ocupam sua mente finalmente encontra a paz da certeza da única solução possível:

“Hã? Não! Eu não quero me matar!”

Nada além de um repentino ataque de covardia. Após vacilar por alguns momentos, prepara-se para suas últimas palavras de sua cruel existência:

“Eu não vou pular! Eu nem sei por que diabos eu quero me matar!”

Teimoso, esquece por alguns momentos de todos os problemas que o consumiram nos últimos anos. A família em pedaços, a carreira em declínio…

“E quem te garante que eu não posso resolver isso? É muito precipitado sair se matando assim… Eu mal começo a existir e você já quer acabar comigo?”

Ele não conseguia resolver seus problemas.

“Ah, isso foi muito preguiçoso da sua parte. Eu não mereço nem uma mísera chance de ver quais são meus problemas? Vai ver você que é derrotista.”

Exibindo mais um dos sintomas da sua incessante incapacidade de enxergar a realidade, ele decide buscar uma dose extra de incentivos para o suicídio. Para tal, bastaria retornar a sua residência, foco de constantes frustrações conjugais e de um relacionamento fadado ao fracasso.

“Agora sim. Aquele carro estacionado ali é meu?”

Seguindo até seu antigo e problemático veículo, lembra-se de todas as dificuldades financeiras que tornaram sua vida insuportável desde que perdeu o emprego.

“É… é meio velhinho, mas até que tem seu charme. E o que importa é que… opa… funciona!”

O carro, como era de se esperar, não dura mais que alguns segundos para engasgar e morrer. Sem dinheiro para um seguro e sem nenhum conhecimento de mecânica, estava completamente à mercê da escura noite numa isolada e vazia estrada.

“Eu hein, você é muito pessimista… Vem cá, eu tenho nome?”

Asdrúbal sentia-se ainda mais sozinho do que o de costume naquela situação.

“Asdrúbal? Não é um nome muito comum, mas até que tem uma certa pompa… Asdrúbal… É… Poderia ser pior. Ei, vem vindo um caminhão no horizonte! Deixa eu pedir uma ajuda… EI!”

Ele estava prestes a ter mais uma prova de que o mundo é guiado pelo egoísmo e desinteresse. Seria um golpe fatal para Asdrúbal.

ASDRÚBAL: “O caminhão está parando!”

As intenções do caminhoneiro com aquela parada ainda não estavam claras para nosso abatido protagonista, mas logo se mostrariam muito mais malignas do que qualquer um poderia crer:

CAMINHONEIRO: “Precisa de ajuda, amigo?”

ASDRÚBAL: “Caiu do céu, colega! Essa lata velha pediu aposentadoria por invalidez justo aqui, pode?”

CAMINHONEIRO: “Hahaha… Já tive um desses. Estou meio em cima do meu horário, então não posso te ajudar a consertar. Mas estou indo pra cidade se quiser uma carona.”

E essa carona seria o começo do fim. Depois de alguns minutos dentro da boléia do caminhão, algo chama a atenção de Asdrúbal:

ASDRÚBAL: “Minha casa!”

CAMINHONEIRO: “Olha só, bem no meu caminho… Um pouco de azar, um pouco de sorte, a gente só não vai escapar mesmo é da morte.”

ASDRÚBAL: “Hã?”

CAMINHONEIRO: “Minha avó dizia isso. Quer dizer que não se deve ficar reclamando da vida porque as coisas sempre se acertam…”

Asdrúbal desce do caminhão e segue em direção à entrada de sua casa, pronto para encarar a terrível realidade que o esperava.

ASDRÚBAL: “Nem me deixou agradecer? Mas ele disse uma coisa certa… as coisas sempre se…”

Sem dar tempo para seus inúteis devaneios, a porta da frente abre-se abruptamente, revelando a rechonchuda silhueta de sua intempestiva esposa.

ESPOSA: “Onde você estava? Eu estava morrendo de preocupação!”

ASDRÚBAL: “Desculpa, amor, o carro quebrou!”

ESPOSA: “O que importa é que você está bem. Me dá um beijo!”

Eu já mencionei que a silhueta era rechonchuda?

ASDRÚBAL: “Me amarro numa gordinha! Vem dar um chamego no seu homem!”

Após os dois adentrarem a decadente residência assolada por dívidas, ele escuta sons vindos da direção do quarto do casal. Surpreso, aproxima-se da porta apenas o suficiente para ver um outro homem deitado na cama.

ASDRÚBAL: “Tem mais alguém com você?”

ESPOSA: “Meu irmão, faz mais de uma semana que ele está aqui.”

ASDRÚBAL: “Na nossa cama?”

ESPOSA: “Ah, a única TV da casa está ali, deixa ele se distrair um pouco vendo o time dele jogar, né?”

ASDRÚBAL: “É… Está certo. E aí, cunhadinho, tudo bem?”

CUNHADO: “Tudo! Depois do jogo eu quero falar com você, acho que te arranjei um emprego lá na firma!”

ASDRÚBAL: “Um pouco de azar, um pouco de sorte… Hahaha!”

Forçados a morar numa perigosa vizinhança pelas constantes dificuldades financeiras, os residentes viviam em constante risco de assaltos violentos. O som de vidro se partindo ecoa pela casa, chamando a atenção de todos.

ASDRÚBAL: “Isso já é apelação! Você nem se deu ao trabalho de conhecer a minha vida antes de resolver me matar… Você escolheu a pessoa errada para a sua história, admita de uma vez por todas!”

Fora apenas uma bola de futebol chutada por um garoto desatento. Os pais da criança, amigos da família, comprometeram-se prontamente a reparar os danos.

ASDRÚBAL: “Melhor assim. É melhor fazer amigos do que inimigos… Essa história não pode ter um final feliz?”

Esse é o problema, Asdrúbal. Eu não posso mais te dar um final feliz.

ASDRÚBAL: “E por quê?”

Porque você fugiu do começo da história. Eu preciso de um começo dramático para chegar num final de redenção, glória e felicidade. Você deveria ter sua vida terrivelmente ameaçada, sobrevivido milagrosamente e tido uma revelação valiosa sobre o universo enquanto estava em recuperação.

ASDRÚBAL: “Você não pode me dizer qual era essa revelação agora?”

As coisas não funcionam assim. Agora eu sou obrigado a procurar um novo protagonista, um que esteja realmente preparado para viver o sacrifício necessário para a conquista desse incrível final feliz que eu planejei. E eu posso te adiantar que nada do que você vai viver sequer vai chegar aos pés desse momento… Uma pena. Era grandioso…

ASDRÚBAL: “Eu não sabia…”

Você é uma personagem. Não deveria saber. Se bem que talvez eu possa…

ASDRÚBAL: “Possa o quê?”

Deixa pra lá. Vamos terminar essa história, ok?

ASDRÚBAL: “Eu quero o final feliz grandioso! Por favor!”

Asdrúbal junta os últimos trocados em seus bolsos para pagar o táxi que o levaria de volta ao precipício. Já dentro do veículo, pensa:

ASDRÚBAL: “Eu não estou vivendo a vida que mereço. A morte é a minha única solução… certo?”

Certo. Ao chegar, mente para o taxista dizendo que esperaria pelo mecânico, para não gerar suspeitas e tentativas de demovê-lo da sua única certeza até então. Com corajosos passos, aproxima-se novamente da borda, desta vez sem a menor vontade de desistir.

ASDRÚBAL: “Adeus, mundo cruel!”

Asdrúbal cai, morrendo instantaneamente com o impacto.

“…a gente só não vai escapar mesmo é da morte.” Hahahahahaha!

FIM

Para dizer que o importante é ter saúde, para dizer que textos como esse são muito interessantes… para quem quer me criticar, ou mesmo para reclamar que o narrador tinha muitas semelhanças com um personagem fictício pra lá de famoso: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Comments (7)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: