Nem mesmo se você vivia numa caverna a 700 metros de profundidade você deixou de acompanhar a história do resgate dos mineiros sul-americanos presos há mais dois meses nas profundezas do Atacama.

A operação em si foi um grande sucesso, não só de organização e engenharia, mas também de público e crítica. Milhões de pessoas acompanharam ao vivo todo o procedimento. Foi um show.

E a vida deles dependeu do espetáculo proporcionado.
Desfavor da semana.

SOMIR

É pra lá de comum ouvir a expressão “cada um tem que fazer a sua parte” toda vez que alguma grande causa está em discussão. Além da questão prática, ainda é essencial que as pessoas agindo em prol dessa causa não se sintam perdidas e frustradas. A idéia é dividir o trabalho em tarefas menores, de fácil identificação. Conferir resultados e receber recompensas em curto prazo mantém o ânimo e a motivação em dia.

Boa parte dos problemas mais sérios que enfrentamos nesse mundo são “grandes demais”. Miséria, violência, intolerância… É desanimadora a idéia que ainda temos que resolver tudo isso, e as constantes derrotas da humanidade nesse sentido ainda se encarregam de tirar mais um pouco de nossa escassa motivação.

Mas de tempos em tempos surgem situações ideais para contra-atacar essa sensação de impotência generalizada. Problemas sérios contidos num universo pequeno o suficiente para presenciarmos seu desfecho, e melhor ainda, onde a esperança de “final feliz” realmente pode se desenvolver.

33 mineiros presos numa profunda mina no Chile? Finalmente uma tragédia com começo, meio e fim! Não é de se estranhar que o mundo tenha voltado seus olhos para lá. Drama, risco, identificação, especialistas, celebridades, autoridades, tecnologia, exposição… Era um coquetel perfeito para um grande espetáculo da mídia.

E foi essa situação perfeita, explorada à exaustão pela mídia, que tornou o retumbante sucesso de toda a operação de resgate realmente possível. Créditos onde eles são merecidos: Todas as pessoas que se doaram para a retirada segura dos mineiros foram exemplares. O ser humano é capaz de grandes ações como parar tudo o que está fazendo para ir ajudar um estranho pela simples capacidade de fazê-lo. Especialistas do mundo todo se juntaram e bolaram uma estratégia perfeita.

Claro que empresas e profissionais se aproveitaram dessa situação para se divulgar, mas desde que estivessem ajudando de verdade, tinham muito mais do que o direito de fazê-lo.

Isto não deveria ser o desfavor da semana? Pois o é. Sim, as pessoas que trabalharam para salvar os mineiros resolveram o problema. Mas elas só chegaram ao problema porque o assunto era interessante demais para a mídia enterrar.

Se essas 33 pessoas estivessem morrendo de fome numa comunidade carente, quais as chances do mundo todo se unir para resolver o problema? Ao invés de milhões, alguns milhares de dólares já resolveriam a situação.

Mas como separar 33 pessoas dentre as milhões nesse mundo também morrendo de fome? Como validar o investimento e receber crédito por isso?

E atenção, eu não estou usando discursinho demagógico do nível de “deveriam gastar esse dinheiro com outras coisas”. O que fizeram no Chile foi o correto. Os caras precisavam de ajuda e receberam.

Mas essa ajuda foi “causada” pelo valor da marca do problema deles. Muita gente estava doidinha pela exposição grátis, principalmente os governantes chilenos. Sabe aqueles que estavam pouco se fodendo para a situação dos mineiros até uma câmera ser apontada em suas caras? O Brasil passa longe de ter o monopólio de políticos oportunistas.

Entraram na mina como pobres genéricos (descartáveis), saíram numa cápsula projetada pela NASA e abraçaram o presidente como heróis aclamados pelo povo. Deve ter sido uma desgraça ficar dois meses enfurnado num buraco com um bando de homem, mas toda essa coisa de torná-los ícones tem mais a ver com o dinheiro e exposição grátis que eles podem proporcionar se bem utilizados. E o povo adora essa coisa de sofrimento e redenção.

E já que estamos falando para todo o mundo, dá-lhe dizer que foi uma grande vitória para a humanidade, um momento definidor na nossa história e tudo quanto é mais exagero típico de discurso inflamado de político. A verdade, a que realmente define o desfavor dessa semana, é que não há nenhuma grande novidade no fronte.

Aconteceu o previsível a partir do momento em que a história se tornou explorável. Mobilização e aumento substancial das chances de sucesso. Não começa uma nova era de solidariedade, não muda quase nada no quadro geral. Afinal, se a história não tivesse começo, meio e fim confinados numa situação específica, não haveria ajuda.

Lutar contra a precariedade das condições de trabalho de boa parte da população mundial é uma luta grande demais. Resgatar um grupo de pessoas presas a mais de meio quilômetro de profundidade é muito fácil se comparado com o combate à impunidade e a desigualdade.

A não ser, é claro, que isso se torne lucrativo.

Para dizer que se fossem cariocas e não mineiros tapariam o buraco com concreto, para dizer que já está achando um saco essa história do número 33, ou mesmo para apontar que a sorte deles foi não ter encontrado um Creeper: somir@desfavor.com

SALLY

33 trabalhadores ficaram presos por 69 dias a mais de 700m de profundidade. Sem dúvidas, passaram um perrengue e deram um exemplo de sobrevivência, pois conseguiram se organizar, racionar comida, estabelecer normas e sobreviver. Tem seu mérito. Porém o circo que foi armado em torno deste evento é um grande Desfavor.

Para compensar o desgaste físico e emocional que estes 33 homens passaram, eles vem sendo e ainda serão muito presenteados com todo tipo de mimo. Desde cifras exorbitantes para conceder entrevistas até viagens, tem de tudo um pouco. Todo mundo tentando sair bonito na fita. Mesmo empresas que exploram trabalho escravo, muitas vezes de crianças, em condições tão ruins quanto a destes mineiros, tentam parecer boazinhas presenteando os mais novos heróis do momento. Não que eles não mereçam, porra, os caras comeram o pão que o diabo amassou, o que me irrita é ver gente que não presta saindo de bacana às custas do sofrimento alheio.

Vamos dar uma olhadinha nos presentes que os Mineiros ganharam? Para começo de conversa, uma viagem à Grécia, com direito a acompanhante, bancada pela empresa mineradora grega Elmim. Vem com hospedagem incluída. O clube espanhol Real Madrid contemplou a todos com ingressos para vê-los jogar, com direito também a passagem e estadia para a Espanha, além de encaminhar 33 camisas autografadas e uma homenagem a eles no gramado, no dia do jogo. O Manchester United da Inglaterra fez o mesmo. Steve Jobs enviou Ipods aos Mineiros e a seus familiares. Não sei como eles não sairam daquela mina com vários patrocinadores estampados na roupa de salvamento.

Um empresário chileno deu um cheque equivalente a R$17 mil para cada um dos Mineiros. Detalhe: cuzou o deserto do Atacama só para anunciar a doação ali, na boca da mina. O banco Santander abriu uma conta para doações da população aos Mineiros e arrecadou cerca de R$117 mil. Várias outras instituições estão doando dinheiro vivo, e pior, estão melhorando a imagem que o público tem delas com isso.

Claro que a gente não podia ficar de fora. Pelé, criatura que eu sempre abominei, mandou camisa autografada. Cada um dá o que pode. Uma subcelebridade chilena oriunda de um desses reality shows ofereceu um striptease. Todo mundo está tirando uma casquinha dos Mineiros. Em resposta à proposta de strip, uma loja de roupa íntima ofereceu peças às esposas dos Mineiros.

Uma famosa vinícola vai fazer uma edição limitada de um vinho em homenagem aos Mineiros. Até mesmo meias especiais em homenagem a eles estão sendo confeccionadas. Tudo isso seria vontade de ajudar ou vontade de pegar carona nos 69 dias de fama? O local onde ocorreu o resgate deve ser transfomado em museu ou em ponto turístico. Não acharia estranho se virasse um parque temático com brinquedos simulando um soterramento ou um resgate e estátuas dos Mineiros para que os turistas tirem fotos. O ser humano é uma desgraça.

O principal ninguém levanta. Porque aconteceu o desabamento que os soterrou ali? É uma pergunta que requer explicações e que não pode ser calada com Ipods e camisas de futebol – e que deveria ser o foco das atenções agora. A mina não atendia requisitos básicos de segurança. Ganância, cobiça e total desprezo pela vida humana os colocaram nessa situação horrorosa que viagem nenhuma apaga. A hora é de focar na causa do desabamento para que isto não volte a acontecer, caso contrário estes presentes entregues supostamente com boa vontade acabarão parecendo um suborno, um “cala a boca”. Não foi uma fatalidade, foi negligência. E os responsáveis tem que pagar. Só porque não morreu ninguém não quer dizer que está tudo certo.

Vamos combinar que quando acontece uma porra dessa por negligência daqueles que estão no comando e daqueles que deveriam fiscalizar, não é favor cobrir as vítimas de mimos e empreender todos os esforços necessários para seu resgate, correto? O governo chileno não fez mais do que sua obrigação. Porque está saindo como bonzinho dessa história toda? Hollywoodizaram o resgate em uma formatação onde os principais culpados sairam como salvadores. Eu não compro essa história, você compra?

Se os 33 estivessem mortos, não ia ter conversa. Todo mundo estaria metendo o pau e clamando por justiça. Como sobreviveram, o povo esquece, numa vibe meio “deixa disso”. Mas temos que lembrar que pode acontecer novamente caso isto nao seja apurado e os próximos que forem vítimas deste descaso podem não sobreviver. O descaso com a vida humana é o centro da discussão, e não suas consequências. Morrendo ou não, foi muito grave o que aconteceu. Um cheque não apaga o erro ganancioso, como também não apaga o trauma que estas pessoas vão carregar para o resto de suas vidas.

Então, antes de fazer deste momento do resgate uma festa brega estilo reality show, vamos usar a cabeça e retomar uma indignação saudável. Essa mania que as pessoas tem de fazer de tudo um evento pop tá ficando cansativa. Para finalizar, não estou dizendo que os mineiros não merecem tudo isso, muito pelo contrário, estou dizendo que eles merecem muito mais. Pena que no nosso mundo um Ipod vale mais do que uma apuração de responsabilidade, então, o que para mim é “mais” para os outros é merda.

Para dizer que eu estou com inveja dos mineiros porque eles estão ganhando presentes, para dizer que se soubesse que seria tão proveitoso tinha se jogado em um bueiro e feito drama até o resgate e para dizer a Steve Jobs que passou 40 minutos preso em um elevador e por isso merece um Iphone: sally@desfavor.com