Adeus Tio Tom

Entre os anos 60 e 70, os italianos tinham uma indústria de cinema poderosa, e pra lá de peculiar. Todos os filmes que a careta Hollywood não tinha coragem de fazer, eles faziam. Muito mais dos que os filmes de faroeste, do país europeu saíam muitos filmes de qualidade duvidosa, mas que não tinham o menor medo de apelar para conquistar audiências. Hoje eu quero falar sobre provavelmente o filme mais apelativo de todos os tempos: Adeus Tio Tom.

Adeus Tio Tom é um filme de 1971 com uma premissa interessante: documentaristas modernos são enviados para os EUA no auge da escravidão. É uma viagem no tempo, mas não tem nada de ficção científica, não explicam nada, só te jogam junto com eles nesse período de tempo e começam a analisar como funciona não só o comércio como o dia a dia das relações entre escravizadores e escravizados.

Imagine as câmeras modernas filmando ao vivo como viviam os escravos nos EUA. É montado como um documentário, câmera chacoalhando tentando pegar detalhes das cenas, entrevistas com pessoas olhando para a câmera, quase nenhuma estrutura narrativa: o filme pula de cena em cena apenas mostrando o que acontece enquanto os documentaristas viajam pelo sul dos EUA.

Se você ficar no “em tese”, pensando na ideia de mostrar o horror da escravidão como se pessoas com sensibilidades modernas caíssem de paraquedas naquele tempo, tinha tudo para ser um clássico do cinema. Até porque o nível de qualidade, de produção e a quantidade de pessoas filmadas está numa escala completamente acima de qualquer outro documentário real. É ver para crer a escala do que eles conseguiram fazer.

Mas aqui chegamos na prática. Esse não é um filme que eu te recomendo ver. Eu acho interessante você saber que ele existe, mas que fique claro: quando o filme saiu em 1971, as pessoas acharam muito pesado, insensível e racista. É um filme que só poderia ter sido feito na época e nas condições que foi feito, isso nunca mais vai ser feito, nem parecido.

Como era de se esperar, o filme mostra o terror sem censura que os escravos africanos sofreram nas mãos de seus captores. São cenas e mais cenas de pessoas negras sofrendo horrores, sendo humilhadas, torturadas, abusadas, desumanizadas… eu que sou do tipo que dou risada quando vejo cenas de violência absurda em filmes de terror fiquei muito incomodado com o que aparecia ali. Se você é minimamente sensível a cenas do tipo, passe longe, vai te traumatizar feio.

Adeus Tio Tom é um filme que se posiciona contra a escravidão o tempo todo. Os documentaristas sempre estão perguntando para as pessoas se elas não acham errado o que estão fazendo, e nas poucas falas que tem entre si, sempre demonstram achar tudo muito errado. Dá para sentir que de uma forma torta, os italianos responsáveis pela obra queriam fazer um filme chocante para tatuar na mente das pessoas a ideia de como não tinha nenhuma característica positiva na escravidão dos africanos dos séculos passados. O filme é chocante porque eles queriam chocar.

Mas de boas intenções o inferno está cheio.

Agora é bom explicar outro ângulo pelo qual ver esse filme te deixa com uma sensação ruim: exploração. Em inglês, é mais comum descrever alguns filmes como “exploitation”, o que se traduz diretamente como exploração, mas que precisa de mais contexto em português: são filmes apelativos, normalmente no sentido de sexo e violência, que abusam não só dos temas expostos como até mesmo dos atores e atrizes envolvidos. É aquela ideia de que filme de terror tem que ter uma cena de mulher pelada tomando banho mesmo que não tenha nenhuma função prática.

Adeus Tio Tom é em tese um pseudo-documentário sobre escravidão, mas na prática é um filme de exploração. Não precisa ter doutorado em filosofia para perceber como boa parte das cenas são desnecessárias e apelativas. Mais da metade dos incontáveis extras negros estão nus o tempo todo, eu perdi a conta de quantas cenas do filme são baseadas em um “mestre” rasgando a roupa de escravas para mostrar seus seios. Em tese é uma cena que tem função artística para demonstrar como negros eram tratados como pedaços de carne, mas se isso acontece dez vezes num filme de duas horas, fica claro que o pessoal queria mesmo era mostrar mulher pelada. E mulheres peladas escolhidas a dedo: todas jovens e muito bonitas.

Havia uma clara intenção de explorar no filme todo. As cenas de tortura e humilhação são longas e tentam ser nojentas além de qualquer limite. O filme abre com um comerciante de escravos mostrando as condições de um navio negreiro, as cenas são tão pesadas que até o povo dos anos 80 viu e achou que era demais, muitas partes foram cortadas nas décadas seguintes quando o filme era relançado. Centenas de homens nus, ratos, baratas, diarreia, feridas aparentes… é forte. E é forte além do que se esperaria pela intenção de dar um tapa de realidade em quem achava que a escravidão dos africanos não foi tão ruim assim, é forte para ter a cena mais escrota possível na tela. Exploração.

E isso não foi o pior. Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi como conseguiram tanta gente para fazer o filme. Algumas cenas têm centenas de extras, todos negros. E o mais impressionante é que a maioria parece meio confusa com o que está acontecendo. Dá um ar de realidade para esse falso documentário que eu tenho certeza que nem mesmo um enorme grupo de atores profissionais conseguiria. Parece mesmo que pegaram uma câmera e colocaram na frente de escravos de séculos passados.

É aí que descobrimos a grande hipocrisia de Adeus Tio Tom. A maior parte do filme teve o Haiti como cenário. Os extras eram haitianos. Tudo aconteceu durante a ditadura de Papa Doc, um monstro sanguinário que destruiu o país para enriquecer, mas que adorava cinema e deu todo o suporte possível para os cineastas italianos. Aquele contingente enorme de extras eram cidadãos pobres sob um ditadura horrível que foram colocados à disposição da equipe do filme.

É claro que os extras eram perfeitos para a ideia do filme: eles provavelmente não entendiam o que estava acontecendo. O ditador os mandou fazerem tudo que os exploradores italianos mandavam. E até onde sabemos, a imensa maioria não ganhou dinheiro com o trabalho. Toda vez que eu vejo um dos escravos do filme com a cara fechada, eu me pergunto se a pessoa estava atuando bem ou se estava simplesmente reagindo honestamente ao absurdo que acontecia ao seu redor.

O filme mais antiescravidão de todos foi feito com… escravos. Talvez não no sentido de serem literalmente espancados para trabalhar no filme, porque dá para perceber em várias cenas que as pessoas agiam de forma natural, até felizes por estarem recebendo atenção. A sociedade haitiana dos anos 70 do século passado provavelmente não tinha muitos tabus com nudez, cenas que desumanizam e violência simulada, porque até os países mais conservadores da época não tinham.

Mas é claramente um filme feito com gente sem as informações necessárias para decidir se queriam aparecer ali, daquela forma. Mesmo nos anos 70, seria impossível fazer a mesma coisa nos EUA, por exemplo. O cinema italiano da época tinha esse hábito de explorar povos mais inocentes para filmar coisas que ninguém toparia filmar em países mais desenvolvidos. Nudez de nativos era uma parte integrante da apelação desses pseudodocumentários italianos (se quiser conhecer mais, pesquise por “Filmes Mondo”).

Agora, some gente sem informação nenhuma sobre o que estava acontecendo, sob o controle de um ditador assassino e a óbvia falta de recursos para pagar as prováveis milhares de pessoas que aparecem no filme e a exploração de suas imagens para entreter e dar dinheiro para europeus… a conclusão de que eram basicamente escravos aparece naturalmente.

E tem mais polêmica: a forma como os negros são mostrados até teria uma explicação artística com a necessidade deles se fingirem de bobos diante dos mestres, mas na maioria das vezes a coisa é tão exagerada com a suposta estupidez do escravo que eles vão se tornando aquelas caricaturas bem racistas que os americanos faziam nos tempos de black face. Estávamos nos anos 70, então é provável que muitos dos estereótipos de “negro estúpido” fossem crenças honestas de quem fez o filme.

Mas tem algo em Adeus Tio Tom que raramente aparece nas discussões modernas sobre escravidão: como os próprios negros participavam do processo. A mão de obra usada pelos escravocratas no filme é basicamente toda de homens e mulheres negros, inclusive na parte de tortura e violência em geral. O que é óbvio se você parar para pensar, mas virou um assunto complicado atualmente.

Como se fosse alguma forma de diminuir o fracasso humanitário que foi a instituição da escravidão de africanos. O fato de muitos escravos trabalharem oprimindo outros escravos não é para ser nenhuma justificativa para a situação. Você percebe que embora o filme não seja explícito em dizer que existia esse componente de exploração de negros contra negros, ele mostra várias cenas que reforçam esse ponto. Eu nem acho que deveria ser uma parte “cinza” da discussão, afinal, se um escravo aparece numa posição intermediária da escala de poder, não muda o fato dele ser um escravo. O que pode se discutir é o papel dos africanos na venda de escravos para os europeus, mas depois que eles chegam e dão de cara com um sistema que os trata pior que animais, cada um se vira como pode.

Reforçando: não é uma sugestão para você ver o filme, ele é meio complicado de achar, e mais complicado ainda sem todas as cenas cortadas com o passar dos anos. Se você acha que aguenta, pode ser uma visão fascinante sobre um tipo de desumanidade que a gente raramente pensa hoje em dia, e tem até mesmo alguns pontos realmente inteligentes, como uma cena que mostra uma casa americana apinhada de escravos em completo caos, mas que no final das contas só serviam duas pessoas brancas.

A escravidão no sul dos EUA acabou por causa da guerra civil, mas era um sistema extremamente falho, que realmente enfraqueceu os escravocratas com uma ineficiência terrível década após década. Não só tratavam seres humanos como animais, mas eram muito ruins em otimizar os processos. O norte ganhou a guerra civil por ter mais recursos e capacidade, o sul ficou “viciado” em escravos de tal forma que não conseguia sair da era feudal.

No fundo, todos sabemos que o golpe de misericórdia na escravização dos africanos foi a Revolução Industrial e a melhora considerável na capacidade de produção e acumulação de riquezas por quem pagava salários de fome para empregados livres do que quem não pagava nada para escravos. Tem toda uma teoria econômica sobre como é importante aumentar seu mercado consumidor e criar na pessoa a expectativa de crescer na vida para realmente aumentar seus lucros.

O que claramente não era o caminho da escravidão. Uma coisa que o filme mostra bem, se seu estômago permitir atenção nas cenas menos horríveis, é como o sistema todo era caótico. Ninguém conseguia evoluir ali. Exploração tem esse hábito de acabar com os recursos. O que é uma excelente analogia com o filme: por mais que se perceba a intenção do filme de criticar a forma como os negros foram tratados, a necessidade de gerar cenas apelativas fez com que produzissem o material num ambiente análogo à escravidão e abusar das pessoas que estavam aparecendo ali.

Adeus Tio Tom é muito mais profundo e provocativo intelectualmente do que parece, mesmo que não seja sempre de forma intencional. Ele é nojento em vários sentidos, no que quer mostrar como nojento no tratamento daquelas pessoas, e no que faz com as cenas para tornar o filme mais apelativo com sexo, violência e humor. Porque sim, o tom do filme é sarcástico e insensível de uma forma que deixa clara a intenção de fazer piada com os americanos, um passatempo que os europeus adoram.

É um marco do cinema, uma quantidade inacreditável de coisas erradas num só lugar, e não sei por quanto tempo esse filme ainda vai ser tratado como algo legal (no sentido de permitido pela lei) de assistir. Eu achei uma experiência única, mas não me responsabilizo pelos traumas que você tiver se assistir. É com certeza o filme mais explorador e apelativo já feito.

Para dizer que não precisa de mais traumas na vida, para me perguntar porque eu vejo essas coisas (para conhecer), ou mesmo para dizer que não esperava que o tom do filme fosse de humor (os italianos daquela época eram outro nível): comente.

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Comments (8)

  • Eu não tenho saco mais pra depreender sentido de alguns filmes – 120 dias, pra mim, foi chato pois era violência pela violência, o “motivo” era mais fraco que o enredo de O Gigolô.

    • Saló é um filme muito metido (e chato, é só punhetação ideológica entre as cenas horríveis), o Pasolini queria chocar, mas queria fazer uma “puta crítica social foda, mêo”. Não soube achar a medida. Adeus Tio Tom é feito por gente completamente sem noção, com a sutileza de um elefante numa loja de cristais.

  • Lembrando que o “Tio Tom” do título desse filme, é um termo pejorativo que descreve afro-americanos que eram subservientes à “autoridade” de um senhor branco, possivelmente sendo um equivalente masculino da figura da “Mammy”, que no cinema ficou marcada pela interpretação oscarizada da atriz Hattie McDaniel em “E O Vento Levou…”.

    • Verdade. Tem tantos negros envolvidos no dia a dia da escravidão que você começa a entender porque eram tão raras as revoltas violentas.

  • O Somir é um cara de gostos peculiares, pra dizer o mínimo. Eu nem sabia da existência desse filme e, a julgar pelo que ele contou no texto, seria melhor continuar não sabendo. É forte demais e eu não tenho estômago pra esse tipo de coisa…

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