Ele disse, ela disse: O nosso monstro.

Que beleza, fera!

Semana Contos-de-Fadas: O desfavor comemora o dia dos fedelhos com uma série de postagens sobre histórias infantis famosas. Tire as crianças da sala, vamos tirar a limpo muita coisa mal contada…

O amor de Bela transformou a Fera num belo príncipe, e ambos foram felizes para sempre. Até agora. O desfavor serve como território para que eles lavem a roupa suja e explicitem que temos problemas no paraíso. No meio da pancadaria, uma questão…

Tema de hoje: O amor muda as pessoas?

FERA

Não. Eu tive que passar por maus bocados para finalmente entender a lição que aquela bruxa maldita tentou me ensinar anos atrás. Achei que conquistar o amor de Bela e voltar à minha estonteante forma natural tivera sido o meu momento de realização, mas o buraco era bem mais embaixo.

Por um tempo eu realmente acreditei que tinha mudado, e que era isso que deveria ter aprendido após aquele feitiço. Encontrar o amor era tudo o que eu precisaria para ser feliz… Mas conviver com Bela nesses últimos tempos não foi algo bonito, com o perdão do trocadilho barato.

Oras, estava tudo certo! Aquela mulher incrível era minha, era novamente um príncipe. Amor, respeito e modéstia à parte… um rosto invejável para me encarar de volta no espelho. Só que algo ainda parecia fora do tom nessa sinfonia de sucesso e redenção: Bela.

A mulher que se entregou a mim, mesmo com minha aparência deplorável de besta peluda, mesmo com o prospecto de viver num castelo decadente, mesmo com o risco de parir pequenas aberrações ferais… Bela deveria estar radiante de alegria com todas as melhorias que a quebra da maldição nos trouxe.

Mas nada era bom o bastante. Embora ele nunca tenha sido muito de reclamar, nossa convivência já me ensinou como reconhecer pequenos sinais de frustração e rebeldia em sua encantadora face. E isso me corrói.

O que ela quer? O que mais eu posso oferecer? Não fica melhor do que isso… não conheço nenhuma forma de bater toda aquela história de virar um príncipe belíssimo, e rico, vamos ser sinceros… Ela gostava de mim antes, e eu estou entregando um pacote de vantagens ainda melhor. Como é possível que essa mulher não esteja satisfeita?

Estava prestes a perder a cabeça e procurar conforto entre as pernas da primeira das interesseiras que cruzasse meu caminho, e acreditem quando eu digo que elas não se fazem escassas. Se eu não era bom o bastante assim, tenho certeza que não faltam candidatas a apreciar meu valor. Acredito que ela nem imagine como é difícil passar anos como pária completo da sociedade e subitamente ser o melhor partido do reino. Mas ela não entendia mais a minha natureza… ela tinha mudado também.

Foi quando eu finalmente entendi. Bela não mudou, eu que comecei a enxergar quem nós SEMPRE fomos. Quando fui enfeitiçado, deveria ter aprendido que somos o que somos, independentemente das aparências. Eu estou menor e bem menos peludo, mas sempre fui eu.

Se eu não fosse extremamente vaidoso, não teria me escondido do resto do mundo por tanto tempo. Não teria relutado tanto em me abrir. Não teria sentido a necessidade tão violenta de compensar minha aparência com gratidão quase que excessiva para com ela. Hoje, quando eu passo horas na frente do espelho admirando o que aconteceu com meu corpo, ela me olha de forma desrespeitosa, julgando. A minha vergonha inicial e meu orgulho atual são representações da mesma coisa.

Eu sou um príncipe! Deixe os plebeus ficarem encantados com minha presença. Deixe as jovens camponesas dedicarem seus momentos solitários à minha imagem. É isso o que eu sou. Não me engano mais achando que Bela sequer desconfiava da possibilidade de usufruir dos favores de uma besta que convenientemente tinha um castelo em sua posse. Jamais colocarei em dúvida seu amor, mas tenho sérias dúvidas se ela realmente compreende que a única mudança ocorrida foi na nossa situação.

Ela vive num castelo de sonhos, com um príncipe encantado, tem tudo do bom e do melhor, tem minha fidelidade quase que exclusiva. É ofensivo que ela ainda me trate como devedor de sua adoração. Eu faço por merecer! E se meus modos não representam mais a totalidade de meu carinho por ela, ela que perceba que não é a primeira vez que isso ocorre. Quando Fera eu a ameaçava fisicamente, mas isso não é mais parte da minha situação. Eu ainda exijo reconhecimento, e ainda afasto quem não mereça o meu melhor. Eu sou um príncipe.

Eu não mudei. Bela não mudou. Agora está claro para mim que ela sofre de uma insegurança até maior que a minha enquanto tinha caninos maiores que meus dedos atuais. Ela se apaixonou por um monstro. Alguém isolado num castelo, alguém que não seria amado por nenhuma outra mulher. Evidente que ela procurava um porto seguro, alguém que não pudesse fugir dela. Bela tinha medo de rejeição… e que escolha um monstro poderia ter? E é exatamente a mesma insegurança que a queima por dentro quando coro os rostos de inúmeras jovens apenas com a minha presença. Agora a Fera tem escolhas. E com isso ela não consegue lidar.

E tem mais… Quando Bela me visitava antigamente, ela era a luz do ambiente. Ela era boa demais para mim, parecia um belo sonho e sabia disso. Não nego que mal conseguia acreditar no presente do destino que era aquela bela mulher cedendo corpo e alma para algo feito eu sob o efeito do feitiço. Ela gostava disso. Mas eu me libertei, e ao fazer isso, a dinâmica se inverteu. Ela era uma camponesa, atraente, é claro, mas apenas uma camponesa. Eu sou da realeza. Eu sou o melhor que alguém como ela pode conseguir. Eu virei o sonho, mas ela não admite perder o estrelato.

Bela acredita que o amor muda as pessoas porque ela precisa acreditar nisso. Ela sempre tentou me mudar enquanto era Fera, e agora faz o mesmo. Preciso ser honesto: Ela é uma camponesa, e mudar um homem é a única ilusão de poder que ela realmente pode esperar da vida. Sem essa ilusão de controle, ela é a coadjuvante da minha história. Bela não tem coragem de realmente buscar o poder, ela só o tem por minha causa. Só pode exercê-lo se conseguir me moldar de acordo com seus gostos.

E mesmo se ela conseguir, vai detestar o resultado. Eu já sou o príncipe, e agora ela sente falta da fera. É a insegurança que a fez me salvar que evita que ela seja feliz agora. Mas é claro que ela vai reclamar de outro, o problema nunca é dela. Quando eu era a Fera, era evidente que o que estava errado não estava nela. Esse tempo se foi.

Eu sou o que eu sou, ela é o que ela é. E não tenho a menor intenção em levar lição de moral dela. Não sei que histórias vocês ouviram por aí, mas consumamos o nosso amor bem antes do final do meu feitiço. Eu era o dobro do meu tamanho atual, e tinha muito mais em comum com um urso do que com um príncipe. Eu sei como ela olha para os nossos animais de estimação… Se ela não quer ser julgada, que não julgue.

O amor não muda ninguém. É pegar ou largar.

BELA

Sim, amor muda as pessoas. Atentem que quando eu digo que o amor muda as pessoas, nem sempre quero dizer que as muda para melhor, algumas pessoas pioram substancialmente, não é mesmo? Pessoas bacanas podem virar cretinos ciumentos, desconfiados e egoístas. Todo tipo de mudança pode acontecer por amor.

Vejam meu caso. Quando conheci meu marido, ele era um animal peludo, cheio de pulgas, que despertava temor na vizinhança. Quando nosso relacionamento se consolidou, virou essa coisa atlética e depilada, que passa metade do seu dia se olhando no espelho. O que fez isso com ele? O uprade na auto-estima que ele teve ao assumir um relacionamento comigo. Deslumbrou, coitado.

Enquanto era Fera, meu marido compensava seu embarangamento peludo com pequenos gestos agradáveis. Dançava comigo, me dava rosas. Porém foi só melhorar sua auto-estima após obter minha aceitação, o que culminou em uma transformação física, para deixar de lado estes mimos. Sabe como é, os barangos sempre se esforçam mais para agradar mulheres bonitas, porque se sentem em eterna dívida com elas. Após conseguir o amor de uma mulher, este amor pode operar uma transformação bizarra.

Posso afirmar que ele mudou por amor. Nosso amor lhe deu uma nova perspectiva sobre quem ele é e como ele é visto pela sociedade. Aquele bando de periguete da vila que antes fugia dele aos gritos, hoje se oferece ostensivamente. Sabe como é, mulher acha que homem comprometido é uma espécie de “selo de qualidade”. E ele, muito bobo, ainda se dá ao trabalho de ser educado com quem por tantas vezes correu e fugiu dele. Bicho burro. Se ele não estivesse comigo, provavelmente elas ainda estariam correndo dele.

O temperamento da pessoa também pode mudar por amor. Se o amor for não correspondido, muda para melhor, a pessoa fica dócil, amável e super prestativa, como era meu marido comigo nos tempos em que tinha garras. Infelizmente quando o amor é correspondido o temperamento tende a mudar para pior se a pessoa achar que você está nas suas mãos. Ela se sente no direito de descontar em você diversas frustrações (eu tenho culpa se TUDO diminuiu de tamanho quando ele deixou de ser Fera?).

Neste ponto você pode estar pensando que não é o amor que muda as pessoas. Na verdade, seriam elas que, por amor, escolhem mudar. O amor seria apenas o combustível da mudança. Negativo. O amor muda as pessoas, quer elas queiram, quer não. Meu marido dançava comigo e achava lindo aquele meu vestido amarelo, com os ombros de fora. Agora? Há! Pergunta para ele o que ele acha do mesmo vestido hoje em dia? “Os ombros de fora são muito inapropriados e essa saia que levanta a cada giro de dança não convém”. É inegável como o amor mudou meu marido. Virou esse monstro controlador que se sente no direito de me tratar como uma posse, como um objeto, violando minha privacidade e minha individualidade.

Curioso que esse novo status que o jogou na lista de homens desejados ele deve a mim, e mesmo assim, não parece se dar ao trabalho de reconhecer ou agradecer. Quando ele estava morrendo, debaixo de chuva, estava na maior humildade. Foi só aquele festival pirotécnico acabar e assim que ele perdeu as garras e ganhou um mullet, começou a se achar meu dono e se comportar como uma verdadeira fera.

Amor transtorna. Amor provoca mudanças que muitas vezes não esperávamos e que nem ao menos gostamos ou desejamos. Quem de nós nunca se pegou pensando ou dizendo a frase “não gostava do que eu era quando estava com tal pessoa”? Sim, amor muda as pessoas, quer elas queiram, quer não. Algumas vezes para melhor, outras para pior. Aquele que se diz imune aos efeitos do amor é tolo ou arrogante. Ou ambos.

Que atire a primeira pedra quem nunca conheceu uma pessoa calma que perdeu a cabeça com relativa frequência após encontrar um grande amor. Duvido que não saibam de ao menos um caso de pessoas seguras e bem resolvidas que se prestaram a vexames por ciúmes. Garanto que estas pessoas não escolheram operar estas mudanças, muito pelo contrário, devem sofrer demais com elas. Porém não podem evitar de portar-se desta forma. Porque o amor, Senhoras e Senhores, transforma as pessoas.

A lenda não consiste em dizer que o amor muda as pessoas, porque ele pode mudar mesmo. A lenda reside no fato de induzir a erro, fazendo acreditar que por causa do amor as pessoas sempre mudarão para melhor e se adequarão ao seu par, bastando o amor para construir uma relação feliz e harmônica. Pois bem, eu lhes digo, não tenho qualquer dúvida de que meu marido me ame, no entanto, me identifico muito pouco com ele nessa sua fase pós-fera. Esse não é o homem pelo qual eu me apaixonei.

O grande erro romântico no qual eu incorri é achar que as mudanças operadas pelo amor, por si só, bastarão para construir um relacionamento bem sucedido. Esta é a mentira. O amor muda as pessoas, mas esta mudança por si só não basta, é preciso arregaçar as mangas, aparar arestas, estabelecer limites, aprender a fazer concessões e cultivar interesses em comum.

O amor muda as pessoas. Geralmente para pior.

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Comments (11)

  • Já passei por essa fase “Bela” há uns anos atrás, por fim, abandonei o castelo.
    Hoje, o “Príncipe” voltou a ser “Fera” e me implora para reescrever a historinha com um Felizes Para Sempre no final. Mas como acabou o encanto, tomei doses de amor próprio e me sinto melhor como estou atualmente.

  • Marok, a semana temática de dia das crianças detonando história infantil está anunciada desde semana passada este texto está escrito desde sexta.

    A Globo é que anda copiando a gente *somir mode on

    Fica tranquila, eu só brinquei com a coincidência de ter passado na Globo justamente a primeira história da semana temática.

  • A Sally disse o certo. O amor muda a pessoa para pior.
    Eu falo por experiência própria.

    Quem ama é prisioneiro sempre..
    Quem não ama é livre sempre….

  • "Eu ainda exijo reconhecimento, e ainda afasto quem não mereça o meu melhor. Eu sou um príncipe." (Sua Majestade "Bola-de-Bilhar").

    A Vossa Augustíssima Majestade, saúde e fortuna.

    Conquanto vosso relato demonstre o inigualável brilho de vosso real intelecto e a incomparável retidão de vosso real caráter, o trecho destacado acima não condiz convosco. Talvez que os deveres de Estado passassem por vossa soberana mente quando o redigistes.

    Ao limitado entendimento de um reles plebeu, poderia parecer que vos falta uma coisa: usar de vossa augusta magnificência e, com real generosidade, abrir mão, para com a Real Consorte, de parte do reconhecimento que mui justamente vos é devido, ao mesmo tempo em que segundo é natural de vosso agudo entendimento decifrais de seus modos quiçá ainda não totalmente lapidados pela sã etiqueta da Corte a parte de reconhecimento que ela presentemente já vos tem intentado prestar.

    Mui humildemente vos subscreve vossa leal súdita
    Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve

  • Marok, a semana temática de dia das crianças detonando história infantil está anunciada desde semana passada este texto está escrito desde sexta.

    A Globo é que anda copiando a gente *somir mode on

  • Alguém andou assistindo filminho na globo…

    Bem, "falando sério", gostaria de saber de saber se casaram em comunhão total ou parcial de bens.

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