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Flertando com o desastre: Abençoados.

| Somir | | 34 comentários em Flertando com o desastre: Abençoados.

“A ignorância é uma bênção” é o tipo da frase que sempre me deixa com vontade de começar uma discussão, mas que sempre ocorre em situações onde uma discussão seria inconveniente. Por sorte eu tenho o desfavor para ventilar esse tipo de ideia. E para o azar de vocês, vou passar sim uma coluna inteira reclamando dessa frase.

A ignorância é uma merda. O padrão de felicidade que a ignorância traz (e efetivamente traz) é muito pouco se comparado com o incrível potencial que nossa mente permite. Tem muita gente que usa essa nefasta frasesinha para exprimir mais do que condescendência, o que teoricamente deveria ser sua única função. Muitas vezes, “A ignorância é uma benção” surge quase como uma expressão de desapontamento com a própria capacidade de perceber a realidade ao seu redor.

E é isso que me incomoda: Essa percepção que há realmente algo a se ganhar ao reduzir sua própria capacidade intelectual. Não é como se o caminho para a felicidade estivesse a alguns meros neurônios subutilizados de distância. Pouca instrução e pouco treinamento mental cobram sua conta na qualidade de vida, além de tornarem bem mais rasas e banais as situações de satisfação na vida de alguém.

Uma vida mais simples tem suas vantagens e desvantagens.

Reconheço que o conforto de acreditar piamente que minha vida é eterna e que existe uma espécie de justiça divina distorcendo as coisas ao meu favor é uma noção bem mais reconfortante do que ser um amontoado de poeira estelar com um curtíssimo tempo de consciência neste vasto universo.

Mas jamais cedo que essa percepção mais realista é menos deslumbrante. E me arrisco até a dizer, menos prazerosa. Uma pessoa presa aos grilhões do pensamento supersticioso, acreditando em deuses pessoais numa construção infantilóide de ditadura celestial, jamais vai conceber a grandiosidade e a elegância das leis naturais da forma como eu e tantos outros percebemos.

E não me venham dizer que eu ainda não “saquei” a mágica de acreditar em divindades, pois assim como todos vocês, eu também já fui criança e também já construí minha realidade baseada em fontes muito limitadas de informação. É um barato acreditar no incrível, não estou nem botando isso em discussão. Só que depois de um tempo, isso deveria começar a perder o apelo. Muito por causa da “iluminação” que estudo e curiosidade causam na vida de alguém. Ou pelo menos… deveriam causar em condições ideais.

Quando criança, eu já acreditei no deus judaico-cristão. Mas eu tive sorte de ter a minha disposição a liberdade e os meios para substituir essa visão simplória com um caminhão de informações e observações mais pertinentes ao meu desenvolvimento com o passar dos anos. O mundo passa longe de ser um lugar justo, e eu tenho plena consciência que a maioria das pessoas não vai ter liberdade ou meios para fazer essa transição.

Claro que a discussão pode descambar para religião, e será culpa minha por começar por esse exemplo, mas não é exatamente isso que me interessa neste assunto. Estou comparando estados de felicidade de alguém que acredita numa versão mais ignorante da realidade com o de quem formou uma opinião mais embasada.

O religioso fica feliz quando tem a impressão que sua relação com o deus em questão é vantajosa (vantagens pessoais, senso de justiça, confirmação de propósito). Um ateu apaixonado pela ciência como eu, por exemplo, fica feliz quando lê um livro, assiste uma palestra, vídeo ou qualquer outra forma de conteúdo que elucide ou faça senso do monstruosamente complexo universo que o cerca. Eu sei, eu sei… gosto é gosto. Mas eu acho essa coisa toda incrivelmente interessante.

A turma da “ignorância é uma bênção” acaba acreditando que o prazer desencadeado pela visão mais simplória das coisas é mais intensa e/ou duradoura do que a da pessoa que lida com variáveis mais complexas. O que é um ledo engano. As duas formas geram prazer. O que varia nada mais é do que a forma de aproveitar.

E é aí que eu volto para a minha afirmação de que o padrão de felicidade da ignorância é pouco. A mente simplória tem pouquíssimas áreas cinzas: Ou as coisas são boas, ou são ruins. A pessoa “abençoada” pela ignorância tem o senso crítico reduzido, o que a faz aproveitar muito mais coisas, é claro. Não ter senso crítico torna as Músicas Jabás e os Zorras Totais da vida fontes válidas de entretenimento.

Só que aqui temos um problema de compreensão do que é o senso crítico. Senso crítico não é achar tudo ruim, senso crítico não é sinônimo de nariz empinado, senso crítico é uma “caixa de ferramentas intelectual” com a qual você trabalha ao perceber o que está ao seu redor. Sem essas ferramentas, um monte de coisas que gente mais instruída acha horrível fica bem mais aproveitável, mas sem essas ferramentas, a mentalidade “preto ou branco” é responsável por muito mau-humor e descontentamento.

Sem a habilidade de relativizar e conectar informações, é muito difícil extrair diversão de situações inusitadas. Como esse desenvolvimento intelectual está na base do senso de humor, é muito mais fácil tirar um “abençoado” do controle e ferrar com sua capacidade de aproveitar o momento.

Lembro daquela postagem sobre inteligência racial que rendeu mais de 400 comentários como um dos grandes exemplos “próximos” de como a ignorância não é uma benção. Dado certo momento, eu estava me divertindo MUITO criando um circo ao redor do nazistinha, variando o discurso e criando situações inusitadas. Ao mesmo tempo, o rapaz estava claramente frustrado por não conseguir dar seguimento ao que pretendia.

Aquela discussão toda se tornou inviável, estava claro que não haveria uma vitória de nenhum dos lados (não pelo argumento, mas pela teimosia), eu poderia ter desanimado também, mas eu e vários outros que jogaram juntos, devo ressaltar, tínhamos os recursos necessários para perceber uma oportunidade de diversão e aplicá-la. A mente do rapaz estava tão fechada, ele tinha tão poucas ferramentas… Foi divertido para muitos, mas para ele deve ter sido um martírio.

Senso crítico também é encontrar diversão e encantamento em mais oportunidades. O ignorante só encontra prazer numa discussão quando tem a sensação de estar certo, ao passo que quem tem mais capacidade de compreensão pode sair realizado ao aprender algo novo, ao concatenar um grande argumento, ao extrair uma boa piada ou história dali…

Pode-se argumentar que o ignorante normalmente tem a vantagem de não ter seu ego abatido com a possibilidade de ser provado errado, mas, novamente, esse é o padrão do ignorante. Mesmo sendo uma pessoa assumidamente arrogante, tanto que estou me usando como exemplo do “não-ignorante” seguidas vezes, não enxergo nenhuma vantagem inerente a estar certo per se.

A “bênção” da ignorância se encarrega de parar a mente de uma pessoa no tempo. As opiniões congelam e a curiosidade se esvai. Estar certo tem o péssimo hábito de ser o fim do desenvolvimento de uma ideia. O que frequentemente é território fértil para acomodação e decisões pobres. É muito sábio ter um pé atrás com essa coisa de estar certo, e jamais se pautar por referenciais menos instruídos para tal.

Eu tenho mais medo de não ter mais o que aprender do que passar por ignorante. E curiosamente, é isso que realmente assusta os “abençoados”: Realizar que são ignorantes. A pessoa já vive com medo do que não conhece, e convenhamos que aí entra MUITA coisa, e ainda por cima tem que se manter suficientemente em guarda para não perceber o que está perdendo.

Justamente pela simplicidade, o caminho do ignorante é mais perigoso do que o do instruído. Pode parecer incrível para muita gente daqui, mas boa parte da população mundial está a uma “descrença” de perder todo o significado de suas vidas. Ignorância é uma ponte estreita.

Inclusive na questão do prazer de viver. O mais importante é lembrar que os prazeres mais básicos todos nós temos. Uma pessoa que só acha graça na vida de encher os cornos e fazer sexo, por exemplo, não tem nada de especial. A pessoa que aprecia um bom livro, música ou – porra, mesmo eu achando ridículo –  um bom vinho, pode fazer tudo o que o ignorante faz. Talvez com um grau de intensidade menor, mas nem na questão de quantidade o ignorante ganha: Ter mais opções e mais nuances no aproveitamento da vida no mínimo equilibra o foco “instintivo” do ignorante.

Não me entristece que as pessoas gostem de FANQUE, me entristece que isso nem possa ser chamado de escolha. E que muita gente babaca encha a boca para dizer que é esse padrão de limitação que mais se assemelha à felicidade. Felicidade funciona muito bem, obrigado, em mentes mais desenvolvidas. Mesmo que “A ignorância é uma benção” seja usada como discursinho condescendente de quem meio que se envergonha de ser privilegiado, ainda sim passa a mensagem errada. Conformismo.

E até por essa questão do prazer do ignorante ser mais simplório, a qualidade de vida sofre. A pessoa fica presa a círculo vicioso de buscar prazer sempre nas mesmas fontes. Os vícios do alcoolismo e do tabagismo são muito mais pervasivos nas camadas mais pobres da população, por exemplo. Filhos? Aos borbotões. Todas essas porcarias que derrubam a qualidade de vida da pessoa.

Sem contar um dos problemas mais sérios da ignorância: Ser massa de manobra e frequentemente pisado por quem é mais poderoso. Trabalhar que nem um escravo de sol a sol para receber pouco e ainda não ter acesso a serviços essenciais decentes me parece a antítese de benção.

Claro que expressar os pontos negativos de ser pouco instruído não soa como novidade para ninguém, mas eu faço questão aqui de reforçar como a compensação da suposta simplicidade não é nem um pouco justa. Se contentar com pouco é… pouco. Manter essa ilusão é um veneno social, que assim como a ladainha da “humildade”, serve basicamente para incentivar a docilidade de quem pega o pato pelos luxos de poucos.

E ainda nessa linha, é glorificação de pouca merda. Nunca que regredir a um estado mais próximo de nossos antepassados bestiais é vantagem num mundo onde já se provou que um padrão de vida MUITO maior não é só possível como a solução mais humanitária. Padrão de vida de país instruído é pior ou melhor do que os apinhados de analfabetos?

Instrução é uma bênção. É ela que te dá a capacidade de se adaptar e encontrar novos propósitos. Quase todo mundo tem medo de morrer, impulso sexual, vontade de sentir prazer e necessidade de se sentir reconhecido e valorizado. Mas a partir daí, muita coisa pode acontecer.

Para dizer que vai ignorar o texto, para fazer algum discursinho de quem acha BONITO exploração travestida de respeito pelas diferenças, ou mesmo para relativizar ignorância e jogar o propósito da coluna pela janela: somir@desfavor.com


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