Flertando com o desastre: Mente suja.

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O Senado acaba de aprovar a PEC criando a “Ficha Limpa” para qualquer cargo público. Ainda precisa passar pelo Congresso, mas depois de quase três semanas de numerosos protestos populares, a chance dessa proposta não ser aprovada é virtualmente nula. Muita gente já está contabilizando como uma grande vitória do povo… Afinal, quem seria contra isso além dos bandidos?

Bom, pra começo de conversa… eu. Isso é, se você não me considerar um bandido só por versar esta opinião. Muito comum que se categorize alguém entre aliado ou inimigo de acordo com suas visões de mundo. E é até compreensível: “Se a proposta veta a entrada de criminosos condenados em cargos públicos, não faz sentido que uma pessoa honesta se oponha”.

Só não faz se você não der mais atenção à ideia. Porque estamos falando de algo bem maior do que evitar que um corrupto notório consiga um cargo eletivo, estamos falando de pessoas comuns sendo proibidas de conseguir um emprego mesmo após pagarem suas dívidas com a sociedade. Estamos falando de admitir a incapacidade do sistema reformar cidadãos AO MESMO TEMPO em que estamos aceitando a infalibilidade do sistema judiciário!

Não tenho conhecimento jurídico específico para levantar questões como constitucionalidade e razoabilidade. E eu nem preciso me embrenhar nessas tecnicalidades para ainda sim me opor veementemente a uma aberração como a Ficha Limpa. Eu concordo que é feio que um corrupto condenado consiga se eleger ou ser indicado para um cargo público, eu acredito que as pessoas por trás do projeto inicial estão muito bem intencionadas…

Mas eu não posso deixar de enxergar o absurdo da mensagem social: De que se criou uma lei para criar cidadãos de segunda classe no país. Pessoas que perdem o direito de serem tratadas como cidadãs mesmo após cumprirem as punições previstas em lei. Ao invés de enxergar apenas o engravatado acendendo charuto com nota de cem dólares, comece a enxergar um Zé Ruela que fez uma escolha errada na vida (ou nem isso, tendo em vista como polícia brasileira se amarra numa confissão forçada) e que é proibido de tentar se reerguer. Concurso público tem até para gari.

Porque não vai ser no setor privado que ele vai ter chance. A sociedade “desorganizada” já pune por conta própria quem tem ficha criminal por muito mais tempo após o cumprimento de suas penas. Agora estamos estatizando essa mentalidade? Que o cidadão médio tenha suas reservas (ou mesmo total falta de empatia) com fichas sujas é compreensível: Cada um cuida do próprio rabo. Mas querer que o Estado venha e legitime punição por possível crime futuro?

Isso é cagar onde come. Isso é dar muito poder na mão de quem organiza o país. O Estado tem que ser frio, o Estado não pode agir por medo ou vingança. Todos são inocentes até que se prove o contrário, e mesmo que se prove, todos voltam a ser inocentes depois de pagar pelos seus crimes. Um conceito desses pode ser irritantemente neutro para uma pessoa normal, mas é ele que garante a proteção do conceito de justiça contra opiniões pessoais e a ideia de que “para os amigos tudo, para os inimigos a lei.”

Ou entendemos que o ser humano é corrigível ou não. Ou tratamos crime como algo que precisa ser executado (planejamento contando como uma forma execução) ou começamos a policiar pensamento. Ou pior… começamos a punir pessoas por ACHARMOS que elas vão cometer um crime. Não adianta dourar a pílula: Ficha Limpa é uma ferramenta de categorização de seres humanos. Os que são dignos e os que não são. Não de acordo com uma lei ou outra, mas em relação ao seu possível caráter.

Ficha suja é um atestado de ser humano inferior aos olhos do Estado! Você pode achar o Maluf um corrupto que VAI roubar se tiver a oportunidade, mas as leis que regem a sua sociedade NÃO. O Estado não pode prever o futuro e punir alguém por um crime que ainda não cometeu. Sei que vão argumentar que o Ficha Limpa é sobre histórico, uma punição por crimes passados… Mas se for assim, POR QUE EXISTEM PENAS?

Se sair uma mudança na lei dobrando a pena para um crime específico, você acharia justo mandar todos os condenados que já cumpriram a antiga de volta para a cadeia para completá-la? Se pagou, pagou. Isso existe para evitar abusos… É uma das fundações da justiça como a entendemos. Não sou jurista ou mesmo formado em direito, até gostaria de uma opinião mais abalizada… Mas não é inventar uma nova punição para jogar em cima de punições já decididas?

E além disso, é admitir que o sistema falhou. Que não se recupera o cidadão punido por um crime. E pior: Que esses seres irrecuperáveis estão dentro do poder público. Se pode-se evitar que alguém consiga um cargo público através de uma decisão judicial, se o poder judiciário é público… Da onde as pessoas acham que vem os juízes? De Marte? Eles também podem estar sujos.

Admite-se que o sistema é podre e coloca-se em sua mão uma ferramenta de higienização dessas? Democracia é uma merda, mas é a melhor merda que temos: Temos que ter muitas garantias que um cidadão não tenha seus direitos tolhidos por caprichos alheios. O sistema não é infalível, e temos que levar isso em consideração. Um esquema pequeno consistindo de um policial, um promotor e um juiz já poderia influenciar uma eleição com o Ficha Limpa.

Muita gente acha que as proteções especiais para funcionários públicos (eleitos por votos populares ou não) só existem para ajudar na roubalheira, mas como muita coisa nessa vida eles tem uma base nobre: Dificultar a manipulação de eleições e proteger os teóricos representantes do povo. O Ficha Limpa botou no rabo de vários corruptos nesses últimos tempos, mas é uma porta aberta para botar no de vários honestos nas próximas décadas.

Iniciativas mais “emocionais” como o Ficha Limpa estão com o coração no lugar certo, é ótimo que o povo se una para atrapalhar corruptos notórios e sabidos que predam o voto popular com suas campanhas faraônicas e certeza da impunidade. Mas não temos que abrir mão de liberdades e direitos para conseguir mais transparência e segurança. Esse é um caminho batido durante a história da humanidade, é aquela coisa de aceitar uma câmera de vídeo na sua casa por não ter nada a esconder. É abaixar a cabeça pela esperança de protegê-la.

Eu não quero o Estado com o poder de decidir se alguém é digno ou não. Isso coloca MUITO poder na mão de outros seres humanos. Sinto informar que o país é uma democracia, e isso quer dizer que o problema É SEU. Você vota em quem te representa, você se preocupa em formar a classe política. Estamos terceirizando nosso DIREITO de organizar o país para um poder que também está podre. Por preguiça, pela fantasia de que o Estado é uma espécie de divindade que pode decidir as coisas por nós.

Não existe moralização na base da canetada. Nunca existiu. Vamos ter uma série de corruptos não condenados nas instituições públicas e entregar um pouco mais liberdade pessoal para eles. Podem jogar pedras: Mas o cidadão tem o DIREITO de votar em gente condenada. Por não ligar ou por não acreditar que a pessoa seja indigna. Escolhemos representantes, não é um concurso de reputação. Esse direito de considerar a opinião do Judiciário injusta foi a moeda de troca da população pelo Ficha Limpa.

E agora que está se espalhando para todos os outros cargos públicos, estamos dizendo para uma boa parte da população que eles não tem mais o direito da presunção de inocência futura. Se foi condenado por um crime, quer dizer que vai cometer outros. Afinal, se não fosse essa a crença, não existiria a Ficha Limpa. Podem jogar pedras 2, o retorno: É, dadas as devidas proporções, a mesma mentalidade da turma da pena de morte. É sanha pelo que lhe parece justiça a qualquer preço. É “nós” contra “eles”.

Vendemos alguns conceitos racionais sobre justiça pela sensação de segurança. Isso é um clássico de regressão social. Não estou dizendo que começamos um caminho sem volta para a ditadura ou algo do tipo; estou dizendo que muitas das medidas mais restritivas e injustas perpetradas por governos já tiveram apoio popular maciço por “parecerem” certas.

Populações com menos acesso à cultura e aos estudos acabam com uma forte tendência ao conservadorismo. Meu recorrente cinismo em relação ao povão estava sob controle durante os recentes protestos: Eventualmente precisamos fazer algumas concessões por tomarmos um partido. No caso, o partido dos manifestantes nas ruas. Acreditei, como ainda acredito que vale a pena encarar um tanto de histeria punitiva conservadora se a contrapartida fosse algum desconforto para a classe política nacional. Precisávamos disso.

Agora temos de lidar com os problemas decorrentes dessa necessária revolta popular: A força da opinião “média”. Opinião média se baseia mais em reações emocionais do que racionalidade. Era previsível que medidas como essas ganhassem mais força depois dos protestos. Só espero que baixar os cartazes não seja prenúncio de baixar as cabeças. Acredito que muita gente (inclusive aqui) discorde disso, mas o Ficha Limpa é uma das medidas mais reacionárias que tivemos nos últimos anos.

Mas… a coluna se chama Flertando com o desastre.

Para dizer que sempre desconfiou que eu era um bandido, para argumentar que não ia fazer nada que prestasse mesmo com sua liberdade pessoal, ou mesmo para dizer que acharia bacana mesmo que tatuassem os pulsos dos condenados no Brasil: somir@desfavor.com

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