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Contenção de danos.

Contenção de danos.

| Sally | | 26 comentários em Contenção de danos.

Seria muito difícil fazer um texto sobre um assunto aleatório hoje. Soaria artificial, desconectado da realidade. Não acho possível falar sobre outra coisa que não a tragédia que afeta o Sul do Brasil.

Quase tudo já foi dito, de uma forma ou de outra, mas existe um ponto que eu ainda não vi ser debatido. Quero falar sobre a forma como o Brasil (e muitos países do mundo) estão encarando as mudanças climáticas: não dá mais para falar em prevenção, é hora de falar em contenção de danos.

Não há mais espaço para falar em reciclagem, em canudo que mata tartaruga, em glitter que polui oceano. Já está tudo contaminado com microplásticos, inclusive os peixes e nós. O planeta já está diferente e nada do que você recicle vai mudar isso. Os grandes estragos, feitos pelas grandes indústrias e empresas poluentes são irreversíveis e ninguém está disposto a viver em um mundo menos industrializado e menos confortável para mudar isso.

É hora de olhar para a realidade e assumir que o estrago está feito. E, uma vez assumido isso, pensar em medidas para conter os danos, em vez de gastar rios de dinheiro com estudos, conferências e ações preventivas. Passamos do ponto da prevenção, precisamos urgentemente entrar no ponto da contenção.

“Mas Sally, quanto menos estragos fizermos ao planeta, menores as consequências”. Sim, mas não será sua reciclagem que fará diferença. Como eu disse, quem poluí em escala massiva e industrial não vai parar e nenhum de nós quer realmente que parem, pois seria um retrocesso em matéria de civilização, conforto e modernidade. É hora de assumir as consequências das nossas escolhas como civilização e focar todo o intelecto e recursos para pensar em contenção, não em prevenção.

É inaceitável escutar que choveu mais do que o esperado, pois quem, ciente da atual realidade, acha que é possível esperar um patamar determinado de chuvas, está com muitos problemas cognitivos. Chuva, daqui para frente, só em quantidades insanas. Dez, cem, mil vezes a mais do que a média dos anos anteriores. É urgente abandonas as métricas de cálculos antigas, o planeta mudou, nós teremos que mudar também.

O atual sistema de escoamento de águas, por exemplo, vai ter que mudar. E não é nada desesperador, é apenas normal que as cidades tenham que se adaptar. Quando muitas pessoas se aglomeram em um lugar, é preciso alargar as ruas, aumentar as avenidas, melhorar a segurança pública. Pois bem, o mesmo deve ser feito com medidas de contenção contra catástrofes climáticas.

As pessoas ainda não entenderam que estamos chegando num ponto no qual é preciso adotar uma estratégia de guerra? Não me refiro a declarar guerra contra o planeta ou contra nada e sim de entender que todos os esforços científicos, de pesquisa e de recursos tem que estar voltados como um laser, em um raio muito bem direcionado, para como modificar cidades e protegê-las das catástrofes climáticas que estão por vir.

“Mas Sally, não é você quem diz que o planeta vai ficar melhor sem os humanos e que o ser humano tem que acabar?”. Sim, não mudo uma vírgula do que disse, só acho que seria muito trágico e desnecessário acabar sofrendo, com dor, com frio, com fome. Um meteoro que gere extinção imediata? Bem-vindo! Morte lenta, dolorosa e sofrida? Melhor não.

É aviltante ler que pesquisador da área está gastando intelecto e dinheiro público com outras questões menos urgentes. Pouco me importa o impacto das chuvas nas borboletas ou como fazer construções que não estressem as aves. Ou se criam mecanismos para salvar as pessoas das catástrofes que vem se mostrando cada vez mais recorrentes, ou o ser humano vai encontrar rapidamente um período de muita morte e sofrimento.

Entendo que existe um intervalo, um lapso, um gap entre uma mudança de realidade e a percepção das pessoas a essa mudança de realidade, mas, neste caso, já deu. Passou a ser negação mesmo. Passou a ser apego pela militância de que dá para salvar o planeta.

O planeta não está ameaçado, a vida humana sim. E não é mais reversível, segundo a ciência. Chega. Já deu. Chega de focar na prevenção. Tem gente morrendo de fome e hipotermia no teto de suas casas neste exato minuto. Não é mais sobre prevenção. O que mais precisa acontecer para que as pessoas percebam isso e foquem onde realmente importa.

É sobre como criar um sistema de escoamento de águas mais eficiente. É sobre como reforçar barragens e outras construções para que elas não cedam com um volume de chuvas cem vezes maior do que se estava acostumado. É sobre usar tecnologia, pesquisa e investimento para tentar conter uma crise que já chegou e meio mundo não tem estrutura emocional para admitir que chegou e ainda finge tentar evitar.

Merdamos. Merdamos como espécie. Cagamos no lugar onde dormíamos e agora está tudo sujo. Não adianta pedir para não fazer, não adianta pedir consciência. Estamos cobertos de merda até o pescoço, o que adianta agora é criar mecanismos para limpar e tentar atenuar quando acontecer novamente. O foco agora é refazer a estrutura das cidades para aguentar enchente, calor, seca, enxame de mosquitos e tantas outras danações que plantamos faz décadas e estamos colhendo agora.

Prevenção, só se for das catástrofes que já estão instauradas. Inclusive reformulando a forma como elas serão calculadas e previstas. Prevenção dos impactos (que inevitavelmente acontecerão) revendo, repensando e reestruturando as cidades. Prevenção de mortos e feridos revendo, repensando e reestruturando a forma como essas pessoas serão resgatadas.

Querer meter helicóptero no meio de zona alagada, esperar que as pessoas saiam voluntariamente de suas casas, pretender que construções de décadas atrás resistam às atuais condições são escolhas ruins. O Brasil precisa melhorar. É simplesmente insano continuar fazendo as coisas desse jeito e claramente não está dando certo. E a solução parece ser criar lei ou soltar bilhões para reconstruir o que a água destruiu.

Para começo de conversa, sugiro que observem como países que são bons nisso atuam. Tenho muitas ressalvas com os EUA, mas ele são eficientes. Se há uma catástrofe climática previsível a caminho, como por exemplo, um grande incêndio, o Poder Público vai de casa em casa e retira os moradores, no amor ou na dor, como eles preferirem. Pedir para morador sair de casa não é suficiente. Se não sair, tem que tirar à força.

O Japão, outro exemplo, tem um sistema muito eficiente de escoamento de água não apenas para chuvas, mas para a eventualidade de um grande tsunami inundar parte do país. Israel tem um sistema muito bom de irrigação que não gasta tanta água e permite plantar e colher no deserto. Existem centenas de países com os quais o Brasil pode aprender e que certamente estarão dispostos a ajudar.

E o Brasil tem total condição de desenvolver tecnologias inéditas para lidar com as catástrofes climáticas. Cérebros suficientes existem. O que falta parece ser foco. Esquema de guerra: para tudo de não-urgente e foca em como refazer as cidades e os sistemas para uma realidade de natureza em fúria. Não dá mais tempo de fazer no conta-gotas, de forma dispersa e pontual. As cabeças pensantes têm que se unir e focar nisso.

Na pandemia de covid-19 vimos o que acontece quando as cabeças pensantes se juntam com uma prioridade: uma vacina segura e eficiente, que, sem urgência, demoraria mais de dez anos para ser desenvolvida, foi colocada no mercado em tempo recorde, em apenas um ano. Dá. Se todo mundo colocar seu foco nisso, junto, dá.

Mas, para isso é preciso engolir a amarga realidade do ponto de não retorno: essa é a nova realidade e não dá mais para “salvar o planeta”. É preciso uma desistência oficial dessa crença e um novo mindset de contenção de danos. E isso é, além de amargo, assustador.

Muita gente vai se recusar, por não ter estrutura para lidar com essa nova realidade. Muita gente vai negar que esta seja a nova realidade, vai dizer que foi um caso isolado ou qualquer outro argumento que não a obrigue a viver em um mundo que, para os padrões humanos, está colapsando.

É hora dos alarmistas se acalmarem e os negacionistas se preocuparem. Nem bunker para sobreviver, nem banimento de canudo de plástico. Nem viver no futuro, nem viver no passado. O foco tem que ser a contenção das consequências, que já estão aqui. O debate tem que ser em como atenuar o que já começou a acontecer e vai acontecer cada vez mais daqui para frente.

E o Poder Público precisa criar vergonha. A população precisa cobrar violentamente. É inaceitável ver que boa parte da ajuda eficiente venha de moradores, da própria população, de famosos ou de qualquer outro grupo que não está sendo pago para isso.

Morador improvisa bote para salvar família ilhada e nas redes sociais todo mundo comenta, acha lindo, compartilha, dizendo como o brasileiro é um povo “bom, valente, legal”. O brasileiro é maltratado, isso sim. Não deveria acontecer de uma família ficar ilhada no teto da sua casa. E se eventualmente acontecesse, o Poder Público deveria ter plano A, B, C e D para tirá-la de lá imediatamente. É aviltante que a própria população ou pessoas não treinadas estejam promovendo resgates. Não é bonito, é sinal de que o Poder Público falhou e todos deveriam estar furiosos.

Muito dinheiro gasto como Orçamento Secreto, muito dinheiro gasto com viagens internacionais, muito foco no ego do Presidente, muito foco em distração (polarização, show ou qualquer que seja a polêmica da vez) e muito pouco foco e execução de medidas eficazes para conter os estragos. Todo mundo deveria estar muito furioso. Mas o brasileiro está tão acostumado a ser maltratado que o coloca como inevitável.

Percebam que nem mesmo as doações estão organizadas. Tem gente aplicando golpe, tem gente doando errado. Em alguns lugares o melhor seria doar dinheiro, pois ele se converte no que a pessoa precisa. Em outros, não há possibilidade de comprar nada por perto, então seria melhor doar água, alimentos, agasalhos. Está tudo descompassado. Tem gente recebendo errado, tem gente recebendo nada. Quem quer ajudar não sabe o que fazer. Muito desorganizado.

E, um breve parêntesis aqui: estou vendo muita gente online dizendo que é perda de tempo resgatar animais. Você tem que ser meio prejudicado da cabeça para pensar isso. Para muitas pessoas animais são como membros da família, mas, muito além disso, a humanidade precisa entender a responsabilidade que teve ao tirar animais da vida selvagem e levá-los para dentro de casa, tornando-os dependentes.

A partir do momento em que, como espécie, escolhemos usufruir dos benefícios (segurança, trabalho ou mera companhia) de outra domesticando-a e tirando dela a possibilidade de sobreviver sozinha, o mínimo que podemos fazer é sermos responsáveis por eles, inclusive salvando suas vidas, quando nós mesmos os colocamos em perigo, trancando-os em casas alagadas. Será que algum cão de resgate cogita se vale a pena salvar a vida daquele humano soterrado em escombros de um terremoto ou em uma avalanche? Sejam menos arrombados, por gentileza.

Voltando à tragédia, é hora de olhar para os erros e aprender. É hora de entender que o país reagiu mal, reagiu pouco, reagiu ineficiente. Não estou dizendo que em outros países do mundo essa quantidade de chuva não teria causado estragos. Provavelmente teria. Mas, em um país com competência para lidar com calamidades, a atuação seria completamente diferente, desde o preventivo até o resgate. E isso faz diferenças. Isso salva vidas. Isso mantém barragem inteira. Isso pode ser melhorado.

Chega de botar a culpa na quantidade de chuva. Vai chover muito mais do que isso nos próximos anos. Chove muito mais do que isso em muitos países. Não é sobre a chuva, é sobre a forma como se lidou com a chuva, com as construções, com a prevenção e com o resgate.

Tá errado. Tá tudo errado. Se continuarem botando a culpa nas chuvas, nada vai mudar e ano que vem pode ser a sua casa ilhada. Se continuarem achando que o resultado foi inevitável e que não tem como conter uma chuva desse porte, nada vai mudar e ano que vem pode ser a sua família desabrigada. Se continuarem focando em “evitar” o que já chegou, ano que vem pode ser a sua família com hipotermia.

Hora de cair na real e focar na única coisa que realmente faz a diferença: refazer todas as cidades pensando nessa nova realidade do planeta.

Para dizer que esperava um “Ei, Você” (as buscas são deprimentes demais), para dizer que o Brasil não consegue lidar nem com mosquito imagina com água ou ainda para dizer que o fim do mundo cada vez mais deixa de ser uma ameaça e passa a ser uma esperança: comente.


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