Somos Todos Paralímpicos.

Desfavor Convidado é a coluna onde os impopulares ganham voz aqui na República Impopular. Se você quiser também ter seu texto publicado por aqui, basta enviar para desfavor@desfavor.com.
O Somir se reserva ao direito de implicar com os textos e não publicá-los. Sally promete interceder por vocês.

Somos Todos Paralímpicos.

Nesses últimos dias tenho acompanhado o bafafá em cima de uma peça publicitária da Agência África, intitulada de “Somos Todos Paralímpicos”. A peça foi uma resposta à falta de interesse do público em comprar ingressos para a Paralimpíada, que irá ocorrer no Rio de Janeiro entre os dias 7 e 18 de setembro. Conversando com minha esposa Kitsune, que é paraplégica, tentamos entender o motivo de tanta discórdia em cima da campanha e chegamos a algumas conclusões, que tentarei expor aqui para vocês entenderem melhor porque a ideia da peça foi equivocada, apesar da suposta boa intenção (nãose enganem, não existe boa intenção no mundo da propaganda). Vamos começar pela origem da Paralimpíada, que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial e contou com a ajuda de um médico alemão chamado Ludwig Guttmann na organização do evento. Antes disso, os esportes adaptados eram uma forma de fazer com que soldados mutilados fossem reabilitados e reinseridos na sociedade após o trauma da guerra. Com a ajuda do médico, que fugiu da Alemanha nazista, esses esportes foram organizados e em 1948 ocorreu a primeira competição esportiva envolvendo veteranos da segunda guerra. A competição aconteceu na Inglaterra e só participaram 16 atletas com ferimentos na medula espinhal. Quatro anos depois, os países baixos enviaram atletas para participar e a competição começou a tomar ares internacionais. A primeira dobradinha Olimpíadas – Paralimpíada ocorreu em 1960, nos jogos de Roma e contou com a participação de 400 atletas e desde então outros grupos com deficiência foram sendo inseridos na competição, sempre divididos de acordo com suas deficiências, na tentativa de dar a competitividade mais justa possível entre os competidores.

As Olimpíadas em si já possuem a filosofia da inclusão, da superação e da paz entre os povos, então foi lógico levar essa mesma filosofia para a Palimpíada, que hoje é a segunda maior competição esportiva do mundo. Como ao longo dos anos a maior parte das cidades-sede das Olimpíadas ficavam em países realmente preparados para receber a competição, tudo ocorreu bem e o Brasil foi se mostrando um verdadeiro celeiro de atletas Paralímpicos, ficando em sétimo lugar no quadro de medalhas nos jogos de Londres em 2012, com 21 ouros. Para se ter uma ideia, os atletas olímpicos do mesmo ano levaram apenas 3 ouros, deixando o Brasil em vigésimo segundo lugar no quadro de medalhas. Então em 2016 temos o Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas e, consequentemente, das Paralimpíadas. Sally já discorreu bastante sobre a vergonhosa atuação do governo carioca em relação aos jogos, então era de se esperar algo pior com relação ao irmão menos glamouroso. A cidade, como ela faz questão de sempre lembrar, não possui o mínimo de adaptação necessária para a locomoção de pessoas em cadeira de rodas. Quando fui com a Kitsune para o Rio, passamos vários perrengues para conseguir ir de um lugar para outro e olha que ficamos em uma área nobre da cidade. Nem mesmo o hotel tinha adaptação e eu tinha que carregar ela diversas vezes nos lances de escadas, que ficavam na entrada do lugar. Para ela ir ao banheiro, também era um verdadeiro malabarismo, então desejo boa sorte aos atletas Paralímpicos que ficarem com dor de barriga, capaz de terem que se virar em banheiros que até pessoas sem cadeira possuem dificuldade.

Além disso, notícias como essa começaram a pipocar, mostrando a precariedade anunciada que seriam os jogos Paralímpicos. Eis que Eduardo Paes revela que poucos ingressos foram vendidos e logo após, meio que magicamente, a Vogue Brasil apresenta a peça “Somos Todos Paralímpicos”. Na campanha, Cléo Pires e Paulinho Vilhena se apresentam como amputados, tomando os corpos de Bruna Alexandre, do tênis de mesa, e Renato Leite, do vôlei sentado. Eu até entendi o conceito da campanha, pois me lembro de um texto que li que defendia que todos somos deficientes em potencial. Não me lembro o nome do autor do texto e nem aonde li, mas falava que muitos deficientes não nasceram com a deficiência e acabaram sofrendo-a ao longo da vida. Exemplo disso é a própria Kitsune, que andava e corria toda serelepe quando criança, mas acabou ficando Paraplégica após um acidente de carro. Os próprios veteranos de guerra que participaram das origens dos jogos Paralímpicos, eram pessoas que andavam normalmente antes de serem alvejados na coluna. Sendo assim, dá pra entender porque usaram pessoas sem deficiências como portadores potenciais de alguma mobilidade reduzida. Porém, esse é também o motivo de tanto alvoroço, afinal de contas, porque diabos não utilizaram os atletas verdadeiros no lugar de modelos globais?

Gostaria de deixar claro aqui que a culpa foi um misto de ideias da agência (que se conheço bem aquele povo, deve ter cobrado horrores), mais a aprovação do cliente. Culpar só a agência é besteira, já que eles seguem um briefing dado pelo cliente e precisam da aprovação do mesmo antes de veicular a peça. Porém, ideia similar já foi usada pelo Neymar na campanha “Somos Todos Macacos”, numa tentativa de evitar preconceito e rolou muito controvérsia por causa do duplo sentido da frase. Erro lá atrás que se repete agora, ou seja, muito dinheiro colocado em uma campanha que teria óbvia repercussão negativa, certo? É neste ponto que coloco meu parco conhecimento de mídia em ação, já que todo comentário gerado pela campanha, de certa forma, fez com que ela desse certo. Falem mal, mas falem de mim também gera pontos para a agência (que dizem as más línguas, está passando sufoco por causa da Vivo). Conheci a África durante meu curto período de trabalho em São Paulo e posso dizer que aquela cidade é uma toca de leões. Nada acontece em São Paulo sem que se saiba com antecedência qual será a repercussão do que será veiculado, até nos casos mais cabaços que o Somir já comentou aqui no blog, já se sabia o que estava para acontecer. Não há dinheiro mal gasto em São Paulo, já que até mesmo as campanhas mais estapafúrdias hoje em dia não passam de lembranças escondidas na internet, enquanto que a marca (que é o que interessa) ficou na memória para sempre.

Para a campanha, a utilização da Cléo Pires e do Paulo Vilhena servem para atrair a atenção do público aos jogos paralímpicos, já que os dois são embaixadores da competição. A recepção negativa da campanha, está no fato de não terem utilizado os atletas originais, substituindo-os pelos atores. Clamam aos quatro ventos a impressão de coisa maquiada, de que utilizar rostinhos bonitos não representam a verdadeira alma de superação das Paralimpíadas. Só um adendo aqui, de nada adianta esse povinho ficar reclamando na internet e depois estacionar em vagas especiais tá? #fikdik . A Kitsune também não gostou da campanha e defende a posição de que deveriam ter utilizado atletas de verdade em composição com os atores, dando uma ideia mais global de inserção de diferenças entre as pessoas. Nesse contexto, os atores serviriam para a perfumaria de chamar a atenção para o evento, enquanto que os atletas demonstrariam a vibe we are the champions de ser. Mas nããããão, preferiram fazer na base da polêmica. Pessoalmente acho que tão dando muito pano pra pouca manga, já que coisas mais graves que essa já passaram pela publicidade brasileira. Como marido de uma cadeirante, sei o que é ver as vagas especiais serem ocupadas por espertinhos. E vai reclamar pra ver, sobem a voz, se fazem de vítimas, dizem que não é justo cadeirantes terem vagas mais perto do estabelecimento. Nesses momento me lembro do tal texto de que todos somos deficientes em potencial, e penso “vai que um dia aquela pessoa realmente precise da vaga e outro espertinho estará lá ocupando-a”. Também sei o que é chegar num lugar e não ter como entrar por causa de uma escada, já que certa vez fiz um desafio de que ficaria um dia inteiro em uma cadeira de rodas. Sério gente, uma rampa mal feita é tão ruim quanto um degrau, você pode tomar um capote se não tomar cuidado. Vai reclamar disso pra ver, fazem vista grossa, culpam o governo, a prefeitura e a demora de autorização para obras, culpam até tombamentos municipais em caso de imóveis mais antigos.

Por isso amiguinhos, reclamar da peça é como cuspir no oceano. Capaz de render um pedido de desculpas, uma nova campanha e bola pra frente, daqui alguns meses tudo volta ao normal. A agência continuará ganhando horrores, Vogue continuará fazendo babaquices e os atletas Paralímpicos continuarão sendo pessoas invisíveis tendo que passar pelas mesmas dificuldades de sempre. Sei que aqui no blog falamos muito de vitimização das minorias e essa papagaida de politicamente correto, mas não vim aqui para levantar bandeira nenhuma, vim aqui para colocar um assunto delicado em discussão. Até quando teremos que ficar ouvindo, lendo e vendo esse escarcéu nas mídias sociais, se na vida real não passam de uns babacas? Mesmo usando atores globais, a Paralimpíada será um fracasso de vendas de ingressos. Se as Olimpíadas penaram para conseguir um mínimo de público, imagina só a versão dos quebrados, que terão exibição mínima em rede nacional. Ou seja, poucas pessoas se importam de verdade com o conceito do que está sendo discutido e a maioria só vai no hate pelo hate. Bom para a Agência África, que terá seu nome entre os mais procurados do Google. O mesmo vale para a Vogue. Se queriam chamar a atenção para alguma coisa, qualquer coisa, mais uma missão cumprida.

Por: Tender

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Desfavores relacionados:

Etiquetas: ,

Comments (5)

  • Adriana Truffi

    Parabéns pelo texto Tender. Hoje mesmo li uma reportagem que falava sobre a não adequação do Rio às necessidades dos deficientes. E as eternas promessas do que irão fazer futuramente. Acompanharam um atleta paralímpico cadeirante em todas as suas agruras, desde sair do apartamento na zona norte até chegar ao seu destino, no Boulevard Olímpico. E de ônibus.
    É por essas e outras que tenho um carinho muito especial pelos atletas paralímpicos brasileiros. Num país onde se investe tão pouco em esportes, com exceção do futebol profissional, vôlei e alguns outros ditos de alto rendimento, ser atleta com algum grau de deficiência, … é matar um leão por dia! Falta de investimento, falta de acessibilidade falta de infra-estrutura básica e esportiva, falta de reconhecimento… São tantos motivos pra desistir, mas eles estão lá, firmes e fortes, fazendo o seu melhor, e que melhor!
    Então essa campanha me deixou com tantas sensações que nem consigo descrever. Mas pelo menos vejo o lado bom da coisa, mais ingressos foram vendidos. Esses atletas merecem ser vistos pelo maior número possível de pessoas.

  • Sabe o que também é triste? Não ter certeza de dizer “fica tranquilo, um dia os babacas vão parar de fazer essas babaquices”. Não sinto outra coisa mais que vergonha e, assim como a Sally contou no desfavor bônus dos turistas, só tenho que pedir desculpas pela sociedade babaca que temos. Desculpa!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: