O dedo de Deus.

A Justiça de Goiás determinou, nesta sexta-feira (14), a prisão preventiva de João de Deus, suspeito de praticar abusos sexuais durante tratamentos espirituais, em Abadiânia, cidade goiana do Entorno do Distrito Federal. MP-GO recebeu mais de 300 denúncias de mulheres que afirmam terem sido vítimas do religioso durante tratamentos espirituais. LINK


Além do óbvio sobre os abusos sexuais, ainda tem o agravante da exploração do desespero das vítimas. Desfavor da semana.

SALLY

Não sei o que espanta mais, o número de vítimas (até ontem eram mais de 300) ou os crimes praticados (estupro, pedofilia, ameaça e outros). O médium mundialmente conhecido João de Deus está seriamente encrencado, e não é de hoje. Sua filha, que alega ter sido estuprada sucessivas vezes por ele durante anos, inclusive enquanto ainda era uma criança, move um processo contra ele já faz um tempo e teve que se esconder, pois ele a ameaçou de morte, a internou como se fosse louca e fez outras atrocidades.

No entanto, apesar de existem evidências concretas de que esse sujeito era um criminoso, não havia espaço para que nada disso viesse à tona. Mas agora, por um conjunto de fatores que não cabe detalhar, pois não são objeto deste texto, a verdade está vindo a tona. Abriu a tampa do bueiro. Não só com João de Deus, como com outros “gurus” como Prem Baba, com políticos e outras figuras que desfrutam de algum poder no Brasil. E, ao que tudo indica, a faxina continua em 2019.

Neste texto quero dizer basicamente duas coisas: 1) ninguém precisa de um guru, o que quer que você acredite que exista, você tem o poder de acessar sozinho e 2) entristece, é nojento, dá desesperança, mas é bom que aconteça, é bom que toda a podridão venha à tona, para que cada vez mais esse tipo de pessoa possa ser punida e também para que fique um exemplo para os demais de que ninguém é intocável, um dia a casa pode cair.

Tenho a impressão que, entre outras coisas, 2018 foi um ano de dedetização. Uma quantidade infinita de podres vieram à tona, uma quantidade improvável de pessoas que, até então, eu considerava intocáveis, foram punidas. É como uma diarreia: feio de ver, nojento de vivenciar, mas é um mal necessário para se livrar de tudo de podre que estava fazendo mal.

A grande lição que fica disso é desconfiar sempre de qualquer pessoa que, a qualquer pretexto, se coloca como superior e tenta influenciar na sua vida. O poder é seu, o caminho é seu, as escolhas são suas. Nunca deleguem isso a ninguém. Escutar conselhos é muito bacana, desde que seja com objetivo de avaliar outros pontos de vista para, ao final, construir o seu, com seus valores, sua intuição e sua convicção.

Receber ordens, se obrigar a rituais, acatar comandos como se fosse a única forma de alcançar um objetivo, qualquer que ele seja, é furada. É delegar para terceiros ou para o acaso algo que te pertence e é sua responsabilidade. E é óbvio que pessoas que exploram esse medo ou incapacidade nos outros fatalmente não serão boas pessoas no conjunto da obra. Quem tem a cretinice de fazer isso, dificilmente vai ter ética.

Este caso de João de Deus infelizmente não é o primeiro e não será o último. Não raro gurus, mestres, médiuns, ou seja lá qual nome se queira dar a quem diz que tem um poder que pode mudar sua vida, geralmente estão vinculados a escândalos relacionados a abuso de poder. Quem quer de fato ajudar, e não exercer poder sobre outra pessoa, faz o que nós fazemos, o que psicólogos fazem, o que amigos de verdade fazem: dão ferramentas para que a pessoa use como e quando quiser, e se não quiser usar, se achar que não lhe serve, tá tudo bem.

Um aconselhamento é como um presente que você dá para a outra pessoa. Deu porque quis, está dado, e uma vez dado, pertence à pessoa, não mais a você, não cabe a você ficar fiscalizando se a outra pessoa vai segui-lo, quando ou como. Muito menos impor regras, rituais ou ameaçar que algo ruim vai acontecer com ela caso não o siga. Quem realmente quer o seu bem e pode te ajudar de alguma forma, te dá, além do conselho, algo muito mais importante: liberdade de colocá-lo ou não em pratica como e quando quiser.

Religiões, gurus, doutrinas ou qualquer outro sistema ou pessoa que te exija um agir em determinado tempo ou em determinada hora, sob pena de alguma consequência negativa tem que ligar uma sirene de alerta. Você não precisa disso.

Qualquer que seja o poder, o conhecimento ou o dom da pessoa, acredite, você também o tem, só não sabe acessar. Mas pode aprender, confie em mim. Você ganha muito mais dedicando seu tempo e sua energia a olhar pra dentro e tentar acessar essa “divindade” dentro de você do que levando problema pronto para fulaninho que joga búzios te dar uma resposta.

“Mas Sally, João de Deus curava pessoas”. Errado. As próprias pessoas se curavam, pois ao ir até ele, acessavam um lugar dentro delas que promovia mudanças profundas. Lembram do texto sobre Transtorno Dissociativo de Identidade? A mente humana pode alterar a cor dos seus olhos, te fazer voltar a enxergar após um dano cerebral e desfazer diabetes. Não é o agente externo, que é mera alegoria, esse poder está dentro de cada um de nós.

Se você acredita nisso e quer trabalhar para uma expansão de consciência, que legal, muito boa sorte para você. Se você não acredita nisso e acha perda de tempo, que legal, muito boa sorte para você. Cada um escolhe seu caminho e, se for o caso, tá tudo bem de mudar de caminho quantas vezes quiser. Apenas, por favor, não andem com muletas: religiões, gurus, mestres, médiuns ou qualquer outra pessoa que se porte como quem vai te guiar, como quem está avalizada a definir o seu caminho, são furadas. Só você pode definir o seu caminho.

E não existe um único caminho válido ou certo. É uma jornada a ser construída conforme o que você sente que deseja, precisa ou quer. Não há qualquer necessidade de ficar nas trilhas que já foram abertas, você pode criar sua própria trilha, pisar onde ninguém pisou ou combinar vários caminhos. E tá tudo bem, pois assim como esses gurus, religiões ou mestres não tem o poder de te ajudar (o poder é seu, só seu, e só você pode acessar), eles também não têm o poder de prejudicar. São um nada, ao qual algumas pessoas inocentemente dão dimensão, por pura ignorância.

Hora de parar de dar dimensão a estas muletas. Percebam que não é o guru, a religião ou o mestre em si e sim o uso que se faz deles. Hora de parar de delegar seu poder, suas escolhas (e com isso suas responsabilidades) a terceiros. Trilhe seu caminho sozinho, sem precisar aderir a nada para se construir: religião, pacote de ideologia política, adequação social ou ordens de terceiros.

Quer aprender a acessar um eventual poder que você tenha dentro de você? Dou o maior apoio, mas é uma jornada solitária, que só você pode fazer. Cerque-se de quem te ensina a pescar e não de quem te dá o peixe. Procure quem te dá ferramentas para alcançar seus objetivos e não quem diz que vai resolver tudo para você. Gente que se propõe a resolver seus problemas não está te ajudando, está te escravizando.

Para finalizar: autoridades, fiquem de olho nesse João de Deus, esse cara vai tentar fugir do país.

Para dizer que está curtindo esse meu ateísmo light, para dizer que isso acontece desde o Osho ou ainda para parabenizar esse zé cu que enganou até a Oprah: sally@desfavor.com

SOMIR

Mesmo sendo bem mais cético que a média, eu não ignoro o poder do efeito placebo: o corpo humano tem uma capacidade incrível de se curar aperfeiçoado por bilhões de anos de evolução da vida. Muitas vezes basta acreditar que está se curando para causar algum efeito positivo na própria vida. Evidente que existem limitações, afinal, o que não é possível para a genética humana não vai acontecer, como crescer de volta membros amputados ou reverter doenças degenerativas. Seja como for, não é inteligente ignorar esse tipo de poder.

Tanto que mesmo os mais descrentes (desde que tenham um pouco de bom senso) acabam fazendo vistas grossas nesses casos. Já vi pessoas queridas apelando para esse tipo de ajuda sobrenatural e resolvi não me pronunciar sobre o elefante mágico na sala, muitas vezes na esperança que o efeito placebo ajudasse mesmo. É complicado tentar minar a fé alheia, até porque dificilmente você tem o que oferecer para ficar no lugar. Continuo uma das pessoas mais descrentes que conheço, mas faz algum tempo que não sou mais tão vocal sobre o tema, pelo menos não na vida real.

O problema é que vira uma escolha entre tratar as pessoas com a verdade – não verdade absoluta porque um cético deve viver com a constante noção que provavelmente está errado – ou com uma condescendência utilitária, por assim dizer. É um equilíbrio complicado: por um lado lidar com o tema de uma forma bem racional permite que dar bons conselhos sobre não acreditar em alegações fantásticas dos outros e gerar ferramentas na pessoa para se proteger de predadores como João de Deus, mas por outro se você for muito eficiente no convencimento, afasta a pessoa do poder do efeito placebo e possivelmente de uma solução para seus problemas.

Por isso Sally e eu alinhamos um argumento hoje que tenta contemplar esses dois lados: seja realista ao ponto de desconfiar de quem tenta impor sua vontade sobre você a partir do sobrenatural. Ninguém precisa de gurus ou guias espirituais… seja lá o poder que eles parecem ter, nada impede que você tenha também. Não conheço nenhuma religião que seja explícita sobre sua divindade trabalhar exclusivamente com algumas pessoas. Todos os fiéis são elegíveis para esse suposto poder e normalmente o preço é a adesão à fé em questão.

Eu sugiro desconfiar imediatamente de qualquer pessoa que te diga que tem poderes especiais e/ou foi escolhida por uma divindade para agir no mundo. Mas não precisa ter uma rejeição cega, às vezes aprendemos até com quem parece totalmente maluco, desde que estejamos dispostos a colher o que nos serve e descartar o que não nos é relevante. E como se definem os padrões para essa desconfiança? Simples: a partir do momento que a pessoa que se diz escolhida/iluminada/mágica tenta gerar poder sobre você com essa característica, o sinal amarelo já tem que estar ligado.

O grande perigo de pessoas como João de Deus é justamente o quanto eles conseguem explorar uma necessidade humana para conseguirem o que querem. Pessoas que normalmente não se deixariam ser tocadas de forma sexual por um estranho ficam em dúvida sobre o que está acontecendo dada a suposta aura de santidade do abusador.

Tem toda a complexidade do abuso sexual clássico, incluindo a vergonha da pessoa de estar naquela situação, como se tivesse culpa por estar lá ou às vezes até me dúvida se ela causou o avanço da outra pessoa… o que é irrelevante: a pessoa pode desistir dentro do motel com alguém que flertou a noite toda, quando quiser. Imagine então numa situação que não presume sexualidade de forma alguma! Seja como for, tem esse fator envolvido que faz muita gente, especialmente mulheres, não conseguirem parar um abuso mesmo quando é óbvio que está acontecendo um. Só para não perder a viagem: não é culpa da pessoa não conseguir parar a situação, é um “bug” conhecido da mente humana que pode causar essa situação com qualquer pessoa, não importa o quão forte ela seja.

Some-se a isso toda a presunção de poder divino de um João de Deus ou Prem Baba da vida e temos centenas de pessoas incapazes de lidar com a situação que se apresenta. E talvez aqui seja mais complexo ainda aconselhar uma pessoa: como as religiões tendem a usar algumas pessoas especiais como símbolos de poder (por facilidade narrativa), ainda está muito enfiado na cabeça das pessoas que elas precisam de intermediários para acessar os poderes do deus em questão. A figura do ser iluminado, guru ou sacerdote como detentores da intervenção divina é muito presente no inconsciente coletivo. E junto com isso, a ideia que essas pessoas precisam ser reverenciadas e obedecidas. Não inventaram hierarquia humana nas religiões à toa: as pessoas gostam do conceito e quem está no poder vai fazer de tudo para manter esse poder.

É vantajoso ter esse poder. De ser uma espécie de pedágio para os poderes divinos que tantos de nós acreditam sem questionar. Quem se coloca nessa posição pode até não ter esse objetivo claro, mas se for aceito pelos que acreditam na sua divindade ou poder maior, começa a receber todas essas vantagens. Talvez João de Deus não tenha entrado nisso para abusar das pessoas, mas se havia algo torto nele, o poder trouxe à tona. Não sabemos qual a natureza de uma pessoa até ela ter poder sobre a gente, e é muito por isso que o momento de maior atenção ao lidar com qualquer um que se diga guru ou iluminado seja a hora que essa pessoa tenta se colocar numa posição de poder sobre você. Isso deveria assustar a maioria das pessoas.

Quem realmente quer fazer o bem dificilmente vai forçar a barra para cima de outra pessoa, especialmente uma desconhecida. E quem realmente tem o que acrescentar na sua vida normalmente é seguro de si o suficiente para te deixar entender as coisas no seu tempo. Se quer realmente ficar livre do poder de gente como João de Deus, a única solução é “abdicar” do efeito placebo e vir viver a vida do ateísmo cético. Se não quer ir tão longe, sem problemas, só fique atento a quem tenta usar suas crenças para te controlar, quase sempre é uma pessoa que vai te fazer mal.

Para dizer que o nome dele é perfeito, para dizer que tudo é sobre dinheiro e mulher sempre, ou mesmo para dizer que torce para que façam muitas curas espirituais com ele na cadeia: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Sabrina Bittencourt MORTA - Desfavor com sangue nas mãos

    A mulher responsável pelas ONG que deu condições para que as denúncias de abusos sexuais se suicidou hoje.
    E tudo por quê? Porque o YOUTUBER que vocês acusam de ter feito a caveira da Ministra Goiabeira foi lá se meter na questão de certa funkeira pré-adolescente prometendo dar suporte a carreira da mesma sem o apelo a exploração sexual que já estava dando na cara.
    E a rixa do Youtuber e da Goiabeira surgiu nisso, sendo que a Sabrina seria responsável por cuidar da Melody, mas ganhou de brinde gente a difamando a ponto de se suicidar.
    Vocês estão de parabéns mesmo.

    • Desculpa mas ninguém se suicida por causa de um terceiro. É uma questão interna. De qualquer forma, que sirva pro Felipe Neto sair desse modo de funcionar tóxico (para ele) de estar sempre antagonizando com alguém.

  • Ele tinha todos os políticos e policiais de Abadiânia no bolso, por isso não se preocupava pq ninguém conseguia uma ação contra ele….era mega protegido com um patrimônio desses, devia pagar bem.

  • Fugindo um pouco do tema do texto: No que dependesse de mim esse vagabundo morreria na cadeia sendo abusado pelos colegas de cela (e desceria de tobogã pro inferno pra continuar sendo abusado pelo próprio demônio pela eternidade). Só consigo desejar estupro pra um estuprador(a)/abusador(a).

    No mais não sei se fico triste ou revoltada por saber que existem milhares de pessoas que caem em conversa de charlatães de qualquer tipo.

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