Flertando com o desastre: O valor das palavras.

fd_pesopalavras

O “amor” de hoje já é sinônimo de achar legal… bacana. As pessoas dizem e escrevem que AMAM qualquer coisa… ou pessoa. A palavra não tem mais um décimo do peso que já teve há algumas décadas. E não me confundam com um romântico: não é nem tanto a banalização do sentimento (que pra muita gente é banal mesmo), é a banalização da gravidade de uma palavra.

Estamos perdendo o significado, e principalmente o PESO das palavras. Estamos como um todo, em diversas línguas… há algumas gerações. Embora eu não seja contra a constante modernização e atualização do léxico nas sociedades atuais, tem muito de preguiça e nivelação por baixo no tanto de palavras que estão sendo destruídas pela “geração web”; não é só a redução no número de palavras, é PRINCIPALMENTE a redução dos significados delas.

O cérebro humano funciona na base das associações. Pega uma ideia, analisa suas relações com memórias e/ou estímulos externos e entrega uma conclusão. De uma certa forma, nosso processador é tão potente quanto o número de associações que consegue fazer… Quando uma pessoa se acostuma a misturar o significado de várias palavras numa conclusão meia-boca só, evidente que ela está perdendo capacidade de raciocínio e compreensão das informações com as quais tem que lidar.

As línguas modernas contam com um monte de palavras, concedo que algumas até redundantes, mas que em sua maioria tentam significar algo único. Variações sutis dos mesmos símbolos, sentimentos e filosofias. Voltando ao exemplo do começo do texto: Amar, adorar, gostar e curtir (já era palavra funcional antes do Facebook, crianças) são verbos que deveriam funcionar como formas diferentes de se exprimir a intensidade de um sentimento positivo sobre algo ou alguém.

Mas vai conversar ou ler um cidadão médio atualmente… Essas palavras aparecem de forma quase que aleatória nas frases, sem a menor preocupação com uma escala de grandiosidade. Tudo se mistura numa sopa de letras onde a ideia média é ter atitude positiva sobre o que se menciona. E esse é um significado muito do sem graça perto das possibilidades que as palavras proporcionam.

Existe um verno ótimo para dizer que se gosta de algo: Gostar. Ela dá toda a presunção de positividade sem exagero que é justamente o que a maioria das pessoas procura ao se expressas nessas situações. As outras que acabam enroladas dentro dessa mesma definição preguiçosa podem dizer MUITO mais do que positividade sem exagero. Adorar, por exemplo, é uma palavra pesada… adoração é algo que denota fascinação, uma quase subserviência que costuma fugir do campo racional.

Não é crime dizer que adora sorvete, e as pessoas vão te entender. Mas puta que pariu, pra que pegar uma palavra dessas para transformar em sinônimo automático de gostar? Se surgir a ocasião de mencionar uma fascinação quase que sobrenatural sobre algo, vai ter que passar meia hora explicando a ideia porque a palavra certa foi roubada por um bando de preguiçosos que nem para pegar um dicionário servem.

Amar então… Todo mundo se ama! É impressionante… A pessoa ama seus pais, ama seus melhores amigos… e ama a batata-frita do restaurante da esquina. Ama os quase desconhecidos que viu por meia hora numa balada… É tanto amor que ele não vale mais porcaria nenhuma quando a ideia por trás dele é maior do que um sinônimo de gostar.

Novamente: Não é crime, as pessoas entendem. Só que esse argumento acomodado de dizer que todo mundo entende também pode ser usado com gestos e grunhidos no contexto certo. Se é festa de deixar o outro presumir tudo o que você pensa, dá para evitar qualquer tipo de comunicação e torcer para dar certo.

E com a mesma facilidade que as palavras de cunho positivo viraram uma mistureba preguiçosa, as negativas também vão pelo mesmo caminho. Se fosse para levar a sério no sentido estrito das palavras todas as brigas de internet, daria para temer por uma grande guerra civil prestes a estourar. Desgostar virou sinônimo de odiar! A palavra que expressa uma das sensações mais poderosas e primais do ser humano descreve músicas de ídolos adolescentes! Ódio não é pouca coisa.

Se você lê ou ouve uma palavra “pesada” dessas, sua mente deveria fazer uma tonelada de associações e modificar a sua impressão sobre todo o resto da frase ou ideia a qual você está sendo exposto. Se tudo o que ela faz é procurar pelo sinônimo na expressão “não gosta”, você PODE estar perdendo o fio da meada nessa troca de ideias. A merda é que muita gente já não liga mais para isso e provavelmente ela só quer dizer “não gosto” mesmo… Mas e se for ódio de verdade? E se a pessoa do outro lado está te dizendo algo tão visceral quanto a palavra deveria expressar? Ela vai precisar cometer algum ato violento para você finalmente perceber? Não é só preocupação fresca com erudição, é todo mundo perdendo lentamente a noção do que está falando ou escutando. E isso pode ter consequências sérias.

E sim, eu sei que alguns de vocês vão argumentar (ou pelo menos pensar) sobre a praticidade de deixar tanta coisa na base da presunção, ainda mais em tempos de torpedos e opiniões de 140 caracteres ou menos. Mas muito se engana quem acha que enfraquecer palavras aumenta a capacidade de se comunicar… Uma palavra no contexto certo economiza parágrafos. É para isso que elas servem mesmo: Para reduzir ideias complexas em símbolos curtos e de fácil compreensão e reprodução. Enfraqueça seu vocabulário e você vai acabar dizendo MENOS com MAIS palavras.

Evolução seria conferir significados ainda maiores nas mesmas palavras que usamos diariamente, e não essa burrice de pegar várias delas e conferir a mesma porcaria de significado. Além disso, é nesse ambiente de preguiça com o que se fala que os nossos tão queridos palavrões estão ficando cada vez mais sem graça. Tem muita gente que quando não consegue passar intensidade com as palavras que conhece, apela para os palavrões. Os palavrões deveriam ser expressões para imprimir dramaticidade nas frases, e não meros substitutos de palavras desconhecidas. “Porra” e “merda” viraram sinônimo de “coisa”, “caralho” acabou como mero ponto de exclamação… “filho da puta” é alguém que (eventualmente) faz algo que você não gosta.

Que merda! Além de deixar os palavrões com uma “consistência pastosa”, beges e sem graça, ainda estão empurrando a falsa presunção de que são sempre refugo de gente sem muito a falar. Irrita quando vejo babacas caírem de paraquedas aqui no desfavor para desvalorizar os argumentos de nossos textos (principalmente no caso da Sally, aparentemente mulher pode menos ainda) só porque leram alguns palavrões… No contexto certo, eles são um elemento de narrativa do caralho! É culpar quem usa direito por causa dos que usam errado só para complementar vocabulário anêmico.

O perigo é o tempo passar e gente que ainda respeita o significado e o “peso” das palavras começar a ser cada vez menos compreendida. Eu que quase NUNCA falo que amo algo ou alguém passo por emocionalmente distante. O que é verdade por outros motivos, mas é uma presunção tosca só por causa de usar as palavras direito. A palavra tem peso e merece respeito.

Não estou imune às minhas críticas, é difícil mesmo se policiar e tentar colocar a intensidade exata em cada palavra, mas a mera preocupação com isso já é um excelente caminho para se comunicar melhor. Palavras e seus significados exercem um fascínio (com o peso que a palavra merece) em mim que acabou virando profissão e hobbie. Mesmo o interesse nas palavras não te blinda de falhas desse tipo. Longe de mim exigir dedicação incansável, mas evitar estragar mais e mais palavras é algo que ajuda não só a sua capacidade argumentativa como diminui a intensidade desse problema como um todo na sociedade.

Se todos puderem colocar no mesmo saco palavras que deveriam ser muito diferentes impunemente, quem perde é a ideia. Fica tudo muito igual, fica muito difícil exprimir conceitos mais complexos… E aí a preguiça bate. O problema não é só você passar ideias genéricas demais para as outras pessoas, o problema principal é que menos e menos pessoas vão ter a base necessárias para fazer as tão importantes associações das quais nossos cérebros dependem.

Cada palavra tem seu significado. Nem mesmo os sinônimos são tão parecidos entre si se você realmente parar para pensar neles. Nem sempre o antônimo é o exato oposto do que você está pensando. Quem conhece mais palavras e mais significados tem mais a dizer, e isso não tem nada a ver com o tamanho de cada discurso ou texto.

Quando se reduz as palavras, reduz-se os significados! E isso é um perigo. Gerações vão chegando nesse mundo onde não só palavras que descrevem tecnologias antigas estão morrendo, mas onde a diferença entre as palavras que exprimem conceitos abstratos e até mesmo sentimentos estão se aglutinando num limitado vocabulário baseado na preguiça.

Acredito que já disse tudo o que queria dizer por agora. E essa é uma sensação muito boa…

Para dizer que amou o texto, para dizer que odiou o texto, ou mesmo para dizer que achou razoavelmente interessante embora não tenha te surpreendido muito: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Comments (16)

  • Ótimo texto Somir! Acho que as palavras estão banalizadas como todo o resto… o problema não é comunicação, mas a banalização de tudo.

  • Eu não sei se essa desproporção entre o uso e o real sentido das palavras são contribuição apenas da geração web. Acredito que vem muito mais da falta de estudo e principalmente, nos casos exemplificados no texto (amar, adorar, odiar), da fragilidade das relações humanas. Hoje em dia os relacionamentos são relâmpagos, tudo começa e termina muito rápido. Acredito que a web só veio a externar o que antes já era feito, porém sem ser demonstrado ao grande público. E isso você pode notar ao acessar o facebook, por exemplo. Tem muito tiozão de 50 ou 60 anos dizendo amar, odiar, adorar determinadas coisas, assim como ( e em maior número, obviamente) muita gente jovem fazendo o mesmo. Por isso acredito que o problema não vem da geração mais nova, a geração web (ou entendi errado o sentido que tu quis dar a ‘geração web’), apenas por meio das grandes redes sociais e cia estamos vendo o que antigamente não ficava tão às claras.

  • Como sempre, seus textos sobre comunicação. Vc deve saber o que eu acho disso. Admiro muito!

    Me fez lembrar de uma amiga que fala que ficou “séééculooss…” em um engarrafamento e que ao se divorciar de uma casamento sem filhos que “ex-sogra é para o rrreesssto da vida”.

  • Já pensei nisso, Somir. Pego-me, frequentemente, falando coisas que não representam o que realmente quero dizer. Na última vez, estava falando muitos palavrões. É difícil terminar com essa mania, mas um dicionário resolve (sim, eu carrego um dicionário na mochila).

  • Rorschach, El Pistolero

    Genial esse post… er, quer dizer…

    Acho que eu comentei algo parecido em um post da Sally uma vez, mas não custa frisar que é isso aí mesmo. Tem um número bem engraçado do Louis C.K. onde ele fala sobre isso. Deixo aqui o link pra se ouvir (em inglês).

    Pra quem não é versado no idioma do Harry Potter, ele basicamente brinca falando de uma turma que comprou um daqueles baldes de frango frito que se vende nos EUA e que disseram que aquilo era “AMAZING!”. Então ele pergunta: “Sério? Isso é maravilhoso? Você vai ‘gastar’ maravilhoso nisso? E se algum dia algo realmente importante acontecer com você? E se Jesus descer do céu e passar a noite toda fazendo um ‘amor gostosinho’ com você e deixar o próximo salvador na sua barriga? Que palavra você vai usar pra isso – você gastou amazing num balde de frango”.

    Confesso que não faço ideia de quando/como esse tipo de coisa começou, mas o Ge levantou um ponto que vale a pena parar pra pensar: o significado das palavras evolui conforme a sua utilização. Para uma geração que muda de amor a cada semana, para uma geração que idolatra Porta dos Fundos como “os novos gênios do humor”, eles realmente merecem que “gênio” e “amor” tenham esses significados porcos.

  • Somir, mais uma vez gostei muito do texto e concordo em vários aspectos. Penso em certo sentido que a dita “geração atual” economiza palavras não só por preguiça de pensar e associar ideias mas também pelo fato de que “o sistema” (digo aqui de maneira geral a web, redes sociais, essa sociedade do rápido e fácil etc) impõe isso.

    Outra problemática que aponto é: invariavelmente a língua evolui no decorrer do tempo de acordo com a utilização que as pessoas fazem dela. Ou seja: palavras e significados mudam. O problema no caso é quando nós estamos acostumados já com um conceito (por ex. no caso do texto a palavra “amor”, “ódio”), e enfrentamos um certo “estranhamento” desse conceito devido às novas atribuições dessas palavras pela “nova geração”.

    Ademais, outra problemática que o texto possivelmente pode levantar é em relação à essa turminha “brasileiro médio” de redes sociais: penso num sentido amplo (e inclusive já falei isso aqui em outros comentários) que falta para além de uma boa educação, LEITURA para muitos! Mas leitura de qualidade!

  • Outras palavras que por um motivo desconhecido o povão resolveu banalizar: “Genial” e “sensacional”. Acho particularmente a primeira ofensiva, colocar um vídeo engraçadinho (mesmo que seja abusando de um superlativo) e Newton no mesmo patamar é de dar dó.

  • Achei bem bacana o texto, não tinha pensado sobre o assunto ainda, mas acho que tu tem razão e talz. Na verdade, queria perguntar outra coisa: Somir, você conhece o Kopimismo? O Kopimismo diz que copiar informação é um ato divino e a internet é sagrada, acho que encontrei minha religião, haha!

  • Rapaz, PARABÉNS!!!
    Um dos melhores textos sobre o assunto que eu já li até hoje. Coloca em palavras o que venho observando há algum tempo. Apesar da inegável maravilha do mundo conectado, a pressa das pessoas em se fazer notar e parecer cheia de idéias, com um monte de postagens sem conteúdo nos trouxe a essa situação. Outra dificuldade constante é a dificuldade de aceitar a leitura como uma obrigação. Conheço poucas pessoas que, além dos livros da moda, os quais, bem ou mal é um começo, se propõem a ler alguma coisa com mais conteúdo. Conheço menos pessoas ainda que, por exemplo, lê algum conto de Edgar Allan Poe (traduzido para PORTUGUÊS), que diz ter gostado…. a resposta mais comum é, “não entendi muito bem”. A frase padrão já se forma na minha cabeça “sacrifiquem antes que se reproduza”..hehehehe.
    Mas não podemos, de todo, culpar somente o povo da “terra média”. Lembro de ter lido há pouco tempo uma crítica, à época do julgamento do mensalão, sobre as expressões utilizadas pelos juízes numa sessão aberta ao público, dizendo ser desnecessária tanta erudição, já que todos tinham acesso ao julgamento e muitos não compreenderiam. Claro, muitas expressões são praticamente exclusivas do meio, mas, em vez de sugerir que o povo se eduque a ponto de ter um bom discernimento do conteúdo, pede que o interlocutor “facilite” o texto. Desanimador!!!

  • Bacana o texto, pegou num ponto sobre o qual eu vinha pensando. Já há um tempo ficava na minha cabeça o quanto eu venho ouvindo/lendo “eu amo” e “eu odeio”…é uma frequência grande. Mas não tinha parado pra formar uma ideia do porque disso e acho que seu texto acabou fazendo isso. Concordo com o que você disse, tanto a respeito da banalização e do descuido com o vocabulário quanto a respeito de ser difícil se policiar pra não fazer o mesmo. Em um mundo de amo ou odeio às vezes a gente esquece que pode simplesmente gostar ou desgostar de algo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: