Siago Tomir não tem planejamento

Siago Tomir é uma pessoa desatenta. Até aí, tudo bem, existem milhões de pessoas desatentas no mundo que criam mecanismos para lidar com isso e acabam por levar uma vida ótima. O problema de Siago Tomir é que ele não considera ruim o fato de ser desatento. E sua desatenção o leva à falta de compromisso, irresponsabilidade e conflitos.

Eu sou muito metódica. Levo prazos muito a sério e sigo uma rotina programada e regrada. Vocês podem imaginar o tipo de atrito que existia em minha relação com Siago Tomir.

Após inúmeras discussões onde Siago, invariavelmente, tentava me convencer de que ele era assim e não tinha condições de mudar, decidi tomar uma atitude drástica: comprei um grande quadro branco daqueles que a gente escreve com pilot e pendurei na sala. Era grande mesmo. Não tinha como não ver. Aquilo seria minha última tentativa de colocar um mínimo de ordem na nossa rotina.

Siago Tomir chegou em casa, com o humor pior do que o habitual, porque estávamos saindo de uma briga por causa da desordem na qual ele leva sua vida. E Madame se ofende quando é cobrado, ainda que seja com razão. Me viu escrevendo do quadro branco e já começou com suas ironias: “Vai alfabetizar seu personal?”. Ignorei, continuei escrevendo.

Siago Tomir sentou-se e ficou assistindo. Quando acabei ele me olhou com um misto de desprezo e curiosidade.

Sally: É minha última tentativa de te fazer levar uma vida próxima do normal

Tomir: Eu não quero uma vida próxima do normal

Sally: Sua vida profissional você leva como quiser, mas o nosso relacionamento eu quero que seja próximo do normal

Tomir: Minha Cara… lamento lhe informar… você não é próxima do normal

Sally: Estas são suas obrigações para o dia de amanhã

Tomir: Você quer me obrigar a fazer as coisas?

Sally: Não, eu quero ME DESOBRIGAR a fazer as coisas ou a te lembrar de fazer as coisas. Tá tudo aí. Se não quiser fazer, não faça, mas tenha a cortesia de me avisar, porque são coisas que envolvem a mim também.

Tomir leu o quadro lentamente e depois começou a reclamar sobre minhas “exigências despropositadas” e sobre estabelecer uma “rotina estressante para ele”. Faço questão de escrever aqui quais eram as minhas “exigências despropositadas” e a “rotina estressante” que eu impunha:

09:00 – Tomar o remédio sem estar com o estômago vazio

12:00 – Lembrar de ligar para avisar se não puder voltar para almoçar em casa OU não ficar puto se eu almoçar sem você (escolha a opção que lhe for mais cômoda)

17:00 – Tomar o remédio sem estar com o estômago vazio

19:00 – Estar de corpo presente para me acompanhar à academia OU ligar avisando que não vai estar de corpo presente para me acompanhar na academia OU não ficar puto caso eu vá sem você

21:00 – Lembrar de ir me buscar na academia, caso não tenha ido comigo OU não dar faniquito e ficar três dias sem falar comigo porque atrasou 40 minutos sem avisar e eu acabei pegando carona com o meu personal

22:00 – Fazer um mínimo de silêncio no recinto porque outro ser humano estará dormindo. Não acender a luz quando entrar no quarto porque outro ser humano estará dormindo. Não chamar o outro ser humano que está dormindo a menos que seja um motivo de relevância (obs: perguntar se tem ovos na geladeira não é um motivo de relevância)

Siago Tomir riu do meu quadro. Siago Tomir debochou do meu quadro. Siago Tomir fez pouco caso do meu quadro e quando eu perguntei se ele poderia colocar em prática tarefas tão estressantes como não me acordar para perguntar sobre ovos, disse que “Vou tentar, mas não posso prometer nada”.

No dia seguinte, Siago Tomir se saiu melhor do que de costume. Lembrou em uma das vezes de tomar o remédio sozinho e lembrou de avisar que não poderia me buscar na academia. O resto esqueceu, mas isso já era um progresso.

Assim fomos levando. O quadro servia para que eu não tenha que repetir mil vezes a mesma coisa. Poupava a minha voz, eu simplesmente apontava para o quadro. Mas eu sentia que o quadro ainda incomodava Siago Tomir.

Um belo dia chego em casa e encontro um passaralho desenhado no quadro. Achei aquilo meio que falta de respeito. Coisa de criança, né? Apaguei o passaralho. No dia seguinte tinha um maior ainda. Perguntei a Siago Tomir qual era o problema dele e ele fez um longo discurso sobre como ele também tinha direito a usar o quadro.

Expliquei que se ele queria usar o quadro para me relembrar de tarefas, podia usar, mas não para obras de arte como aquela. Ele não se fez de rogado, pegou o pilot e dividiu o quadro ao meio, escrevendo “Sally” de um lado e “Tomir” de outro. Deu dez segundos e ele colocou um parêntese onde se lia (o fodão) ao lado do nome dele.

Sally: Ô Palhaço! Se você quer que eu faça alguma coisa, é só pedir! Eu não tenho deficiência cognitiva que nem você, não preciso ficar lendo o quadro!

Tomir: Pelo visto você nem sabe o significado de “deficiência cognitiva”

Sally: Basta me pedir em vez de escrever no quadro

Tomir: Eu quero escrever

Sally: Então ta, escreve. Escreve que eu quero ver o que é que eu estou deixando de fazer que está te incomodando!

Tomir ficou pensativo. Depois de alguns segundos começou a escrever. Quando ele saiu da frente do quadro, pude ler uma meia dúzia de tarefas imbecilóides que eu faria mesmo sem quadro nenhum.

No dia seguinte, coloquei um “ok” escrito do lado de cada tarefa minha cumprida, para mostrar a ele que cumpro com meus deveres. Ele encarou isso como uma provocação (até porque, se a moda do “ok” pegasse, ele estaria muito do fodido, porque nunca completava todas as suas). Simplesmente apagou meus “ok” e escreveu “Favor não invadir a outra metade do quadro”.

Fiquei irritada e acrescentei nas tarefas do dia seguinte “Procurar um médico para tratar dessa TPM e desse TOC com metades do quadro”. Evidente que o Rei da Última Palavra não deixou barato e escreveu do lado dele “Tomar um Lexotan para parar de levar um quadro a sério”.

Daí pra frente, fomos ladeira abaixo. Porque quando a gente brigava eu sempre deixei bilhetes desaforados pela casa (ilustrados) mas nunca havia possibilidade de resposta (acho que já fiz um Siago Tomir sobre isso). Com O Quadro, ele podia responder. E se deixar ele responder, ele discute até o próximo milênio. Ele GOSTA de discutir, ele sente prazer em discutir, é isso que faz dele um troll.

O Quadro, que inicialmente era destinado a colocar tarefas, virou um MSN precário e do mal. Troca de gentilezas cada vez piores eram deixadas no Quadro. E nenhum dos dois queria amarelar, ambos queriam ter a última palavra. Os diálogos no Quadro ficavam cada vez mais azedos.

Alguém tinha que ceder. Em algum momento alguém tinha que cansar e deixar o outro ter a última palavra. O problema é que Siago Tomir é muito teimoso. Eu não sou teimosa, teimoso é quem teima comigo. Assim ficamos, discutindo via Quadro, apagando as frases mais antigas e colocando frases novas.

A coisa estava no seguinte pé:

Foi com um Quadro mais ou menos assim que a irmã do Tomir veio me visitar. Esta pessoa que eu apelidei gentilmente de Tomira, porque tem a mesma personalidade repulsiva do irmão, veio me fazer uma visita. Entrou na sala e se deparou com O Quadro. Ficou lendo de boca aberta. Apenas disse “Mas… PORQUE?”. “Porque se eu parar, ele ganha” foi a minha resposta. Ela me lançou um olhar de desprezo.

A Tomira é assim. Ela fala mal do irmão até dizer chega, mas se mais alguém ousar falar mal, ela faz um escândalo. E ela é uma pessoa muito, muito, muito difícil. Ficou me dando conselhos (errados) sobre como lidar com o irmão naquela tarde. Me passou um sermão por causa do Quadro. Disse que aquilo era inaceitável, infantil e desnecessário. Ela não entendia a seriedade da guerra fria que havia se estabelecido com O Quadro.

Quando Tomir chegou, fui me arrumar para ir à academia. Enquanto trocava de roupa, ouvi ela dando um esporro similar no irmão. Ele respondeu “Se eu parar, ela ganha” e Tomira gritou “PUTA QUE PARIU, VOCÊS SE MERECEM!”.

Tomira tem disso. É uma pessoa invasiva. Depois de muito esporro, pegou o apagador e apagou nosso diálogo no Quadro dizendo “Pronto, agora ninguém ganha, ninguém perde! Acabou!”. Tomir protestou e eu corri para a sala e também protestei. Ela passou sermão e disse que não queria mais ver ataques de um ao outro no Quadro.

Peguei o Pilot e escrevi “Tua irmã é uma mala”. Tomir escreveu do lado dele “Mala sem alça” e assim iniciou-se um novo diálogo, ofendendo e debochando da Tomira, que acabou por se retirar super ofendida.

Até o final do relacionamento usamos O Quadro. Não com tanta freqüência como no começo. Apenas para lembretes rápidos e uma alfinetada ou outra em momentos de putez. UMA ÚNICA VEZ, onde a cagada foi gigante, Siago Tomir usou O Quadro para se desculpar (porque ao vivo nem pensar, ele teria um troço). Quase chorei de emoção. Recomendo a adoção do Quadro para casais pouco convencionais e criativos. O Quadro ajuda em alguns casos.

Para me perguntar o que merda o Somir fez para eu postar dois Siagos Tomir na mesma semana, para dizer que vai comprar um quadro e para perguntar o que foi que ele fez de tão grave que o levou a escrever um pedido de desculpas, já que ele acha que está sempre certo: sally@desfavor.com