Publiciotários: Mente suja.

Ei... hã?No último Festival de Cannes, uma agência brasileira faturou dois Leões, um de prata e um de bronze (O Leão é o Oscar da publicidade), com uma campanha para a montadora Kia Motors. A Moma Propaganda produziu peças para divulgar o novo ar-condicionado instalado nos carros da marca, que criariam “zonas de temperatura” dentro do carro.

A tema da campanha é “Uma temperatura diferente de cada lado”. E para ilustrar a ideia, excelentes ilustrações demonstravam como a mesma cena poderia “esquentar” de acordo com o ponto de vista. Aqui estão as peças:

Clique para ampliar, anta.

Aposto que logo depois de ver a do professor e a da aluna, você deve ter imaginado que isso era um pouco… corajoso… demais para um mundo tão politicamente correto como o nosso. Mas como em publicidade coragem costuma render prêmios, a banca do festival concedeu duas estatuetas para a agência brasileira. É importante ressaltar: As peças foram analisadas e PREMIADAS no maior festival mundial de publicidade.

A impressão que passa é que a banca julgadora considerou as peças como formas criativas de passar uma mensagem. E também que bastava meia dúzia de neurônios para entender que não tinha nenhuma mensagem horrível escondida ali. Mas que inocência…

Meia dúzia de neurônios é um luxo para o cidadão médio. Bastou a campanha cair na internet que as acusações de apologia à pedofilia proliferaram em escala geométrica. O assunto virou a polêmica da vez no mercado publicitário. Pela suposta vertente pedófila, mas também pela desconfiança que nenhuma marca gigante, como a Kia Motors, se arriscaria a lançar uma propaganda que desafiasse minimamente a compreensão do grande público.

Formaram-se duas frentes de ataque: De um lado aquela gente chata obcecada por pedofilia, pressionando o festival a explicar porque premiou uma campanha tão “incorreta”; de outro os publicitários, que não conseguiam engolir que aquela campanha tivesse realmente sido publicada.

Depois de tomar muita cacetada, a Kia Motors veio à público dizer que não tinha pedido aquela campanha, nem sabia que ela existia e jamais teria aprovado algo assim. Foi a deixa: Cannes lavou as mãos e retirou os prêmios da Moma, além de baní-la por um ano da competição.

Agora, pensem comigo… não é estranho que uma peça que nunca foi veiculada possa concorrer e ganhar o MAIOR prêmio da publicidade mundial? Não deveria ter um controle maior por parte do festival? Dever, deveria. Mas não tem por um excelente motivo: A maior parte das campanhas premiadas não passa de “masturbação criativa” das agências.

As grandes empresas sempre tem seus departamentos de marketing, cheias de burocratas intelectuais que se cagam de medo de arriscar seus empregos com linhas de comunicação ousadas e inovadoras. É compreensível que cada um se preocupe com o seu, mas a crescente profissionalização nesse setor aplicou um nó criativo nos publicitários mais abusados. Toda empresa tem que ser certinha, do bem, humilde e sustentável hoje em dia.

E convenhamos que a chance de um discurso interessante vindo de uma personalidade corporativa tão entediante é minúscula. E as agências no topo do mercado mundial já são mega-conglomerados com milhões e milhões de dólares de custos operacionais mensais. Não dá para ficar mais com aquela atitude “inovação acima de tudo” de épocas mais românticas da propaganda. Não comprometa o cliente, custe o que custar. Afinal, o dinheiro está vindo dele.

Correndo o risco de ver um festival onde cinco mil campanhas exaltando a sustentabilidade da marca X ou Y, virtualmente idênticas, disputam o mesmo prêmio; Cannes decidiu fazer vistas grossas para algumas “molecagens” das grandes agências, notavelmente com campanhas de pouca ou nenhuma exposição real. É de praxe nas maiores: Faz uma chata para o público retardado, faz uma boa para disputar o Cannes. Bota a babaca e previsível no intervalo do Fantástico, bota a criativa e ousada numa página perdida de uma revista de circulação restrita e elitizada. Teoricamente ela está publicada!

Para quem já sabia desse truque, foi estranho ver Cannes tirando Leões de uma agência pela peça não estar publicada. Ficou bem na cara que foi uma lavada de mãos por causa da repercussão negativa das peças premiadas. Se a Kia não tivesse lançado comunicado oficial queimando a agência, seriam dois troféus garantidos na estante da Moma. Aposto que outras na mesma condição “clandestina” ganharam prêmios na mesma edição.

Como publicitário, acho triste que se puna uma peça corajosa por causa de pressão popular barata. Estou cagando e andando para a parte de não ser “campanha real”, pelos motivos citados anteriormente. Seria só mais uma para a longa coleção de propagandas fantasmas premiadas.

O que realmente preocupa é que a patrulha da chatice já conseguiu botar as garras dentro de um dos únicos portos seguros para a criatividade publicitária restantes. E é justamente a internet, suposta ferramenta de democratização da informação, que teve papel decisivo nesse restrição estúpida de expressão.

Quanto mais gente julga uma coisa, maior a tendência de conformidade. É por isso que as empresas estão nessa onda de babaquice com sua comunicação atual. Como elas querem muito alcance, não podem se arriscar a ofender ninguém. Tem gente que parece que sai da cama toda manhã pensando “Como vou me ofender hoje?”. E é essa gente que acaba gerando os padrões de conformidade hoje em dia.

O cidadão médio está se ofendendo com qualquer porcaria. E não estou só fazendo uma defesa da publicidade, boa parte da culpa é dela também. Quem abraça essa mania moderna de ser bonzinho sem personalidade para ser popular contribui para o problema. Aposto que a própria Moma já fez campanhas e mais campanhas reforçando essa mentalidade “empresa sustentável”. Blergh.

E o povo compra esses ideais. O bombardeio diário de mensagens alardeando que as melhores empresas, serviços e produtos são aqueles que não se comprometem com porra nenhuma e morrem de medo de entrar em polêmicas acaba moldando a mentalidade social. Publicidade funciona te dizendo que o que você faz é errado, sua vida é uma merda e a única forma de se adequar ao mundo e ser feliz é consumir.

Era de se esperar que a indústria da aspiração enfiasse goela abaixo do povo a mania de se ofender por tudo. É humano sentir-se melhor que outras pessoas ao apontar seus erros (mesmo ignorando os próprios). O cidadão é tratado feito uma criança insegura, incapaz de entender mensagens mais complexas do que “responsabilidade social” e “compromisso com o futuro”. Evidente que ele vai revidar cacetando o primeiro otário que não segue esse padrãozinho insosso.

Voltemos à propaganda da discórdia. Eu não enxergo temas pedófilos na peça do professor e da aluna, mas entendo claramente como isso veio à tona: Baixo desenvolvimento de pensamento crítico. É algo que eu vejo demais aqui no desfavor em comentários “ofendidos”, a pessoa tem muita dificuldade de relacionar idéias dentro de um contexto. Cisma com uma frase ou uma palavra sem considerar o quadro geral.

No caso da propaganda, as pessoas que ficaram ofendidas pareciam enxergar a relação entre criança e professor e a tensão sexual. Mas a linha divisória e a óbvia diferenciação de estilos visuais passava despercebida na análise. A separação é justamente o contexto dessas ideias. O contexto exprime a dualidade das situações. Quem analisa pelo contexto não chega à conclusão de tensão sexual entre criança e adulto. A propaganda, por incrível que pareça, diz exatamente o oposto do que foi acusada de dizer.

A “cagada” da agência foi colocar a mensagem justamente no ponto fraco da compreensão da maioria das pessoas. E digo cagada entre aspas porque ninguém pega uma conta gigante como a da Kia sem entender conceitos básicos de publicidade. (Só a agência da propaganda de cagar na casa do Pedrinho… esses eu não sei como conseguiram um emprego…)

Se fosse algo para passar na Globo, pode apostar que seria completamente diferente. Prestem atenção na publicidade de massa… Cada elemento significa alguma coisa importante por si só. Não tem contexto. É o lance da propaganda de cerveja: “O cara está tomando cerveja com os amigos e uma gostosa de biquíni está dando bola para ele.” Como a propaganda não te dá mais NADA para trabalhar mentalmente, a associação automática é entre consumir cerveja e conseguir popularidade (e sexo). E mesmo que você seja esperto ao ponto de perceber que é isso que eles querem te fazer acreditar, isso passa para dentro da sua mente simplesmente por não ter nenhuma concorrência de outras ideias ao mesmo tempo.

Deixar as propagandas sem contexto serve justamente para tirar qualquer barreira que você possa ter em relação ao tema. Quanto mais vazio você for, mais espaço para enfiar desejos de consumo (dos quais você nunca precisou para começo de conversa…).

Como a propaganda de massa e cada vez mais a mídia de massa só se importa em mastigar o significado das coisas para nós, não é nenhuma surpresa que muita gente só consiga enxergar uma tensão sexual entre criança e adulto naquela peça da Moma.

Sei que é possível enxergar essa relação, mas a “sacada” é justamente essa. Subverter a idéia mais óbvia com a aplicação de um contexto. É falta de pensar achar que profissionais de uma grande agência lançariam uma campanha de apoio explícito à pedofilia num mundo que trata o assunto como um dos maiores crimes possíveis. Tem alguma lógica?

Falta o contexto na análise direta da peça, falta contexto na análise da realidade. Alguns babacas aproveitam para se promover nessa indústria da ofensa, o povão não ousa se arriscar fora da zona de conforto do politicamente correto… Dá no que dá.

Não fui eu que fiz a campanha, apesar da longa defesa. Achei bacana, mas não é a oitava maravilha do mundo. Quando caiu na mão de gente que pensava um pouco, ganhou prêmios. Quando foi jogada à opinião pública, virou polêmica e punição. Não era para existir um abismo tão grande de opiniões. Isso sim é um problema.

A publicidade tenta empurrar a mania de julgar pela parte para ser efetiva, não vão ser dois troféus a menos de uma agência tupiniquim que vão mudar o quadro. A polêmica da peça não passa de um efeito negativo facilmente compensado pelas vantagens de injetar melhor desejos e aspirações na mente dos consumidores.

E não duvide, essas mensagens passam direto pelas frestas dos seus pensamentos nas propagandas. Entender que a publicidade não quer sua mente totalmente funcional na maior parte do tempo vai te blindar melhor. Aposto sem medo de perder que você tem desejos de consumo que não sabe nem explicar. Evidente: Falta contexto.

Não deixe que safados como eu roubem sua capacidade de pensamento crítico.

O desfavor é o único blog que te deixa mais inteligente.

Para dizer que a campanha é pedófila sim pelos motivos que eu já apontei como errôneos aqui e ainda esperar resposta, para sugerir campanhas que você quer ver esmiuçadas ou ridicularizadas, ou mesmo para cismar com uma parte do texto: somir@desfavor.com

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Comments (19)

  • "Trollagem Uol, aushdausdasudhahudahuda"

    Aposto que ele se inspirou na agilidade do Ronaldo em desviar do assunto dos travecos no motel.

  • "Somir, não sou dos leitores que integram teu fã-clube, mas dessa vez sou obrigado a concordar."

    Eu tenho um fã-clube? Aliás, porque todo mundo trata concordar comigo como uma concessão terrível?

    "ainda há duas outras famílias de marcações visuais que deveriam ter sido percebidas por quem viu a peça da escola."

    Gostei da análise. Várias dessas coisas deveriam atacar diretamente o subconsciente de quem viu a peça, incrível como nem isso mais anda funcionando hoje em dia.

  • "Eu vou cismar com uma parte do texto. As duas frases finais…"

    Ok, deixa eu melhorar…

    —X—

    *começa a trilha, fotos de crianças segurando mudas de plantas, pessoas estudando, amigos multiétnicos abraçados), idosos dançando*

    "O desfavor faz questão de reafirmar seu compromisso com a sustentabilidade e a responsabilidade social."

    *trilha aumenta, várias imagens de pessoas sorrindo começam a formar um mosaico*

    "Afinal, acreditamos que é com pequenas ações que todos nós (pausa dramática) fazemos um mundo melhor."

    *o mosaico de rostos forma um globo que se transforma no planeta Terra*

    "Desfavor, compromisso… com VOCÊ."

  • "Gostei de Publicidade. Ela explora a burrice das pessoas… mas acho que esse tiro saiu pela culatra."

    Isso só explicita como as agências fazem essas campanhas bestificantes de propósito. Não falta criatividade nas grandes agências, sobra eficiência.

  • "Só faltou entregar uma imagem com anotações do estudo da peça, seus significados e afins."

    Digamos que estou combatendo fogo com fogo.

    "É legal ler você escrevendo sobre publicidade. A coluna tem potencial."

    Eu sempre deixava vazar uma opinião ou outra sobre o tema em outras colunas. Vai ser melhor poder concentrar essa relação de amor e ódio com a publicidade numa coluna só.

  • "Somir, industria da ofensa… Muito boa.

    Falta tentar explicar para o povinho ai que esse joguinho do politicamente correto é pura manipulação."

    Contexto e parte. O politicamente correto é bem visto se analisado apenas como ferramentas de controle da caótica natureza humana. Mas é uma armadilha no contexto geral. As pessoas não racionalizam seus códigos éticos e morais, apenas seguem mais e mais mandamentos.

    E como mandamento sem contexto é o que realmente vende, é o lucro que empurra essa babaquice para frente.

    Neguinho usa sacola ecológica, recicla latinha, mas entulha o mundo com um monte de criança!

    Bom-senso reduz consumo.

  • Pôneis Malditos, Pôneis malditos
    Venha com a gente atolar
    Odeio barro, odeio lama
    (que nojinho!)
    Não vou sair do lugar

    Sério, eu amo os pôneis malditos. Isso quer dizer que eu sou uma imbecilóide infantilizada que se encanta com uma propaganda coloridinha e um jingle grudento?

  • Cris MT,

    Tradução "Rádio Cidade":

    1) Quadrinho do príncipe encantado

    "I'll Break the spell by kissing you"

    Vou quebrar o feitiço te beijando.

    "I've come to rescue you"

    Vim te resgatar

    "Oh, It's my prince charming and his huge stallion"

    Oh, é meu belo príncipe e seu garanhão enorme

    "indeed, my beloved lady"

    De fato, minha adorada lady

    "So, any interesting ideas on how I can show you my gratitude?"

    Então, alguma ideia de como posso mostrar minha gratidão?

    2) Colegial

    "Thanks for staying after class with me, Mr. Larkin"

    Obrigado por ficar depois da aula comigo, Sr. Larkin

    "It's my pleasure, believe me"

    O prazer é meu, acredite

    "I brought you this apple. Hope you like it"

    Comprei essa maçã. Espero que goste.

    "MMMM, It's delicious…so juicy"

    MMMM, está deliciosa…tão suculenta

    "So, where should we start"

    Então, por onde começamos?

    "how about anatomy?"

    Que tal anatomia?

    Suellen

  • Somir, não sou dos leitores que integram teu fã-clube, mas dessa vez sou obrigado a concordar.
    Acredito que você também viu o que vou comentar agora e só não mencionou por conta do limite de páginas: como se não bastasse a diferença óbvia de estilos gráficos entre as duas colunas de cada peça, ainda há duas outras famílias de marcações visuais que deveriam ter sido percebidas por quem viu a peça da escola.
    1) Idade da aluna nas duas peças. Além da marcação física óbvia de ser uma personagem adulta, um uniforme escolar daqueles vestido por uma ocidental só pode marcar que o cenário é uma faculdade dos EUA ou coisa que o valha.
    2) Quebras de continuidade:
    2.a) Colarinho do professor: na coluna adulta, o professor afrouxa o colarinho, que continua colado no pescoço na coluna infantil; e
    2.b) Posição relativa entre professor, aluna e carteira/mesa no terceiro quadro das duas colunas.
    Se a diferença de idade entre aluna da esquerda e aluna da direita não o fez, pelo menos as quebras de continuidade deveriam no mínimo acender uma luz amarela de "Mas será que não são duas cenas distintas, caramba???" na cabeça de quem lê.

  • "Não deixe que safados como eu roubem sua capacidade de pensamento crítico.

    O desfavor é o único blog que te deixa mais inteligente."

    Publicitário até o fim. Aliás, você mastigando o porque da propaganda não ter nada de pedofilia também foi muito "publicitário" da sua parte. Só faltou entregar uma imagem com anotações do estudo da peça, seus significados e afins.

    É legal ler você escrevendo sobre publicidade. A coluna tem potencial.

  • Somir, industria da ofensa… Muito boa.

    Falta tentar explicar para o povinho ai que esse joguinho do politicamente correto é pura manipulação.

    Papo de sustentabilidade só serve para levantar a marca vendida entre os pseudointelectuais, que muitas vezes tem um padrão de vida mais alto que a média e vive querendo meter o bedelho posando de formador de opinião.

    E não me surpreende isso vindo de uma sociedade que lançou mão da "censura" até mesmo para a presença de uma animação de tartaruga em comercial de cerveja.

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