Desfavor Convidado: Ronald Biggs

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Desfavor Convidado: Ronald Biggs

Conhecido pelo assalto em 1963 ao grande trem pagador, vejamos como Ronald Biggs, conhecido como o “ladrão do século”, acabou Indicado ao prêmio Pilha.

Engraçado que Biggs seja conhecido como “ladrão do século” porque se há uma coisa em que ele sempre foi péssimo foi roubar. Ele era um inútil, a última pessoa a ser chamada para um assalto. Ele começou saqueando ruínas de apartamentos bombardeados durante a guerra. Sua primeira condenação foi aos 15 anos por roubar lápis. Antes de atingir a maioridade, já havia sido condenado nove vezes. Quando foi servir na aeronáutica, acabou preso por seis meses por invadir uma farmácia. Expulso, foi condenado mais uma vez por furtar um carro e, enquanto cumpria essa nova sentença, acabou ficando amigo de Bruce Reynolds, idealizador do plano e líder do grupo que realizou o assalto ao grande trem pagador.

O grande trem pagador recebeu esse nome pois atravessava o país, da Escócia para Londres, levando dinheiro enviado pelo correio (esse sistema absurdo funciona até hoje no Japão, mas quem para um trem-bala?). O plano era relativamente simples: forjar um sinal vermelho para o trem parar no meio do caminho, dominar os maquinistas, levar o trem para cima de uma ponte, carregar os malotes (em notas usadas de 1, 5 e 10 libras) para um caminhão debaixo da ponte, e trazer o dinheiro para uma fazenda próxima, comprada com esse propósito, próxima ao local planejado para o roubo.

Já o grupo que realizou o roubo consistia de peixes pequenos que se consideravam marginalizados pela sociedade. Questões de caráter à parte, eram brancos, casados, com trabalhos de pouca qualificação, deixados de lado por um governo trabalhista que, ao mesmo tempo em que não fazia porra nenhuma para diminuir a fossa entre ricos e pobres, concedia uma série de benefícios para integrar, em uma sociedade ainda em recuperação de mais de 30 anos de crise, negros e asiáticos ainda mais desqualificados vindos das colônias, com exceção de médicos indianos, importados aos montes para trabalharem nos hospitais do país (parecido com a Suiça que conhecemos hoje, não?).

Biggs foi o último a se juntar ao grupo. Ninguém realmente o queria. Ele não tinha nenhuma habilidade em especial e era vistos pelos outros como um pé-frio. No começo de 1963, Biggs, que andava na linha há algum tempo, pediu emprestado a Reynolds 500 libras para montar uma mercenaria . Reynolds negou o empréstimo, mas disse ao amigo que se ele trouxesse um maquinista para dirigir o trem pagador, ele entraria na vaquinha. Na época, Biggs fazia um bico de pedreiro na casa de um maquinista aposentado. Assim, Biggs nem precisaria subir no trem. Dado seu passado recheado de cagadas, ele só tinha que levar o maquinista para manobrar o trem para o local combinado e levá-lo de volta.

O curioso é que Gezuiz Godzilla até quis ajudá-lo. Na véspera do dia marcado para o roubo, Biggs ganhou justamente o que precisava para montar sua marcenaria em uma corrida de cavalos. Mas ele era um homem de palavra e não ia deixar seu amigo Reynolds na mão.

O roubo em si, ocorrido em 8 de agosto de 1963, foi um sucesso. Durou apenas 15 minutos, tanto que os demais funcionários do correio continuaram a separar a correspondência dentro de outros vagões, separados do trem junto que seguiu o vagão com o dinheiro. Só dois maquinistas foram agredidos, um com maior gravidade. 125 malotes com cerca de R$ 182 milhões de reais foram levados de caminhão para a fazenda onde o grupo se escondeu.

Quer dizer, nem tão bem sucedido. Biggs, o cagado, trouxe um maquinista aposentado que não tinha familiaridade com o trem. Com isso, os maquinistas agredidos foram obrigados a seguir com o trem para o local combinado para a desova do dinheiro, o que, mais tarde, deu uma boa dica para a polícia de onde poderia encontrá-los, pois mandaram os maquinistas ficarem quietos por trinta minutos.

Ainda assim, conforme o combinado, Biggs recebeu o mesmo quinhão do que os outros: algo equivalente hoje a, por baixo, uns 10 milhões de reais.

Um mês depois do roubo, Biggs acabou preso. Claro que foi pego. Ele sempre era preso. Ao decidir passar duas semanas escondido na fazenda, o grupo chamou atenção de vizinhos que acharam estranho um bando de homens passarem dias sem nada a fazer em uma fazenda. Um desses vizinhos até veio conhecer o grupo, e disseram a ele que se tratava de um grupo de pessoas que iria reformar a fazenda. E, obviamente, nada de reformas até o dia do roubo e nos dias seguintes.

Eles até tinham um rádio sintonizado na frequência da polícia. Porém, em vez de aproveitar o tempo livre para limpar quaisquer pistas, os homens esperaram a poeira baixar bebendo todas, comendo e jogando Banco Imobiliário com o dinheiro roubado. Assim, quando souberam que a polícia se aproximava, tiveram que fugir às pressas, deixando a fazenda escancarada cheia de pistas. Só de impressões digitais, havia cerca de 300, além de 50 marcas de palmas.

No caso de Biggs, foi ainda pior. Por ser um inútil, deixaram ele a cargo da cozinha. Assim, encontraram impressões digitais dele em utensílios de cozinha, mantimentos e, lógico, Banco Imobiliário. Por ser um cagado, seu irmão morrera justamente na véspera do crime, e sua esposa ligou para o local onde Biggs dissera que passaria algumas semanas para fazer um bico. Não o localizando, a esposa preocupada pediu ajuda à polícia para localizá-lo, o que acabou com seu álibi.

Ou seja, não fosse o descuido de gente como Biggs, a acusação não teria como provar quem e quantos participaram do roubo. Com as impressões digitais encontradas na fazenda, o júri não precisou de muito convencimento para ligar os réus ao crime.

Os membros do grupo (nem todos, 3 deles não foram localizados até hoje) receberam sentenças desproporcionais pelos crimes de formação de quadrilha para roubar o correio e lesão corporal grave. Biggs, o mais incompetente do grupo e que teve o papel menos significante no roubo, por conta de seus antecedentes, foi julgado em separado e condenado a passar 30 anos na cadeia.

Contudo, quinze meses depois, conseguiu fugir da prisão, e foi para Paris, onde realizou cirurgias plásticas para mudar sua aparência. De lá, foi para a Austrália em 1965, e a família o seguiu em 1966. Já a essa altura, o que ele havia ganhado no roubo praticamente havia sido gasto.

Só que não foi um dinheiro tão bem gasto assim, afinal, já em 1967 a polícia já o procurava por lá. Não só por uma questão da plástica ter tido um resultado duvidoso, mas, convenhamos, do que adianta mudar de rosto se seus familiares, sua mulher, não mudarem nada? Sobretudo por se tratar de um país de imigração, que acolhia ainda muitos ingleses.

Assim, em 1969, na pindaíba trabalhando como carpinteiro e pedreiro, depois de quase ser preso pela polícia, ele passou a viver escondido. Nesse ponto, sua sorte começou a mudar. Cagado por ter uma mulher que ainda o amava, apesar dos pesares, sua esposa resolveu vender a estória deles para um jornal por uma boa quantia. Com isso, ela pôde ajudar o marido a fugir de navio para o Panamá e, depois, para o Brasil, onde chegou em 1970. Além disso, a mulher também comprou uma casa para a família, pôde fazer faculdade, tornou-se uma editora de sucesso por lá e seguiu mantendo contato com Biggs, visitando-o ocasionalmente.

Nesse ínterim, outros comparsas que também haviam fugido se entregaram e receberam penas de metade da duração de Biggs. E os que haviam sido condenados junto com ele a penas de até 30 anos começaram a ser soltos, o último em 1978. Até porque descobriram que o próprio juiz havia, em uma apelação pouco antes de dar penas tão exageradas, reduzido a sentença de uma pessoa que cometera um latrocínio. Ao passo que, no crime do trem, o maquinista sofrera lesões graves, só morrendo mesmo em 1970, de leucemia.

Diante desse quadro, Biggs negociou em 1974 com um jornal sua volta à Inglaterra, vendendo sua história até então. Porém, o jornal o enganou, e o chefe da polícia veio ao Rio pessoalmente prendê-lo.

Contudo, o Brasil e a Inglaterra não tinham um tratado de extradição, e, diante disso, a falta de regulação legal impedia a pretensão da polícia. Cagado. Restou a política, e o governo brasileiro optou por não extraditá-lo. Contudo, por estar ilegalmente no país, Biggs ficou em uma espécie de toque de recolher, sendo proibido de trabalhar. Dizem que ele só não foi deportado porque calhou de sua namorada estar grávida, o que não verdade em termos legais, pois um tratado bastaria, mas, ainda assim, desculpem repetir, cagado.

No Brasil, solitário, duro e sem perspectivas, Ronald Biggs começou a viver de sua fama e da simpatia do público. Começou a cobrar caro por jantares e churrascos em sua casa, vendia produtos com seu nome e cobrava por entrevistas, recebendo turistas ingleses, artistas, personalidades, mesmo membros da própria Scotland Yard. E, ora essa, seus antigos companheiros de crime. Tornou-se tão popular que foi até mesmo recebido à bordo de um destróier da marinha britânica de passagem pelo Rio e gravou uma música com o Sex Pistols.

Essa popularidade lhe rendeu um sequestro em 1981, quando mercenários o enfiaram num saco e o enviaram para Barbados, no Caribe, país que tinha tratado de extradição com a Inglaterra.
Foi quando seu filho Michael, entrou em cena. Aos 7 anos, seus apelos melosos na TV para que libertassem seu pai e o trouxessem de volta ao Brasil parece ter surtido efeito quando, após as autoridades de Barbados se recusaram a extraditá-lo, as autoridades brasileiras o aceitaram de volta.

Nisso, Biggs se mostrou cagado novamente quando executivos de sua gravadora viram que o garoto poderia ser artista e, assim, Michael Biggs entrou para o Balão Mágico. Grupo interessante esse, formado por um filho de presidiário, por uma mulher que teve filho com um e por um neto de japoneses, o Jairzinho.

E esse grupo, sei lá como, vendeu mais de 12 milhões de discos e lotou o Maracanã. Assim, Michael pôde retribuir ao pai se desdobrou para criá-lo. Biggs poderia ter seus defeitos, mas nunca foi um pai ausente. Afinal, sempre levou seu filho desde pequeno para suas bebedeiras e putarias. E, dessa forma, o filho estourou a boca do balão, mas logo as prostitutas e as drogas acabaram com a alegria da família.

E voltar para a pindaíba não poderia ter vindo em melhor hora: logo Biggs começou a ter diversos problemas de saúde, derrames, ataques epiléticos, passou a usar sondas para se alimentar, perdeu a fala e a locomoção. O fato do Supremo ter negado o pedido de extradição para a Inglaterra em 1997, agora com tratado de extradição firmado, por conta do crime ter prescrito de acordo com nosso Código Penal, foi uma pequena alegria.

Nesse contexto, Biggs pensou. Estou velho, decrépito, a saúde do Brasil é uma merda, não tenho grana para buscar o tratamento decente? O que fazer? Voltar para a Inglaterra, que dispõe de um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo.

Ingênuo, ele até pensou, ao voltar para o país sendo pago por um tabloide pela exclusividade, que receberia uma colher de chá da Coroa. Nem fodendo. Depois de 36 anos cagando para a Justiça, mantiveram sua sentença original de 30 anos, e o colocaram em uma prisão de segurança máxima, junto de pedófilos e de terroristas. Mas, no fim, ter cadeia e cuidados custando uma fortuna para os cofres públicos, não pareceu assim tão cruel, apesar de alguns maus tratos aqui e ali.

Ainda assim, tal qual 30 anos antes, o público se comoveu com os pedidos de Michael Biggs para que libertassem seu pai por razões humanitárias, o que ocorreu em 2009. Dessa vez, não porque ele era um menino bonitinho, mas sim um careca barrigudo articulado, que falava inglês como um nativo e pelo fato de, por conta dessa vingança, o Reino Unido tratava um idoso de 80 anos, paralisado em uma cadeira de rodas, como um terrorista ou coisa pior.

Porém, Biggs não parecia estar tão ruim assim, afinal em 2011 ele lançou uma segunda biografia, um DVD, foi consultor de duas séries sobre sua vida e, por uma última vez, reencontrou a mulher pouco antes de morrer, em 18 de dezembro.

Disso tudo, o que perturba é saber que, entre a liberdade aqui e passar preso no primeiro mundo, ele tenha preferido voltar para a cadeia.

Suellen

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Comments (11)

  • Minha mãe tinha um salão em Copacabana e ele e o filho eram clientes assíduos dela. Ela conta que o cara era divertidíssimo e vivia de bom humor. Está explicado!

    • Depois de ter escapado de tanta coisa, até eu viveria de bom humor e grato por estar livre por 30 anos e não numa cadeia por 30 anos.

  • Não conhecia essa história, e só posso dizer que ela é bem surreal! Esse cara é o mais sortudo da história, e ainda por cima ficou famoso por isso, por ser um criminoso fugitivo cagado?! E ainda teve o filho como integrante do Balão mágico!? Sinceramente não sei qual é a parte mais surreal dessa história, mas acho que foi o fato de ele ter sido o mais inútil no momento do roubo e mesmo assim ter se tornado o mais conhecido, pois não fez quase nada e levou o crédito.

    • Pois é, DK, assisti dois filmes e três documentários sobre a vida dele para escrever esse texto, além de entrevistas e artigos, e posso afirmar que esse meu relato foi o mais conservador possível.

      É que, quase sempre, certas pessoas superam nossa imaginação, tal como o Alicate, bem como os soldados japoneses que ficaram até 30 anos depois do fim da guerra escondidos na mata, acreditando que o conflito não havia acabado…

        • Obrigada. Vou escrever mais dessas histórias…

          Se quiser saber mais do roubo ao trem, tem uma série da BBC disponível em torrent, dividida em dois episódios: ‘A Robber’s Tale’ (que trata do roubo na visão dos bandidos) e ‘A Copper’s Tale’ (visão da polícia).

          O curioso é que o primeiro episódio foi ao ar no dia em que o Biggs morreu. Melhor publicidade, impossível…

  • Caraca, que louco!
    Essa história só mostra que mais vale ser burro com sorte, que um inteligente azarado, rsrsrsrsrs.

  • Já conhecia parte dessa história, mas quando se lê um “resumo da ópera” como este é que se passa a ter noção do tamanho da merda que foi essa história toda…

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