A História Desfavor: Capítulo 4
Dizem que não conhece a história está destinado a repetir seus erros. Preocupados com as inúmeras incongruências e lacunas deixadas nos registros da humanidade, Sally e Somir começam um projeto ambicioso: recontar nossos passos como espécie de uma forma que finalmente faça sentido, um evento importante por vez, onde quer que tenham acontecido. Pretendemos transformar “A História Desfavor” em livro, e durante essa semana de comemoração do Dia do Nerd, teremos uma prévia.
E nossa história começa nas cavernas…
Pré História
Capítulo 4: A guerra.
A noite vem mais fria que o habitual. Um vento gélido sopra pelas frestas do templo da Árvore do Fogo, desafiando as labaredas da fogueira central e fazendo as sombras dos presentes dançarem pelas paredes. Sentado num trono de pedra um degrau acima dos fiéis, vestindo um pesado manto de peles, Sô mantém-se em silêncio, olhar fixo nas chamas. Os trogloditas locais entreolham-se, temerosos. O clima tenso permanece por mais alguns minutos, até que um dos neandertais adentra a construção, ofegante:
NEANDERTAL: Achei… achei…
Sô finalmente se move, focando sua atenção no recém-chegado.
SÔ: Onde?
NEANDERTAL: Ela… ela foi se juntar com os homo sapiens… do outro lado do rio.
SÔ: Ela se juntou com aqueles selvagens?
AL: É a cara dela… é o que eu te falo, mulher assim só está esperando uma chance.
SÔ: Depois de tudo o que eu construí para ela? É ASSIM QUE ELA ME PAGA?
O tom de voz de Sô sobe na medida em que sua expressão se fecha. Os neandertais parecem confusos. Al aproxima-se de Sô e sussurra algo em seu ouvido. Sô observa a multidão por alguns momentos, apoia-se em seu cajado e levanta.
SÔ: Do outro lado do rio mora o INIMIGO! Eles vem até nossa terra, nós os acolhemos. Nós dividimos nossa caça com eles. E o que eles fazem? ROUBAM NOSSAS MULHERES!
A tribo começa a urrar em concordância. Alguns levantam pedras e lanças, claramente enfurecidos.
SÔ: E eu digo a vocês o motivo disso tudo. Eles querem nos destruir. Eles querem ver a grande Árvore de Fogo derrubada! Pois eles sabem… eles sabem que nós somos o povo escolhido! A Árvore dividiu conosco o segredo do fogo, e eles querem isso só para eles. Eles querem roubar o nosso fogo! A nossa vida!
NEANDERTAL: Mas eles parecem tão pacíficos…
SÔ: O inimigo é ardiloso, não duvidem. Mas… eu também sou.
—
Na noite seguinte, do outro lado do rio, Sá começa a se enturmar com os homo sapiens:
SÁ: É que eles ainda não entendem os costumes de vocês…
HOMO SAPIENS: E quem é o homem do cajado?
SÁ: Ah, aquele é o Sô. Desde que ele começou com aquela maluquice da Árvore de Fogo, ficou insuportável. Quando aquele homem cisma com alguma coisa, não consegue enxergar mais nada na sua frente.
HOMO SAPIENS: Ele é um homem ruim?
SÁ: Não. Quer dizer, não sei mais… eu só preciso de um tempo. E pelo menos com vocês eu consigo dançar um pouco! Aqueles lá parecem ter nascido com cintura de pedra. Quando vai ter batuque de novo?
Antes mesmo que o homo sapiens pudesse dar sua resposta, ouve-se gritos do outro lado do acampamento. Uma das barracas de pele está pegando fogo, e há correria para todos os lados. Pouco tempo depois as chamas são controladas, e Sá aproxima-se para analisar com mais cuidado. Enquanto isso, um dos homo sapiens começa a falar:
HOMO SAPIENS: O fogo deles veio nos punir! O homem do cajado diz a verdade!
Os outros começam a conversar entre si, num misto de espanto e surpresa.
SÁ: Peraí… estão vendo esse mato seco aqui? Esse fogo foi começado, dá pra ver as marcas. Maldito! Eu sei quem aprontou isso.
HOMO SAPIENS: A Árvore do Fogo?
SÁ: O caralho! Isso se chama Al! O Sô não se daria ao trabalho de vir até aqui, e não ensinaria ninguém além do seu amiguinho a fazer fogo.
HOMO SAPIENS: Mulher neandertal muito inteligente!
SÁ: Eu sei… e tem um pintura de uma mulher sendo pisoteada por um búfalo nessa pedra aqui perto. O Al sempre pintava isso na nossa caverna e achava que eu não sabia… o que importa é que se aquele safado acha que vai se safar disso. Não vai. Ah, não vai mesmo!
—
Mais uma noite chega. Sô termina de acender a fogueira, escondendo seus métodos dos olhares curiosos dos neandertais ao redor. A tribo trouxera vários pedaços de carne, e Sô fazia questão de oferecer os melhores a Al, que agora sentava-se no degrau superior logo ao lado do trono. Sô descobrira que incitar seus fiéis contra um inimigo comum fazia maravilhas pela devoção deles; passara o dia sendo paparicado por todos ao seu redor.
SÔ: Estamos mais unidos agora. Isso é um sinal. A Árvore de Fogo aprova o meu… o nosso trabalho. Logo aqueles traidores do outro lado do rio vão se juntar a nós… ou sofrer as consequências. Vocês não conseguem sentir esse cheiro? O cheiro da vitória?
NEANDERTAL: Esse é o cheiro da vitória?
Um aroma horrível começa a tomar conta do ambiente. O templo vai ficando impregnado, e nem mesmo o cheiro da carne assada consegue mascará-lo. A tribo começa a abandonar o local, um a um. Sô tenta em vão convencê-los que é apenas mais uma provação, mas os supersticiosos neandertais convencem-se que aquele fedor tinha um significado maior. Logo estão lá dentro apenas Sô e Al.
SÔ: Isso é…
AL: Merda?
SÔ: Mas como? Você se cagou?
AL: Só faço isso quando eu como as frutinhas azuis.
SÔ: De onde vem esse cheiro?
Sô e Al começam a vasculhar o local, e o cheiro os leva ao mesmo lugar: a fogueira. Sô começa a mexer nas madeiras até encontrar o foco do odor.
SÔ: Você fez a porra do desenho, não fez?
AL: Que desenho?
SÔ: Não mente! Você fez?
AL: …
SÔ: Seu imbecil! É claro… ela viu que foi você e se vingou. Colocaram bosta na nossa fogueira, bem escondida debaixo da lenha para assim que pegasse fogo, o cheiro se espalhasse. Está na hora de mostrar para ela quem manda aqui. Agora é guerra!
—
Passam-se mais alguns dias até que Sô finalmente consiga reconquistar os fiéis armando mais uma combustão espontânea da Árvore de Fogo. Convence-os a produzir muitas lanças e prepara-os para tomar o acampamento dos homo sapiens. Do outro lado do rio, Sá fica sabendo da movimentação e aproveitando-se da posição de recém-apontada sábia e dançarina-oficial da outra tribo, prepara seus novos companheiros para responder à altura.
É uma bela manhã quando as duas tribos se encontram em margens opostas do rio, na área mais larga e rasa do curso. Sô e os neandertais vestindo peles tingidas de vermelho, Sá e os homo sapiens cobertos por peles tingidas de azul e branco. Na linha de frente de ambas as tribos, os homens mais fortes de cada uma delas, berrando obscenidades e mostrando os músculos uns para os outros.
SÔ: Observem o inimigo, neandertais. Observem aqueles que querem destruir tudo o que temos! Mas nada temam… pois a Árvore de Fogo está conosco. Suas chamas nos iluminarão até nos momentos de maior escuridão, e elas nos guiarão para a vitória, ou para o paraíso. Nós somos os filhos do fogo!
SÁ: Filhos da puta, isso sim! *berrando à distância*
SÔ: Desculpa, eu não falo trairês! Traduz pra mim. *berrando de volta*
SÁ: Olha a merda que você está fazendo, seu arrogante!
SÔ: Se você tinha algo pra me falar, que fizesse do meu lado do rio!
SÁ: E desde quando você escuta alguma coisa?
SÔ: O quê?
SÁ: Desde quando… aff!
SÔ: Haha! Caiu!
Nesse momento, ambas as tribos parecem mais confusas do que qualquer outra coisa. Sô e Sá vão se desvencilhando dos lutadores à sua frente e caminhando em direção ao centro do rio, água na altura das canelas. Sô se aproxima do ouvido de Sá, falando baixo:
SÔ: Se você queria fazer amizade com esses aí, era só me dizer. A gente trazia eles para a Árvore de Fogo também.
SÁ: Tão inteligente, tão burro… eu queria me afastar justamente dessa aberração que você criou.
SÔ: Está com peninha desses imbecis? É culpa minha que eles acreditam em qualquer merda?
SÁ: Eu acho bem feito pra eles, mas você está explorando gente vulnerável para seus próprios ganhos. Eu não fico do lado de gente assim.
SÔ: Você quer que eu desista de tudo?
SÁ: Eu não quero nada. Faz o que quiser.
SÔ: …
Sô volta para seu lado do rio pisando duro. A tribo dos neandertais o observa em busca de algum sinal. Ele vai até Al e entrega o cajado em suas mãos. Todos olham surpresos. Sem dizer uma palavra, volta até o centro do rio, pega a mão de Sá e a puxa dali, afastando-se da multidão. Enquanto se distanciam, podem ouvir os gritos de incentivo de Al e o começo de uma sangrenta batalha. Sá vacila por alguns instantes, mas Sô a incentiva a continuar.
Vários minutos depois, já distantes da confusão:
SÔ: Pronto, essa guerra não é mais minha. Feliz?
SÁ: Mas eu ainda quero morar com os homo sapiens, os neandertais são muito atrasados.
SÔ: Tem um grupo bem maior vindo pra cá, estão depois das montanhas. Eu mandei alguns batedores alguns dias atrás.
SÁ: E por um acaso saber que estamos cercados pela tribo inimiga influenciou na sua escolha de desistir da guerra?
SÔ: Foi uma motivação, só isso.
SÁ: Eu deveria saber que você nunca colocaria a mão na consciência…
SÔ: A Árvore de Fogo falou comigo. Disse que eu estava cometendo um engano.
SÁ: A Árvore e não eu, né?
SÔ: Ela trabalha de maneiras misteriosas. Escreve por linhas tortas…
SÁ: Sei… mas você aceita agora que foi uma ideia de merda?
SÔ: Você se preocupa demais, não dou uma semana para essa coisa de fé desaparecer…
Etiquetas: dia do nerd
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Essa foi sem dúvida a melhor semana temática! Mal posso esperar por mais…
Sally
Fico feliz que tenham gostado, geralmente elas são um fracasso. Vai ter mais sim.
cumpadi
Bota um animal de estimação indomável estilo Satanás e algum guardião ou guerreiro folgado estilo Navalha!