Isso também passará.

Existe uma fábula, contada com diversas derivações, que ilustra bem a postagem de hoje. Um rei reuniu um grupo de homens sábios e lhes deu uma tarefa: criar um anel que o deixe feliz quando ele estivesse triste. Os sábios debateram e lhe entregaram um anel escrito “isso também passará”. Cada vez que algo terrível acontecia, o rei tirava o anel do dedo e lia esta inscrição na parte de dentro, relembrando que esse estado de sofrimento era temporário e também de todos os outros males que o fizeram remover o anel do dedo e ler essa frase e que, de fato, passaram.

Todos nós deveríamos usar um anel com essa inscrição para olhar de tempos em tempos e lembrar dessa frase, seja nos maus momentos, seja nos bons.

Essa frase resume o que os budistas chamam de “impermanência”, que em um resumo simplificado, é a crença de que tudo que está sujeito ao surgimento está sujeito à cessação. Evidentemente Buda não conheceu o funk nem o sertanejo universitário, mas enfim, em termos gerais, é a impermanência que rege o mundo. Não se apegue muito às coisas como elas estão hoje, isso fatalmente vai mudar. Ter a consciência, e mais, a aceitação disso é um primeiro passo para ser uma pessoa mais inteira e bem resolvida. É patético por parte do ser humano se esforçar e dar jeitinho para que o que lhe agrada não mude. Estamos fazendo isso errado, e o que é pior, errando por séculos, sem perceber.

Mas não venho aqui cagar regra. O texto de hoje não vai te dar uma lição sobre a importância de aceitar a impermanência para ser feliz. Apenas te convido a olhar as coisas por outro ângulo.

“Isso também passará”. Vai ter quem associe essa frase a coisas boas e fique triste: um amor passará, uma alegria, um sonho. Mas, se você olhar por outro ângulo, as coisas ruins também passarão. Hoje eu não tenho um iate, mas graças à impermanência, amanhã posso ter. Então, o fato de que “isso também passará” não existe apenas para me sacanear e me tirar coisas boas. É uma regrinha básica da vida. Na vida, tudo é passageiro, (exceto trocador e motorista) e você não pode mudar esta realidade. Portanto, recomendo que, no mínimo, faça as pazes com ela, caso contrário vai sofrer bastante.

Uma lenda taoísta conta a história de um ancião que vivia em uma aldeia do norte da China. Sua única posse era um cavalo. Um dia, o animal fugiu e foi parar no território de uma tribo adversária. Os vizinhos foram consolá-lo pela perda do cavalo ele disse: “Talvez isso seja uma bênção”. Após algum tempo, o cavalo voltou, acompanhado de uma égua, os vizinhos foram comemorar com o ancião. Ele disse: “Talvez isso vire um infortúnio”. O casal de animais reproduziu e, em pouco tempo, o aldeão acabou se tornando o próspero proprietário de um haras. Mas, numa tarde, seu filho, que adorava cavalgar, caiu do cavalo e quebrou a perna, causando condolências de todos os vizinhos. “Talvez isso seja uma bênção”, repetiu o ancião. Meses depois, tribos inimigas atacaram a aldeia e todos os homens saudáveis foram convocados para a guerra. A maioria morreu. O ancião e seu filho com a perna quebrada ficaram a salvo.

O que quero dizer é que a impermanência não significa apenas que o mundo vai mudar, também significa que sua realidade pode mudar sem que você sequer concorra para isso. Teoria do caos, Efeito Borboleta: o bater de asas de uma simples borboleta pode provocar um tufão do outro lado do mundo. Às vezes nada muda no seu mundo ou no seu campo de visão, e mesmo assim, a impermanência dá as caras e afeta a sua realidade.

Esse mindset errado de se apegar à realidade ignorando que ela sempre será temporária, transitória e mutável é uma das principais fontes de sofrimento da nossa cultura. E, em vez de lutar contra essa forma de pensar, contra essa forma de funcionar, gastamos tempo e energia para bolar planos, produtos ou estratégias que prolonguem um estado por natureza impermanente ao qual nos apegamos. Bobagem, cedo ou tarde ele acaba. Melhor usar nossa energia para aceitar que assim é a vida, um ciclo de estados e situações transitórias e lidar melhor com cada um deles. Isso também passará.

Hoje lidamos com a felicidade como um estado prolongado de prazer e fazemos qualquer negócio, desde infringir a lei até usar medicamentos, para prolongar esse estado de felicidade. Mas isso é correr atrás do próprio rabo, uma missão impossível, que já nasce morta. Aceitar a mutabilidade da realidade certamente faz muito mais por você, ainda mais em tempos onde as mudanças vem de forma cada vez mais veloz. Já falei aqui em outros textos e vou repetir, guardem estas palavras: o profissional que será valorizado nos próximos anos não é mais o que tem contatos e sim o que tem grande e rápida capacidade de se adaptar. Até para o mercado de trabalho a aceitação da impermanência serve.

Esse conceito de felicidade como estado prolongado de prazer é tão nocivo que, mesmo aqueles que aceitam a impermanência se deixam contaminar por ele. Quem aceita que a vida tem períodos bons e ruins alternados e coloca a felicidade como sinônimo de um período bom pode desenvolver um sério temor de ser (na verdade, estar) feliz, pois isso implica que, pela lei natural das coisas, está por vir um período escroto de tristeza e danação. Nessa muita gente se sabota, não vivencia a felicidade em um mecanismo bobo (e provavelmente inconsciente) para tentar trapacear e impedir que o período ruim que a segue se apresente. E não adianta nada. Os ciclos da vida simplesmente não se controlam.

Tentar controlar o tempo dessa (im)permanência é arrogância. Quando pensamos nessas mudanças, não podemos pensar com o conceito básico de tempo. Vou pegar emprestado um conceito antigo aqui, que talvez os ajude a visualizar melhor.

Os gregos tinham várias definições para tempo. Havia o tempo chamado de Chronos, que é aquele tempo quantitativo, estipulável, que pode ser medido, mensurado, controlado. Um ano, por exemplo, tem um numero calculável de dias. Uma hora, tem um numero calculável de minutos. Mas também tinham outro conceito de tempo chamado Kairós, que é uma medida de tempo qualitativo (e não quantitativo), o tempo oportuno para algo, a medida certa. Religiosos dirão que é “o tempo de Deus”. Por exemplo, o tempo que você vai demorar para superar a morte de uma pessoa querida ou o término de um relacionamento, o tempo que seu corpo vai levar para se recuperar de uma gripe. Não há como prever, você só vai descobrir depois que esse tempo tiver passado.

É preciso compreender e perceber que mesmo não sendo Grécia antiga, ainda hoje, nossos tempos ainda são Chronos e Kairós. É preciso ter ciência e controle do que for Chronos e desapegar e deixar ir o que for Kairós. Hoje o que eu mais vejo é gente sem controle algum do Chronos e tentando desesperadamente controlar o Kairós. Deve ser enlouquecedor viver assim.

Porém o ser humano é um animal tão fascinante que com estudo e tecnologia conseguiu transformar alguns Kairós em Chronos ao longo da sua história. O nascimento de um bebê, por exemplo, que durante muitos séculos da humanidade foi Kairós, hoje é majoritariamente Chronos: marca-se uma cesariana quando melhor convier ao médico e à mãe e não se fica mais nas mãos do tempo certo, que seria determinado pela natureza. Chupa Kairós, aqui é Chronos!

Mas isso nem sempre é possível. Acredito que nunca vá ser. Acho importante reforçar que a impermanência não é Chronos e sim Kairós, por isso não adianta fazer esforços e estratagemas para controla-la. Vai acontecer no tempo certo, que, aceite, não está totalmente nas suas mãos.
Na realidade atual temos a impermanência como regra e os tempos que ainda são Kairós não podem ser controlados. E isso, Meus Amigos, não deve ser motivo de angústia. Resete sua mente e comece hoje mesmo a trabalhar esse apego e controle na sua cabeça. Não vai acontecer. E tem um lado bacana nisso.

Viver em um estado de permanência, onde as coisas podem ficar exatamente do jeito que estão ou do jeito que você quer, regidas por um tempo Chronos, seria entediante. É a clássica comparação de que o doce só é doce porque experimentamos o amargo antes para servir como referência. Está puto porque a impermanência te deixou na merda? Sorria, é graça a essa mesma impermanência que você vai sair da merda. É ela que nos faz aprender, que nos obriga a sermos criativos, que nos empurra para evoluir.

Estamos focando nossa energia de forma errada: em tentar parar a impermanência. É frustrante, é burrice. Isso não quer dizer que você deva se conformar quando estiver na merda pois “faz parte do jogo”. Não, não faz. Jamais. Lute com força para sair da merda, porém com a visão de Impermanência, Chronos e Kairós na cabeça, de modo a seguir em frente usando a impermanência como aliada, em vez de lutar para voltar ao status quo, para um período passado onde tudo estava bacana para você. Para frente, sempre para frente, afinal, “isso também passará”.

Então, voltando ao conceito de felicidade cruzado com a noção de impermanência, sempre será frustrante se a encararmos com o desejo de prolongar estados de prazer. Uma ideia: que tal encarar felicidade não como um estado e sim como um modo de vida que te realize e gere, no todo, no global, um bem estar constante?

Para isso, é importante que você se conheça, se conheça bem. Qual é o seu propósito nesse mundo? No que você realmente acredita? O que realmente te motiva? O que é aquilo que você faz, gosta tanto, que nem vê o tempo passar quando está fazendo? O que você realmente ama e tem como objetivo de vida? Isso, o que quer que seja, tem que estar conectado de alguma forma com tudo que você faz, assim, talvez, você consiga um estado permanente de felicidade, mesmo que cercado por momentos de impermanência da vida e tristeza em alguns setores. Essa é, acredito eu, a base sólida para sobreviver ao mundo de hoje.

Se você não sabe seu propósito, não se preocupe. Não é uma pergunta fácil de responder, nem eu vou te dar formulinhas de X perguntas para descobrir seu propósito. É preciso bastante auto-observação e uma pitada de experiência de vida para perceber seu proposito e depois, muita habilidade para linká-lo com tudo que você faz. Mas é possível, e talvez te torne uma pessoa mais inteira e realizada. Assim como também é possível mudar o seu propósito mais de uma vez na vida.

Seu propósito é o “Why” do Golden Circle (não dá tempo de explicar, pesquise: Simon Sinek), ele deve ser o propulsor de tudo na sua vida, não convenções sociais, não seus medos, não os desejos da sua família. É o seu PORQUE, o seu Why, o seu propósito que vai te nortear. Descubra qual é e depois dá seu jeito de linkar ele em tudo que você faz, pois se depender de momentos ou realizações transitórias para ser feliz, você vai viver se frustrando. Lembre-se: isso também passará.

A beleza da coisa é que com seu propósito regendo sua vida, mesmo que o propósito passe, um novo surgira, e ele poderá igualmente ser linkado com tudo que você faz, assim as impermanências do dia a dia serão mais suportáveis.

Cada vez que uma coisa muito boa ou muito ruim acontecer na sua vida, tenha esse pensamento onipresente: “isso também passará”. Não como algo ruim e sim como uma compreensão da forma como a vida funciona. Aceite. “Isso também passará”. Construa sua vida, suas escolhas, seu valores, partindo e aceitando de coração essa premissa. Você vai fazer escolhas muito mais assertivas e melhorar sua qualidade de vida.

Para perguntar qual tipo de droga estou usando, para dizer que Gandalf garantiu que não passará ou ainda para dizer que eu deveria ter contado a mitologia sobre Chronos e Kairós que é muito mais interessante do que este texto: sally@desfavor.com

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Comments (22)

  • Muito útil, Sally! E sua criatividade é fora de serie.

    A frase que permeia o texto me lembrou a de um seguidor da Moral que contém muita base no Budismo. Ele dizia:

    “Tudo passa.” (Chico Xavier)

    Até ler o seu texto, eu sempre mentalizava essas duas palavras em maus momentos. Vou também usar “isto também passará” nos momentos felizes.

  • Sally andou virando zen budista e não estava sabendo? haha

    Muito legal esse texto, como outros disseram: realmente difícil de por em prática tudo que está nele. Até porque, ao que me parece, já nascemos em uma sociedade já pré moldada a esse modelo de tentar controlar o kairós. O problema – ou pelo menos no meu caso – é conciliar essa aceitação de “estar na merda” e lutar contra ela tendo em mente que é um processo passageiro.

  • “para dizer que Gandalf garantiu que não passará”

    Hahahahahahaha!

    Texto bastante pertinente, mas difícil de praticar, na minha opinião!
    É preciso um auto conhecimento que a maioria das pessoas tem medo de atingir…
    Eu tento viver o presente, um dia de cada vez, mas às vezes é difícil aceitar de bom grado a passagem de algo feliz…

    • Por isso é bacana descobrir seu propósito e linka-lo com tudo que voce faz, assim há uma constante de bem estar que equilibra melhor a vida

  • A(té) Uva (também) Passa(rá)

    (…) para dizer que eu deveria ter contado a mitologia sobre Chronos e Kairós que é muito mais interessante do que este texto

    Nem sim, nem não; na verdade, poderia haver uma semana inteira (tão) sobre tudo isso ! (risos). E sei que não é droga, apesar do sertanejo…hahahahaha

    E já estou me realizando de ter lido (ainda) hoje.

    Muito obrigado, desde já !

    DSVS

  • Innen Wahrheit

    Oi Sally.

    É provável que você esteja acostumada a ler comentários como o que pretendo fazer agora, mas mesmo assim queria que você soubesse que foi uma coincidência bastante feliz ler o que você escreveu hoje.

    De um ano pra cá, tenho tentado compreender e lidar com perdas e mudanças que estão ocorrendo.

    Ontem foi um dia difícil.

    (Desculpe, é o melhor que posso fazer em se tratando de alguém que não estou vendo)

  • Hoje o que eu mais vejo é gente sem controle algum do Chronos e tentando desesperadamente controlar o Kairós. Deve ser enlouquecedor viver assim.

    Resumir a atual sociedade em uma única frase nunca foi tão certeiro. Deve ser justamente por isso que o mundo anda meio fudido da cabeça

  • Muito boa a leitura que tive pela manhã. Depois de tudo o que passei, muitos destes pensamentos já sigo, ou já seguia. Mas sua forma de juntar todas as informação, foi muito feliz.

    Meu pai, um homem sábio da cidade grande dizia: “Tudo tem solução, menos a morte. E o que não tem solução imediata, solucionado está.” Mas ouvir isso com algo como “Hoje o que eu mais vejo é gente sem controle algum do Chronos e tentando desesperadamente controlar o Kairós”, acrescenta muito.

    Tu falou sobre as pessoas não saberem lidar com emoções. Querem ter controle sempre; acredito que inclusive é por isso que usam drogas ou remédios: Não conseguir suportar seus altos e baixos e a forma como lida com tudo.

    Eu não uso remédio algum. Sempre que algo me aflige muito, tento não pensar naquilo naquele momento, e espero uma boa noite de sono. Se depois disso, continuar com o mesmo pensamento, aí então faço algo a respeito e tomo alguma decisão a respeito.

    A questão do Why é mais complexa. Mas pelo menos tento me lembrar de focar não no que não tenho ou que poderia ter tido/sido/conquistado; e sim no que consegui. Ajuda.

    • Acho que ninguém consegue colocar 100% em prática o que está no texto. Nem é essa a intenção. É apenas lançar um novo olhar, para que todos sempre lembremos de também olhar por esse outro ângulo. Fico feliz que você tenha gostado.

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