Simulacros e Simulações.

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Simulacros e Simulações.

De repente você acorda e sente que as coisas do seu quarto mudaram ligeiramente de lugar. No início é apenas uma desconfiança, mas logo seu cérebro aciona um alarme de pânico ao perceber que os cômodos da casa também mudaram. Tentando entender o que está acontecendo, você vai ao banheiro e lava o rosto. A água corrente te faz sentir vontade de usar a privada, mas uma força superior parece te manter imóvel no lugar, por mais que você tente se mexer. Um estranho barulho de clique ao longe te liberta da imobilização e finalmente você pode fazer suas necessidades básicas. Outro clique e toda a realidade ao seu redor segue em um estranho cotidiano que corre alheio à sua própria vontade. Ao final do dia, você sente que sua vida não faz sentido, que tudo está passando depressa demais e que você se sente impotente diante dessa força superior que parece controlar sua vida independente do que você faça. Então você dorme um sono sem sonhos. Em outro lugar, em outro tempo, em outro universo, um jovem em uma tela de computador fica a observar o personagem de uma simulação dormir seu sono sem sonhos. Parece roteiro de filme ou série, mas é exatamente esse tipo de interação que foi escrita por Jean Baudrillard em seu livro Simulacros e Simulações, publicado em 1981. Para entender melhor a substância da filosofia deixada pelo filósofo, antes é necessário ter um pequeno embasamento sobre semiótica.

A semiótica é uma ciência que estuda os signos e teve seus fundamentos criados a partir dos estudos de Charles Sanders Pierce e Ferdinand de Saussare. A ciência identificou três tipos de signos: o ícone, o índice e o símbolo. O ícone é uma representação visual de um objeto e mantém uma relação de proximidade sensorial ou emotiva entre o signo, a representação do objeto e o objeto em si, como fotos, pinturas, desenhos ou esses pequenos quadradinhos que vemos constantemente nos nossos celulares e computadores. O índice é uma parte representada de um todo e dessa forma é um signo mais subjetivo, como por exemplo, um desenho de pata de cachorro te fará imaginar que tipo de cachorro deixou aquela marca. Já os símbolos são abstratos e dependem de uma série de convenções para que sejam compreendidos, como por exemplo as letras do alfabeto ou os números.

Como podem perceber, os signos que nos rodeiam são representações da realidade que precisam ser compreendidas. Por isso, quando esses signos são verbalizados, eles precisam ter um significante e um significado para que sejam socialmente aceitos. O significante é o elemento tangível do signo, ou seja, você apontar para uma cadeira e falar “isso é uma cadeira”. O significado é o conceito abstrato do signo, ou seja, eu te pedir para imaginar uma cadeira sem ter uma referência visual. Você vai criar uma imagem mental dessa cadeira, você sabe como é uma cadeira, mas a cadeira que você imagina com certeza é diferente da cadeira que eu ou que outras pessoas imaginam. Para Platão, essa realidade abstrata do significado era chamada de mundo das ideias. No mundo das ideias todas as coisas são perfeitas por manterem seus conceitos primordiais, ou seja, independente da cadeira que você imaginou, a ideia de que aquele objeto é feito para se sentar se manteve. Por outro lado, o mundo dos sentidos, que é o mundo material, não passa de uma cópia imperfeita desse mundo conceitual. E é nesse ponto que começamos a entender o que são simulacros e simulações.

Com o avanço e a popularização das tecnologias, principalmente as relacionadas aos meios de comunicação, os signos começaram a ficar tão difundidos, tão explorados, que começaram a perder seu valor representativo. As representações se tornaram simulações e como tal, não correspondem mais ao que é real por estarem distantes do seu signo de origem e quanto mais distante da realidade estão as representações, mais elas vão se tornando simulacros. No início das produções midiáticas, por exemplo, assistir a TV, ler o jornal ou ouvir o rádio era ter a certeza de que aquilo era um recorte da realidade material e isso dava credibilidade aos meios de comunicação. Hoje ocorre o inverso, não temos mais certeza se o que nos é mostrado faz parte da realidade ou se há modificação do real. Quando não temos mais certeza se o real é real, ele se torna hiper-realidade.

Compreender a hiper-realidade defendida por Baudrillard é simples, basta procurar no Youtube um vídeo feito a partir da imagem do ex-presidente americano Barack Obama. Ou os constantes erros de edição nas fotos das grandes revistas de moda. Com cinemas cada vez mais imersivos, com a realidade virtual cada vez mais presente em nossas vidas e com a robótica trazendo a possibilidade de robôs que se parecem com humanos, cada vez mais a hiper-realidade extrapola os meios de comunicação e se torna uma parte do cotidiano, fazendo com que as pessoas percam sua conexão com a realidade material. Um tanto quanto conspiratória, a hiper-realidade determina que existe uma dominação por trás da simulação, que há todo um sistema criador de simulacros que fazem com que aceitemos que estamos sendo enganados. E que todos aqueles que se rebelam contra esse sistema, são marginalizados, tratados como párias, são eliminados para que o sistema dominador continue sua simulação.

A popularização das redes sociais é uma forma de perceber o quanto a ilusão faz parte de nossas vidas, pois a todo momento enganamos a nós mesmos e aos nossos espectadores/seguidores ao demonstrar uma verdade fabricada. Pipocam em nossas telas momentos felizes, viagens a países exóticos, festas, pensamentos filosóficos profundos e clamores de auto afirmação. A ilusão é tentadora, pois quando nos voltamos ao mundo material, vemos um lugar cinzento, poluído, com pessoas desinteressantes. Passamos a procurar na realidade a mesma alegria e exuberância que encontramos na hiper-realidade, mas não a encontramos. Preferimos então, por vontade própria, nos enclausurarmos cada vez mais na ilusão, mesmo que ela dependa de dispositivos e telas negras para continuar existindo. Quando a hiper-realidade extrapolar o limite desses dispositivos, perderemos totalmente a noção da realidade e a dominação do sistema estará completa.

Conceito parecidos como esse podem ser vistos em filmes como Matrix, 2001: Uma Odisséia no espaço, Ex-Machina ou até mesmo no inocente Wall-E. Em séries como Black Mirror, Philip K. Dick’s Electric Dreams ou Mr. Robot e em livros como 1984, Eu, Robô e Admirável Mundo Novo. Mesmo abordando diferentes pontos de vista, todos eles possuem um ponto em comum: o sistema opressor. O sistema opressor não pensa, não dialoga, não dá brechas e nem quebra suas próprias regras, ele apenas segue suas diretrizes. Seja na forma de robôs fofinhos que se dedicam em manterem os humanos confortáveis, seja na forma de telas Big Brother que te vigiam a todo momento, o sistema opressor tirará sua liberdade e te fará uma pessoa menos propensa em aceitar as diferenças da realidade material. Ao nos tornarmos parte da hiper-realidade, nos tornamos parte do sistema opressor, nos tornamos manipuladores da realidade material e oferecemos apenas ilusão uns aos outros.

Por outro lado, o sistema opressor sabe que precisa nos agradar para que continuemos na ilusão. Ele nos seduz oferecendo conforto, segurança e a vontade de nos mantermos inertes em nossa zona de conforto. Quem está fora do sistema são sempre os outros, os que devem ser evitados, os que podem a qualquer momento fazer ruir o doce veneno da ilusão. Os outros devem ser combatidos ferrenhamente, não há espaço para que pessoas se sintam diferentes, não há espaço para beleza fora do padrão e nem sensações desagradáveis. Queremos que a ilusão nos complete, que nos traga a tão procurada alegria e que acabe com todas as coisas indesejadas, com todas as limitações mundanas. Queremos a água mais pura e o bife mais suculento, queremos deixar Zion, a cidade prometida de Matrix, para as pessoas maltrapilhas que queiram ficar por lá.

Por ironia, Baudrillard em visita ao Brasil foi entrevistado pela Folha de São Paulo. Ao ser questionado se o Brasil faz parte dessa hiper-realidade, o filósofo responde:

“Eu não vejo o Brasil como um país hiper-real. Não é como a Califórnia, a América do Norte. Talvez porque o Brasil não possa passar pelo princípio de realidade. Portanto, se ele ainda não passou pela realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais que o real, um tipo de confusão entre o real e o imaginário. Tem-se a impressão de que não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma espécie de país de ficção, mas não de ficção de transparência. Não é o país da semiologia ou da semiótica. Não sei, mas tenho a impressão de que o Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução desta relação dual, mas confusa. E que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade. Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de substância, de referência, de perda de tudo isso. Aqui, é claro, tem televisão por todo lado, tem imagens… tem isso tudo. Temos a impressão de que é uma matéria muito mais bruta, imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva”.

Esse país é uma bandalheira tão grande que não fazemos parte da realidade, muito menos da hiper-realidade. Somos ilusão e não servimos nem de parâmetro para estarmos na simulação. Somos Zion, a cidade aonde deveria se iniciar a revolução, mas que na verdade não passa de uma pedra no sapato do sistema. Somos o país aonde Deus nasceu, mas que de fato não existe. Somos nada…

Por: Tender

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Comments (2)

  • Adorei o seu texto, Tender. De verdade. Especialmente o final – de fato “somos nada” – e a explicação clara e concisa sobre o que é semiótica feita no segundo parágrafo. E pensar que tem professores de faculdade de comunicação por aí, com doutorado nas costas, que levam um semestre ou mais só pra explicar esse conceito…

    • não sei se é pra tudo isso, creio que o problema dos professores seja estarem muito focados na linguagem acadêmica e se esquecerem que os jovens de hoje pensam mais fora da caixinha.
      mas obrigado pelo seu comentário.

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