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Semana Pandêmica: Peste Negra

Poucas coisas definiram tanto a história da humanidade quanto a bactéria Yersinia Pestis. Causadora da Peste Negra, a doença mais mortal com a qual já lidamos, não necessariamente em números gerais, mas na proporção entre o tamanho da população mundial antes e depois dos grandes surtos. No século XIV, estima-se que tenha matado metade da Europa. Metade. E essas não são as maiores estimativas…

A doença tem vários nomes atualmente, mas em boa parte da nossa história, era chamada apenas de “A Grande Morte”. Talvez o nome mais correto seja Peste Bubônica, pois seus sintomas incluem o aparecimento dos “bubões”, termo antigo para os linfonodos inflamados. A doença começa com febre, juntas doloridas, náusea, vômitos e mal estar em geral, mas rapidamente evolui para a inflamação dos linfonodos, especialmente os da virilha e das axilas. O local inflamado fica inchado e dolorido. Logo depois, começam a surgir pontos pretos na pele, que começa a morrer pouco a pouco. A febre então aumenta e a pessoa começa a vomitar sangue. Não demora muito para morrer depois disso.

Isso tudo acontece em mais ou menos uma semana. A versão mais comum da doença tem algo em torno de 80% de letalidade se não for tratada. Hoje em dia, com antibióticos, isso cai para no máximo 10% em pessoas muito debilitadas, mas considerando o quanto não se sabia sobre medicina nos tempos da prevalência da doença, estamos falando sim de uma sentença de morte. Ainda existem as variações pneumônicas e septicêmicas da doença, que chegavam quase a 100% de letalidade.

A bactéria já existia em populações de pulgas de roedores, provavelmente há muito mais tempo que a humanidade, e a teoria mais aceita atualmente é que seja natural da Ásia, próxima da China (temos um padrão aqui, não?). E ao contrário de várias outras doenças carregadas por vetores como pulgas, a Yersinia Pestis não tinha uma relação tão simbiótica assim com suas hospedeiras: atacavam as pulgas de tal forma que bloqueavam seu sistema excretor, forçando os parasitas a vomitar o conteúdo de seus estômagos numa tentativa desesperada de não explodir. Isso fazia com que quantidades enormes da bactéria entrassem em contato com a ferida exposta pela sua picada. Alguns dos ratos eram imunes à Peste, mas nem todos. Quando a Peste matava ratos o suficiente, as pulgas procuravam novos hospedeiros, e os humanos calhavam de estar por perto.

Na Idade Média, nem se sonhava com a ideia de bactérias ou de microrganismos em geral. O conceito de higiene era completamente diferente (as pessoas não viviam sujas e maltrapilhas como se mostra em filmes e séries, mas era só cosmético mesmo: passar um pano na cara e usar litros de perfume) e a relação entre viver cercado de ratos, excreções e outras coisas intoleráveis atualmente não os incomodava da mesma forma. Era só questão de tempo até uma doença com esse grau de agressividade se espalhasse sem controle.

Na Ásia a doença já dizimava populações, especialmente na China e na Índia, passando pelo Oriente Médio e finalmente chegando na Europa através da Rota da Seda, especialmente através de mercadores genoveses. Essa sequência China-Itália com certeza faz parte da nossa história. Como muitos de vocês já devem ter ouvido, o comércio marítimo teve um papel determinante na expansão da doença: os navios, apinhados de ratos, faziam a conexão entre Ásia e Europa, desembarcando vetores e infectados em novas regiões. E como ninguém conseguia fazer a conexão entre ratos, pulgas e a doença, a coisa foi saindo de controle. O movimento humano era bem mais lento na época, claro, mas em menos de uma década a doença já havia se espalhado por todo o continente europeu.

E onde a Peste se instalava, não havia muito o que fazer a não ser contar os mortos. 80% de mortalidade em uma semana. E na falta da ciência moderna, restava explicar como conjunção astral desfavorável ou punição divina. Embora algumas regiões tenham evitado o pior fazendo quarentenas, a voracidade da doença era tanta que sobrava pouco tempo para reagir quando os casos começavam a ficar visíveis numa população. Cidades e vilarejos praticamente acabavam em poucos meses.

Argumento até que a doença era tão terrível que não havia sequer a possibilidade de avançar a medicina em resposta: uma coisa é enfrentar a Varíola, que de tá algum tempo de reação e não mata tanta gente, outra é lidar com algo mais parecido com um desastre natural como um vulcão, enchente ou furacão. Se você quisesse viver, tinha que sair correndo de onde estava e torcer para não apresentar os sintomas no lugar para onde fosse, senão estaria acabando com mais uma cidade.

E também tem um fator psicológico poderoso: dizer que vai evitar uma pessoa como se tivesse a peste é uma expressão ainda comum na língua inglesa, por exemplo. O povo não sabia o que causava a doença, mas entendia que era muito contagiosa. Não havia coesão social que bastasse no caso de algo que é quase certeza que vai te matar absurdamente evidente na pele do outro. Não era um momento para a humanidade se unir, era cada um por si e a Peste contra todos. Quem conseguiu fechar as fronteiras e praticar isolamento social conseguiu se proteger um pouco, naquele tempo o comércio já era importante, mas a produção de alimentos era muito mais local.

É até difícil imaginar o que era viver numa região assolada pela doença. Tudo bem que o povo do século XIV devia ser bem menos apegado à vida, entendendo a morte como algo sempre muito próximo, mas não tem como ver tudo ao seu redor ruindo por causa de uma doença tão terrível e não ser impactado. Importante lembrar que embora a Peste seja poderosa, o estado médio de saúde do ser humano naqueles tempos não era dos melhores. Existe uma ilusão de que as pessoas eram mais saudáveis antigamente, mas embora o cidadão médio fosse bem mais ativo fisicamente, a oferta de alimentos era bem limitada, e podia acabar a qualquer momento. Estamos falando de uma população média desnutrida, sem acesso a água potável e cheia de doenças não tratadas. Eram muito mais vulneráveis que o cidadão médio atual.

Por isso estamos falando de um continente perdendo metade da sua população. A combinação de uma população com dificuldades de se sustentar e uma doença extremamente mortal e incurável criam o ambiente ideal para um desastre dessas proporções. Tanta gente morreu que a humanidade teve que mudar, por pura pressão nos seus sistemas. O regime feudal dependia de muitos camponeses à beira da morte para funcionar, mas quando eles finalmente morreram, as coisas começaram a mudar.

É bem provável que a Renascença seja consequência de um mundo devastado pela Peste. O sistema feudalista se via diante de uma população muito reduzida, o que aumentou consideravelmente o valor de cada trabalhador e a oferta dos recursos disponíveis. De uma certa forma, foi o plano do Thanos acontecendo na vida real. Se onde havia duas pessoas para trabalhar, agora só existe uma, é bom você começar a considerar pagar salários. Se o mercado consumidor diminuiu tanto que comida e especialmente objetos manufaturados estão com estoques muito maiores, custa menos sobreviver. Isso começa a gerar especialização, políticas públicas mais garantistas e até mesmo muito mais artistas e pensadores com o passar das décadas.

A Peste Negra foi a pressão que o sistema antigo precisava para ruir. E com tantas cidades praticamente vazias pelas mortes, muita gente começou a se mudar buscando oportunidades, alterando a tradição de famílias que viviam por gerações no mesmo lugar sob o poder de uma só dinastia. Se as suas terras perderam dois terços da mão de obra e não tem gente desesperada querendo assumir o lugar, você tem que se mexer e oferecer condições melhores. Mas a Peste do século XIV não foi a última vez que a Europa sofreu, ela continuou reaparecendo com algumas décadas de respiro até a metade do século XVI. E, onde muita gente começa a morrer, a ideia de mecanizar os trabalhos começa a ficar mais e mais interessante. Embora exista um espaço considerável entre a Era Industrial e o último grande surto europeu, as sementes já estavam plantadas: o ser humano não era recurso infinito, e quem dependesse apenas de números de trabalhadores estava sempre fazendo uma aposta.

Infelizmente, a Peste Negra também pode ser relacionada com boa parte do fanatismo religioso da nossa história: a ideia de que a doença era uma punição divina e a completa ignorância sobre os mecanismos de seu funcionamento criaram o ambiente ideal para tornar toda fé ainda mais fervorosa. No mundo islâmico, muito afetado também, a ideia de que a Peste era uma punição era a teoria mais aceita, alguns textos sugerem que no Oriente Médio algumas autoridades até proibiam fugir da doença, para não mexer com os planos divinos. Na Europa, a Igreja Católica aproveitou para se estabelecer como poder hegemônico diante de um povo aterrorizado em busca de uma explicação. Muitas das ideias de sofrimento e sacrifício pessoal da religião cristã tomam forma nos tempos da Peste.

E para não deixar passar como o ser humano é repetitivo: os europeus começaram a culpar outros povos pela devastação, tentando achar um culpado para terminar aquela provação divina. Sobrou para os judeus, ciganos, imigrantes, deficientes, mendigos… milhares foram exterminados na esperança de acalmar seu deus.

A última grande epidemia da Peste Negra aconteceu na china no século XIX, espalhando-se para a Índia e matando dezenas de milhões de pessoas. A doença chegou nas Américas e até na Austrália. Mais recentemente, tivemos alguns episódios em Madagascar com uma versão resistente a antibióticos, mas mesmo num país tão pobre, o mundo moderno já é capaz de lidar com a situação. Em 2017 morreram só 170 pessoas de milhares contaminadas.

No Brasil, a doença foi responsável por alguns surtos, especialmente em cidades portuárias como Rio de Janeiro e Santos no começo do século passado. A necessidade de tratar esses casos e evitar que a doença se espalhasse no país acabou contribuindo para a criação de duas entidades que existem até hoje: em São Paulo, a fazenda Butantan foi escolhida para sediar o laboratório do Instituto Bacteriológico, que depois adotaria o nome da fazenda; no Rio, foi inaugurado o Instituto Soroterápico Federal, que depois se tornaria a Fundação Oswaldo Cruz.

O último caso registrado aqui é de 2005, a doença não desapareceu e ainda continua pipocando em vários lugares do mundo, mas sem uma fração do potencial destrutivo que já teve. E se você acha que foram os antibióticos que controlaram a doença, pense de novo: eles datam de 1928, depois da última grande pandemia. Hoje em dia eles garantem uma taxa de sobrevivência excelente para qualquer infectado, mas a doença perdeu sua capacidade de destruição com melhores hábitos de higiene e controle de pragas. Conhecimento venceu a Peste. Primeiro a percepção da relação entre as pulgas e a doença, e depois a teoria dos germes que nos ensinou que a maioria das doenças são invisíveis.

Foi só agindo de acordo com ciência cada vez mais confiável que as coisas melhoraram. Não foi superstição, não foi mais fé, não foi matar “indesejáveis”. A Peste nos ensinou que a ciência é a alternativa ao completo desamparo de ver metade da sua cidade morrendo e não ter nenhuma ferramenta para lidar com isso. No século XIV eles não tinham chance de fazer diferente, mas nós… nós temos.

Para dizer que essa semana foi doentia, para dizer que estamos parecendo velhos falando só disso, ou mesmo para dizer que logo logo vai ser proibido falar Peste Negra: somir@desfavor.com

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