Escolha mor(t)al.

Com a crise que a pandemia instalou nos hospitais brasileiros, muitos médicos precisam tomar a terrível decisão de quem tratar e de quem não tratar. O que normalmente significa vida ou morte. Sally e Somir pensam em critérios bem diferentes para tomar essa decisão. Os impopulares decidem quem vive.

Tema de hoje: Qual é o critério mais justo para decidir quem vive e quem morre, na falta de medicamento/atendimento médico em meio a uma pandemia?

SOMIR

Critérios estatísticos baseados em dados técnicos decididos por um programa de computador. Não acredito que uma regra meio aleatória como idade ou algo subjetivo como a experiência de um médico deveriam contar. Muito menos algo que tente levar em conta personalidade e atitudes da pessoa em momentos anteriores.

Medicina é uma ciência, e apesar da dificuldade imensa de desvendar a imensa complexidade do organismo humano, é uma ciência que conseguiu evoluir absurdamente em questão de pouco mais de um século justamente por colocar seu foco na análise criteriosa de dados, com cada vez menos espaço para achismos e tratados filosóficos.

O corpo humano é uma máquina biológica. Obedece uma série de regras baseadas na física e na biologia para exercer suas funções, e por mais que estejamos longe de conhecer todas, já sabemos que quanto mais delas desvendamos, maior é a média de longevidade da espécie. Medicina começou a funcionar de forma previsível quando se afastou de crendices e subjetividades.

Quando a medicina foca na mecânica do funcionamento do organismo, evolui rapidamente e melhora a qualidade de vida global. Quando a medicina fica se debruçando sobre questões morais e reagindo ao ambiente político e social, temos nebulização de cloroquina. Duvida? Pega os dados de longevidade de algumas décadas atrás e compara com os atuais. Método científico funciona e ele pode se provar na prática.

Medicina que olha para os números salva vidas. Sim, gente ruim é salva e gente boa morre; eu sei que nos revolta às vezes, mas isso nada tem a ver com o que a medicina faz ou deixa de fazer. Nenhum médico tem controle sobre a vida de quem chega no hospital, não é a função deles ter esse controle. Se quer alguém para te dizer como viver, procure um sacerdote religioso. Médico está lá para analisar o caso da forma mais técnica possível e definir o tratamento com maior chance estatística de sucesso.

Porque qualquer desvio dessa regra pode causar problemas sérios para a sociedade como conhecemos. A sociedade humana se desenvolveu com especialização de funções, e na maioria do mundo civilizado, a função de julgamento foi entregue para juízes. Médico não te julga, médico pratica medicina, e é por isso que ele tem função no mundo.

Eu não quero ver mecânico construindo casas, não quero ver cozinheiro desenvolvendo programas de computador, não quero ver advogado conduzindo experimentos biológicos… assim como não quero ver médicos julgando pessoas. Cada um na sua função, especialmente se exigir muito estudo e experiência para ser exercida.

E como em tantas profissões nos dias de hoje, a medicina também pode se beneficiar muito de computadores oferecendo o poder de processamento de dados que o cérebro humano simplesmente não é capaz de entregar. De um ponto de vista prático, um computador com um modelo suficientemente grande de dados para analisar pode entregar um resultado bem melhor na previsão da capacidade de sobrevivência de um paciente. Pode ser que erre? Não só pode como vai, mas vai errar muito menos que um ser humano.

E como eu disse anteriormente: medicina é uma ciência. A missão é reduzir a aleatoriedade e melhorar as chances de sobrevivência do ser humano, não importa quão pequenas sejam essas variações estatísticas. Porque como pudemos ver nas últimas décadas, essas pequenas variações acumulam, e rapidamente ganhamos décadas de expectativa de vida.

Não podemos pensar, nem por um segundo, no que as pessoas fizeram ou deixaram de fazer antes de entrar no hospital. Primeiro porque não é a função do médico e segundo porque não é realista esperar que isso evite qualquer forma de injustiça. Quando você entra nesse aspecto de julgar uma pessoa pelo seu merecimento de sobreviver, o número de variáveis explode rapidamente.

Quem merece viver? Um homem de 62 anos de idade que fez tudo certo na pandemia ou uma jovem de 28 que saiu para a balada? E se eu disser que o homem bate na esposa? E se eu disser que a mulher ajuda num orfanato? Sério que você quer que médicos fiquem analisando merecimento?

E se o médico escolher salvar a pessoa que não é gay? E se escolher salvar quem tem a mesma religião que ele? Se você abrir a porta da subjetividade, ela não fecha mais. Medicina deixa de ser medicina, vira Poder Judiciário, sem nenhum dos mecanismos que controlam o Poder Judiciário. Azar de todo mundo, porque quando ciência deixa de ser ciência, involuímos. E essa involução pode ser sentida na piora da qualidade média de vida da humanidade.

Normalmente nesses temas eu deixo a coisa mais aberta, considerando que cada um tem sua opinião, mas dessa vez eu acredito, de verdade, que seja questão de sobrevivência da espécie: NUNCA abra a porta para a subjetividade ética/moral na medicina. Nenhuma satisfação pessoal momentânea vale perder uma das bases da sua qualidade de vida. Pode até ser triste saber que um imbecil que não fez a coisa certa na pandemia foi preferido no hospital, mas mais triste ainda é estragar a objetividade de uma das ciências que contribuiu mais diretamente para um padrão de vida mais decente do ser humano.

Pode ser satisfatório agora, mas vai cobrar um preço imenso no futuro. Um dia você vai ser punido por permitir um erro grosseiro desses. Médico não tem que decidir quem merece mais, médico tem que salvar vidas com o máximo da sua capacidade. E nem deveria ficar sofrendo com as decisões: coloca num programa de computador e escolhe quem tem a maior porcentagem de sobrevivência baseada em dados anteriores.

Quando emoção entra na medicina, paciente de Covid é tratado com cloroquina.

Para dizer que seu coração é maior que o seu cérebro, para dizer que rejeita a sociedade moderna e quer viver como macaco, ou mesmo para dizer que não faz diferença porque vai acabar o oxigênio mesmo: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o critério mais justo para decidir quem vive e quem morre, na falta de medicamento/atendimento médico em meio a uma pandemia?

O mais justo? O mais justo de verdade? Análise de caso a caso, privilegiando tratar quem realmente se cuidou. Não sei se seria possível implementar isso, mas, como aqui falamos em tese, em tese merece ficar sem atendimento em caso de colapso filho da puta que foi à praia, que foi a barzinho, que foi a jantarzinho na casa de amigo “com todas as precauções” e “em nome da saúde mental”. Esses podem deixar morrer, Darwin aplaude em algum lugar.

Não acho o critério de idade justo. Não mesmo. Um imbecilóide que foi a festa clandestina, que riu do vírus achando que ele era exagero da mídia, que acreditou que sabia mais do que cientistas do mundo todo e tomou cloroquina se sentindo imune não vai fazer a menor falta quando se pretende construir uma sociedade melhor. Prefiro mil vezes um idosinho que fez tudo certo, mas que acabou adoecendo apesar de todos os cuidados.

Antes de mais nada, é preciso desmistificar uma coisa: a pessoa pode tomar todos os cuidados e, mesmo assim, se sair de casa, pode se contaminar. “Ah, mas eu estou de máscara”. Meu anjo, basta que você coce o olho sem querer (spoiler: uma pessoa normal coça o rosto mais de mil vezes por dia sem perceber) e você se contamina. Basta que a máscara sai um pouco do lugar, por um espirro, por uma coceira, pelo vento, que você se contamina. Ninguém sai de casa 100% protegido, não importa quantas medidas de segurança sejam tomadas.

Se existisse algo que assegure 100% de proteção, não tinha médicos e profissionais da saúde morrendo como moscas (e, em termos técnicos, eles estão muito mais protegidos do que a gente com o EPI). Então, repito: não tem jeito seguro de sair de casa. Se você quer acreditar nisso pois te traz alguma paz, acredite, mas não é verdade.

Daí partimos da premissa que, cada vez que uma pessoa pisa do lado de fora da sua casa, está se expondo a risco de vida, está expondo a sociedade a risco de vida, está aumentando as chances de uma variante que escape da vacina, está aumentando as chances de que colapsem os hospitais e morra todo mundo que precisa de atendimento médico, até mesmo seu filho caso tenha uma apendicite. É por isso que cientistas do mundo todo estão implorando para que as pessoas fiquem em casa e não saiam, a menos que seja extremamente necessário.

O que é extremamente necessário? Comprar comida, comprar remédio, trabalhar (se não houver outra forma de fazê-lo), procurar atendimento médico. Não é nada tão subjetivo. O que não é necessário: reuniões sociais, bares, restaurantes, praia, lazer em geral. Se existir uma forma inequívoca de averiguar se a pessoa saiu de forma desnecessária, isso deve ser usado como critério para escolher quem recebe atendimento e quem não. E, vai por mim, babaca que sai no meio da pandemia é babaca o bastante para compartilhar fotos disso em redes sociais.

Meu cálculo dos indivíduos mais valiosos para a sociedade não se faz com base em idade, que, por sinal, nem sempre significa capacidade produtiva. Tem muito avô que banca filho e neto, dessas gerações vagabundas nem-nem que não conseguem prover o próprio sustento. Meu critério para apontar os indivíduos mais valiosos, aqueles que merecem sobreviver pelo bem-social que fazem, se inclina mais para aquelas pessoas que não são filhas da puta egoístas negadoras da ciência.

E, atentem para uma diferença: ninguém está dizendo aqui que quem sai tem que morrer na sarjeta e nunca ser atendido. Estamos falando de escolhas trágicas, de casos em que há muitos contaminados e não há atendimento, leitos, medicamentos e respiradores para todos. Alguém vai morrer, fato. É tudo uma questão de discutir quais critérios usar para decidir quem morre e quem vive.

Se queremos uma sociedade melhor, isso não pode ficar ao acaso. Passou da hora de tomar as rédeas do país e começar a trabalhar efeticamente para ter um povo menos merda. Vai decidir quem sobrevive no cara ou coroa? Vai sobreviver muita gente merda, responsável por mortes de inocentes, pelo atual colapso no sistema de saúde e que no futuro vai negar outra pandemia ou outra doença, causando mais mortes e sobrecarga em profissionais de saúde.

É questão de ensinar às pessoas sua responsabilidade: quer sair? Saia. Mas saiba que você pode perder seu direito a um tratamento caso adoeça e haja escassez de recursos. “Ah mas eu tenho direito…”. Se você sai de forma irresponsável, o único direito que você tem é de se foder. Isso pode ser equiparado a homicídio, vocês têm muita sorte que o Brasil é um país de Judiciário frouxo que bate palma para crime, fosse em outro país, sairiam do hospital para a cadeia.

“Mas meu direito de ir e vir assegurado pela Constituição…”. Esse é o problema de leigos interpretando lei, são jumentos que só conhecem uma frase e a repetem. A Constituição brasileira é um sistema, bem como todas as leis, decretos, códigos e todo o resto. É preciso conhecer TUDO e fazer uma interpretação global. A interpretação é: poucos direitos na Constituição são absolutos, em sua maioria, são relativos. Até o direito à vida é relativo (por exemplo, há pena de morte para crimes de guerra), imagina se o seu direito de ir no boteco da esquina vai ser absoluto!

O guia é: bem-estar coletivo. O bem-estar coletivo se sobrepõe ao individual. Então, existe seu direito de ir e vir sim, desde que ele não cause um dano coletivo. Ir e vi na pandemia causa, como vocês já devem ter reparado. Então, quem grita por seu direito de ir e vir pode pegá-lo, dobrá-lo, e enfiá-lo bem no meio do seu cu e depois ir fazer uma faculdade de direito para parar de passar vergonha quando abre a boca.

Chega de passar a mão na cabeça de irresponsável. Quem faz escolhas nocivas tem que ser responsabilizado. Foi a festa clandestina? Se recusou a usar máscara? Lambeu corrimão para provar que covid é invenção da Globo? Fez qualquer merda e se contaminou? É critério válido para não receber atendimento se concorrer com alguém que fez tudo certo.

Para me chamar de nazista, para me chamar de fascista ou para me chamar de ciclista: sally@desfavor.com

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Comments (16)

  • “(…) dessas gerações vagabundas nem-nem que não conseguem prover o próprio sustento”.

    Consideremos quatro quesitos Nem-Nem: nem trabalham, nem estudam, nem se protegem, nem protegem os outros. A partir daí, são 11 motivos para serem colocados ao final da fila (ou fora dela) em qualquer situação: seis combinações de critérios (dois a dois), quatro combinações de critérios (três a três) e 1 possibilidade que atenda todos os 4 quesitos.

    Imaginem colocar mais critérios nem nessas combinações como, por exemplo, nem quiseram a vacina, nem acreditam na ciência…

  • Cacete, eu to isolada faz 13 meses.
    Saio 1 ou 2 x por mês p ir ao mercado, e volto com o cu na mao de medo.
    Pqp, não me conformo com quem sai pra gandaia, pro boteco, pra balada, pra viajar (a vaca da minha sobrinha pegou um voo e foi p África, tá lá na praia, e manda fotos todos os dias).
    Só eu q sou cagona e tenho medo?
    O fato dela ter se vacinado em janeiro da essa garantia pra ela ir pra África?
    Concordo com Sally.
    Macacos me lambam, se eu pegar COVID meu convênio não vai ter leito no hospital p q tá lotadaço.

    • Quem tem consciência tem medo, receio ou, no mínimo, respeito pelo que está acontecendo.
      O problema é que a maior parte das pessoas não tem consciência de porra nenhuma, acorda, come e dorme, feito bicho.

  • Eis dois bons motivos para que os médicos usem o critério mais simples para salvar alguém: quem eu posso salvar com os recursos que tenho? Como avaliar quem se cuidou de forma decente, ou como colocar dados em um computador e esperar um resultado matematicamente consistente?

  • Sally (ou Somir), vejo que algumas vezes você cita os nem-nem. Poderia fazer um texto sobre isso (ou sobre diferença entre pessoas incompetentes de apenas desempregados, sei lá) um dia, se quiser?

    • Já fizemos, está em algum lugar do passado no Desfavor, no tempo em que o PT estava na Presidência.
      A diferença entre um nem-nem e um desempregado é a inércia. Uma pessoa que não tem oportunidade se mexe, procura, busca algo para se aprimorar (existem centenas de vídeos, canais e cursos no youtube que te ensinam desde falar outro idioma até melhorar outras habilidades). O nem-nem não tem trabalho e não quer mover um dedo para ter trabalho: ou o aceitam como ele é (geralmente medíocre) ou a culpa não é dele e sim de uma sociedade opressora e injusta.

      • Sally, quem apenas estuda também pode ser considerado _nem-nem_ ? Eu sei que é uma pergunta imbecil, mas tenho 20 anos faço um curso em uma universidade pública (Direito) e me sinto mal por não estar trabalhando ainda, alguns familiares distantes me chamam de acomodada e preguiçosa. Eles teriam razão, de certa forma? kkkkk

  • A proposta da Sally é boa, o difícil mesmo é aplicá-la, afinal… Só analisando rede social basta? Não teria que ter um questionário a ser respondido? Ainda assim, com quais perguntas? Isso incorreria em erros e em subjetividade, então… acho que fico com o Somir nessa. Preferível acreditar numa máquina, em números, em frieza calculista e racionalidade, mas eximida de subjetividade, do que ter que lidar depois com o peso das consequências de escolhas morais mal feitas.

    • Claro que basta. Você vê um vídeo da pessoa em uma festa com um copo na mão gritando que aglomera mesmo e foda-se a vida… o que mais precisa?

        • Por qual motivo seria melhor salvar uma pessoa que vai durar mais mas que vai gerar um prejuízo social enorme por ter titica de sabiá amarelo na cabeça?

          • Nossa, mas como é que vai avaliar se o sujeito tem mesmo titica na cabeça? Não teria que aplicar testes psicológicos pra isso? A análise seria baseada tão somente no que posta em rede social? Ainda assim acho difícil isso aí…

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