Será que mulheres realmente deveriam poder votar?

Eu aposto que alguma coisa passou pela sua cabeça antes de clicar em continuar lendo, não passou? Especialmente se você é leitor ou leitora de longa data, com uma relação de confiança com o que eu escrevo. Se uma pessoa que você acha que sabe do que está falando faz uma pergunta, a tendência da maioria de nós é pensar nessa pergunta ao mesmo tempo. Mesmo que você já tenha uma resposta na cabeça.

Percebam que como eu ainda não tentei responder à pergunta do começo do texto, ainda existe uma certa tensão no ar sobre o tema. Você está em processo de consumo de conteúdo, não tem como falar comigo agora para resolver essa tensão. Como a pessoa que está criando o conteúdo que você está vendo agora, eu tenho o poder de criar e manter essa tensão pelo tempo que quiser.

Será que a política se tornou melhor desde o momento que a mulher começou a votar?

Não deu nem para você responder a primeira, e já tem outra pergunta no ar. A tensão aumentou. Eu provavelmente estou indo para algum lugar nessa argumentação, e salvo engano, a maioria de vocês já está prevendo para que lado eu vou me voltar com a resposta da primeira pergunta. Mas de pouco adianta, porque eu estou mudando de assunto logo depois de fazer a pergunta. Você ficou sozinho(a) com ela, eu estou te forçando a ler algo que não parece ter conexão com o tema ao mesmo tempo que deixo a bola do voto feminino quicando no fundo da sua cabeça.

E percebam a sutileza: não só eu consegui colocar esse tema na sua cabeça sem falar dele de verdade, como a segunda pergunta sobre a melhoria da política já deixou uma “casca de banana” no meio do assunto. Você continua consumindo conteúdo, eu não estou te dando tempo para analisar o tema, a qualquer momento você pode escorregar. Eu estou colocando em dúvida o direito da mulher votar, algo impensável na sociedade atual. Mas… é só uma pergunta. Eu nunca disse que não poderiam. Eu só… perguntei.

Se tinha alguma parte da sua cabeça que realmente queria colocar isso em questão, seus neurônios estão empolgados com a oportunidade. É que nem chacoalhar um bife na frente do leão. Os “músculos cerebrais” estão retesados, em posição de ataque. Talvez você tenha uma visão considerada incorreta sobre o tema, uma que não pode falar normalmente. A oportunidade está próxima: “o Somir não colocaria essas dúvidas no ar se não tivesse algo provocativo para dizer, certo? Assim que ele falar eu vou me sentir representado, talvez até comente sabendo que não estou sozinho(a)”

Ou, talvez seja a primeira vez que você parou para pensar sobre esse tema. A dúvida que eu apresentei nunca passou pela sua cabeça, mas agora que está aqui… você até pode enxergar algum argumento contra o direito feminino ao voto. Se você acha que mulheres são muito emocionais, se acha que elas exageram nessa coisa de justiça social, se convive com mulheres que parecem ter Q.I. negativo… tem um monte de coisa que você pode estar considerando ao mesmo tempo em que a pergunta finalmente pediu precedência na sua mente.

Será?

Bom, a minha resposta é: mulheres têm que ter o direito de votar, porque delas são cobradas as mesmas responsabilidades legais que os homens. Voto tem que ser universal porque partimos do princípio de universalidade dos direitos e deveres básicos. Qualquer ideia diferente dessa é querer mexer com a lógica de funcionamento de Estados democráticos de direito. Como eu quero ter os meus direitos, eu quero que os outros tenham também.

Pra mim não era algo sequer discutível, é regra do jogo. Se a humanidade demorou para acertar essa regra, que pena. Nem mesmo liberdade era garantida para seres humanos no Brasil 100 anos atrás. Voto então? Tínhamos imperadores decididos por hereditariedade. O caminho da história é ir corrigindo os absurdos para chegar numa sociedade mais humanitária.

Se você ficou pensando na “qualidade” do voto que a mulher faz, perdeu completamente a linha de raciocínio aqui. A pergunta tinha base no direito, não em se você acha que mulher vota bem ou não. Votar bem é uma coisa incrivelmente subjetiva, que ninguém nasce fazendo melhor ou pior que o outro, é resultado da capacidade do indivíduo ler o ambiente ao seu redor e tomar as decisões mais acertadas. Por isso a gente sempre bate aqui no motivo pelo qual o brasileiro médio vota em gente terrível, não no direito dele de poder fazer isso.

Então pra que esse texto, Somir, seu chato?

Simples: para explicar o poder da pergunta. O leitor médio do Desfavor provavelmente não consegue se colocar no lugar de uma pessoa muito limitada intelectualmente. Os textos longos são um filtro, uma pessoa que tem dificuldade de compreensão de ideias começa a se sentir mal quando é colocada diante das paredes de texto (para padrões da internet moderna) que colocamos aqui todos os dias.

Você pode até achar que não, mas pertence a uma elite. Infelizmente, uma elite num contexto nivelado muito por baixo: aguentar ler o que escrevemos e tirar alguma conclusão disso (desde que exista o interesse) deveria ser o básico do básico; só que num país tão desigual acaba virando algo para poucos. O que você talvez não saiba é que a sequência de perguntas e parágrafos não relacionados com ela é um exemplo de como esse cidadão médio brasileiro lida com informação.

Um exemplo que eu consegui emular usando a confiança que você tem em mim. Concordando ou não, pelo menos você já deve saber que eu pelo menos fundamento minhas ideias aqui. Agora, imagine o contexto de alguém que não consegue ler muitos parágrafos, que entende rudimentarmente as ideias que ouve, que confunde facilmente fatos com opiniões e que não tem educação suficiente para ter uma base científica ou sociológica sobre o funcionamento do mundo.

Pra essa pessoa mais limitada, qualquer pergunta pode desencadear o mesmo efeito que a minha sobre o voto feminino desencadeou. Qualquer uma. Esse benefício da dúvida que você me deu – nem que fosse pela curiosidade sobre como eu ia tentar defender algo como retirar direitos das mulheres – é algo que a pessoa limitada oferece para virtualmente qualquer tema que não seja muito próximo do coração dela.

É assim que perguntas se tornam armas de manipulação. Imagine se você ficasse com a mesma pulga atrás da orelha que ficou com a minha pergunta se alguém colocasse em dúvida o formato da Terra? É virtualmente impossível que alguém te coloque em modo de dúvida se soltar um “será que a Terra é redonda mesmo?”; mas para boa parte da população brasileira, a dúvida aparece.

E essa dúvida deixa um ponto fraco na armadura da pessoa contra qualquer ideia que for relacionada. “Será que dizer que a Terra é redonda não é um jeito de te enganar?”, “será que a gente deve confiar mais no cientista do que na Bíblia?”, “será que que o Diabo tem algo a ver com isso?”. Pronto, você jogou a pessoa num caminho maluco, mas que tem consistência interna. E é nessa consistência interna que o perigo mora.

Uma sequência de perguntas para as quais você não tem resposta imediata faz seu cérebro preencher os espaços entre elas. Ele não aceita buraco entre uma ideia e outra, ou conecta ou não existe. E você vai conectar duas ou mais perguntas do melhor jeito que puder. Se alguém conseguir te deixar confuso nessa sequência, dá pra enfiar argumentos venenosos nelas e te levar junto.

Quando eu fiz a primeira pergunta sobre o voto feminino, eu estava falando sobre um direito. Quando eu fiz a segunda pergunta sobre a qualidade dos políticos desde que elas começaram a votar, eu tirei a discussão sobre direitos da sua frente e coloquei no lugar uma sobre as pessoas saberem votar bem ou não. Como é lugar comum aqui discutirmos as horrendas escolhas do eleitor brasileiro, deu para injetar no tema a ideia de que as mulheres votam mal. É tipo um truque de mágica, chama atenção para as cartas na mão esquerda enquanto mexe no bolso com a direita.

A pergunta original tinha alguma coisa a ver com pessoas votarem bem ou mal? Mesmo que você nunca tenha pensado em dizer “não” para a pergunta sobre as mulheres poderem votar, aposto que a segunda pergunta te distraiu um pouco, não? E dava para continuar nessa linha. Quando você começasse a pensar na qualidade do voto, eu poderia ter perguntado sobre a estabilidade emocional das mulheres que você conhece. Não teria feito nenhuma afirmação, mas você estaria vindo junto nessa palhaçada e começado a pensar em exemplos que validassem ou refutassem essa afirmação. Eu poderia continuar e continuar, até chegar em algum lugar onde você realmente não saberia muito bem o que pensar.

E é aqui que o golpe acontece. Se depois de dez perguntas, sem dar nenhum argumento, eu perguntasse se você conhece alguma mulher com opiniões políticas horríveis, você ia pensar em uma. E se eu sair do assunto nessa hora, aquela sequência inteira de perguntas vai ser respondida, mesmo que inconscientemente, pelo raciocínio final. No caso, o de imaginar se aquela mulher com opiniões políticas horríveis (na sua opinião) deveria poder votar. E a tentação de dizer não seria grande.

Tem alguma coisa a ver com o assunto original? Não! Como eu disse na minha resposta honesta para a pergunta original, é sobre direitos humanos. Quem vive numa democracia e “paga” por ela, seja em recursos ou responsabilidades, tem o direito de escolher seus representantes. Goste você ou não dela ou do que ela pensa. Quem sair dessa base para pensar se a pessoa vota bem ou não foi passado pra trás por uma série de perguntas manipuladoras.

É assim que as conspirações, as Fake News e muito da rejeição científica presentes na sociedade atual se perpetua: pelo uso “militarizado” de perguntas. Precisa de cultura, educação e segurança emocional para dizer “não sei”. O que a indústria da pós-verdade percebeu é que uma boa sequência de dúvidas é mais poderosa do que uma sequência de afirmações. Para afirmações você tem proteções, para dúvidas, muito menos.

Exemplo pra reforçar:

Será que a vacina é segura?

“Espera, por que você está perguntando isso? Não é?”

Será que eles estudaram bem os efeitos delas?

“Eu achei que estudavam isso bem, não sei dizer se estudaram…”

Será que tem interesses maiores em forçar todo mundo a tomar?

“Realmente, o governo e os ricos não dão bola pra mim… pode ter algo errado na vacina.”

Será que você pode não tomar a vacina se não quiser?

“Filhos da puta! Estão forçando a gente a tomar vacina! Não deve ser segura, senão não forçariam! Quem está armando isso?”

Insira judeus, chineses, bilionários, reptilianos ou o que bem entender aqui. A pessoa vai comprar sua ideia sem você argumentar nada. O problema de explicar vai ficar para o lado “inimigo”; você só perguntou, não está preso a nada. Perguntar é fácil, explicar é muito difícil.

Cuidado com perguntas. Mesmo pessoas mais bem estudadas podem cair nessa armadilha: uma pergunta não responde outra. Isso é comunicação básica. A gente tende a esquecer, especialmente se está disposto a ouvir outra pessoa. Para o cidadão mais simples, qualquer pessoa com capacidade de escrever e um mínimo de articulação parece um “doutor” em qualquer assunto. Para você pode custar mais caro ser enganado por uma sequência de perguntas, mas não é impossível. Muito cuidado com quem tenta se comunicar com você desse jeito: é um truque de manipulação, que infelizmente pouca gente aprende a perceber nessa vida.

E sim, eu escolhi a imagem do post para te deixar ainda mais perdido(a). Nada a ver com o tema real.

Para pedir pra Sally reescrever de um jeito que humanos entendam, para dizer que ainda acha que estamos falando sobre voto feminino, ou mesmo para dar sua opinião pra não perder a viagem: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Um problema sutil nessa discussão é que cientistas são treinados para fazer perguntas que conseguem responder. Eu vivo dizendo aos meus alunos que bons cientistas são aqueles que fazem boas perguntas, e essas são as que tem resposta. O mecanismo é completamente diferente desse que você descreveu. Não tinha pensado nisso antes. Obrigado pelo alerta, vou passar esse texto pro pessoal da Academia estudar.

  • Já escovou os dentes hoje? (se todos os dias, há chance de criar uma memória falsa, logo) Você escova todos os dias? (o que te leva a pensar em todo processo de higiene bucal) E o fio dental? (e à essa altura, devido confusão entre títulos, você pode perder o fio da meada) Vermelho, branco ou preto com ou sem rendinha?

  • Às vezes eu tenho a impressão de que as pessoas já estão “predestinadas” a determinadas opiniões, que ninguém muda de opinião de verdade, apenas descobre uma opinião que não sabia que tinha pois nunca havia pensado no assunto, ou revela/esconde uma opinião que sempre teve. Duvido que haja algum embasamento científico ou biológico nisso, mas é que nunca vi ninguém mudar radicalmente de opinião sobre nada. Nem eu mesma. Espero que não tenha ficado confuso.

  • “Você pode até achar que não, mas pertence a uma elite.” É porque você não viu meus boletins dos tempos de escola, hahahahaha! Se eu sou da elite intelectual, a humanidade está perdida.

    Tem a questão do constrangimento e do ego também, que é bem descrita nos textos abaixo:
    https://mauropennafort.com.br/shaming-envergonhamento/
    https://mauropennafort.com.br/convencer-e-inutil/
    O constrangimento tem sido exaustivamente usado em debates pra fazer a outra parte se sentir horrível por discordar, e como o ser humano é naturalmente carente de atenção…
    A pergunta que você deve fazer é: essa pessoa vale o esforço? Vai te fazer diferença se ela te achar horrível ou não?

    • “O constrangimento tem sido exaustivamente usado em debates pra fazer a outra parte se sentir horrível por discordar, e como o ser humano é naturalmente carente de atenção…” Tenho reparado nisso também.

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