Injuriados.

O TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) acolheu um pedido do MP e definiu que Nikolas Ferreira (PL) responderá por crime de injúria racial após se referir a deputada Duda Salabert (PDT), uma mulher transexual, no pronome masculino. A queixa-crime foi apresentada por Duda em dezembro de 2020 quando ambos eram vereadores em Belo Horizonte. Na época, Nikolas Ferreira disse a um veículo de comunicação que Duda era homem porque “é isso que está na certidão”. LINK


Tá, mas resolve alguma coisa? Desfavor da Semana.

SALLY

O direito é, por natureza, um atrasado: ele espera as mudanças sociais acontecerem e depois se adapta a elas. É assim que funciona. A realidade social muda, leis ficam obsoletas, novas leis são criadas para melhor se adequarem à nova realidade.

Quando a sociedade evolui mal, a lei evolui mal. Quando a sociedade evolui bem, a lei evolui bem. E, no Brasil, quando a sociedade evolui mal, forçam leis de primeiro mundo para tentar melhorar a sociedade, ignorando por completo que o direito não é causa, é consequência social. Daí nasce esse tipo de aberração: “tem que ter lei, para educar esse povo”.

Sabemos que existem pessoas que não se identificam com o gênero com o qual nasceram, mentes masculinas presas em um corpo feminino e vice-versa. Em momento algum estamos negando isso, é um fato. Porém, também sabemos muito bem qual é a capacidade de raciocínio do brasileiro médio, depois de tantos anos da coluna “Ei, Você”. Fica claro que essa situação é de uma sutileza quase que impossível de alcançar para a maior parte dos brasileiros.

E a culpa não é só do brasileiro médio, políticos fazem questão de manter essa gente em um mundo preto e branco, de certo e errado, de polaridades, incentivando rivalidade e negando educação de qualidade. O que se dá ao povo é o Nós x Eles, quem não é como eu é meu inimigo. Há anos o povo é incentivado a pensar assim, mas, se pensar assim contra um grupo que é de simpatia do Presidente da vez, ahhh, aí não pode, aí é algumacoisafóbico e tem que ser preso! “Tem que fazer lei para educar”, “Tem que prender para educar”.

A função do direito não é educar, sobretudo do direito penal. Ele tem caráter punitivo (mostrar que não vale à pena cometer um crime pois as consequências são muito ruins) e preventivo (fazer com que as pessoas pensem duas vezes antes de fazer algo socialmente nocivo). E se você, em algum momento, achou que punição e prevenção são o mesmo que educação, bom, eu lamento muito por você. A função do direito penal é retirar do convívio social quem optou por não seguir a educação que recebeu.

O direito penal é chamado de “última razão”, ou seja, é o último recurso que o Estado pode aplicar para tutelar algo, visto que prender alguém é uma punição pesada (privação da liberdade tem que ser uma exceção, não a regra) e custa caríssimo para o contribuinte. Só deve ser preso aquele que é um grande risco para a sociedade se estiver solto. Só deve ser crime aquilo que de nenhuma outra forma pode ser coibido. Os exemplos clássicos são homicídios, estupros e violência em geral.

Não nego que Nikolas Ferreira seja um escrotinho e também transfóbico, pois se comportou assim várias vezes. Mas, o fato de eu sentir repulsa por aquilo que ele faz não tem que ser o determinante para algo ser crime ou não. Criminalizar uma conduta tem que ser uma decisão racional e deve observar uma série de critérios, inclusive o da última razão. Tem forma de coibir isso sem prender? Então não deveria ser crime.

Mas, no Brasil a lei não é a que está escrita no Código Penal e sim o que o STF diz que é. Em um entendimento (decidiram várias vezes nesse sentido) do Supremo Tribunal Federal (STF), ofensa à honra pessoal, em desrespeito à identidade de gênero, é uma espécie de racismo, portanto, pode ser considerado crime.

Eu já te adianto que nada vai acontecer com Nikolas Ferreira. A Deputada tá bravateando em redes sociais que ele vai ser preso, mas não vai. SE houver condenação, não será de prisão.

O que nos leva ao primeiro argumento do porquê é contraproducente punir criminalmente uma troca de pronome: quando você criminaliza algo que não deveria ser tutelado pelo direito penal, fica impossível de encaixar uma pena decente. Se coloca uma pena branda, nunca dá em nada, se coloca uma pena alta, vira uma desproporção, uma vez que trocar o pronome acaba sendo punido com a mesma severidade de um homicídio (homicídio simples pode ser punido com 6 anos). Então, é contraproducente por ser desmoralizante.

O segundo argumento é que isso poderia ser tutelado pelo Direito Civil. Uma multa altíssima, uma punição exemplar que não implique na privação de liberdade (como perder o cargo e não poder mais se candidatar) ou muitas outras opções são possíveis. Possíveis e mais eficazes. Bota uma multa de um milhão de reais, confisca os bens para pagar, confisca o salário e reverte tudo para campanha educativa sobre transsexuais. Mas a cabecinha doente do brasileiro tem essa sanha punitiva, a pessoa que prisão, ela quer castigar o outro e não melhorar a sociedade.

O terceiro argumento é de cunho social mesmo: não se muda uma sociedade assim, na base da lei. Tá errado. Não funciona, como de fato não funcionou em nenhum outro caso. Por acaso o número de agressões contra mulheres diminuiu após a Lei Maria da Penha? Não. Aumentou. Lei não é para educar. Educação educa, lei pune. É como aplicar uma prova em um aluno que nunca aprendeu a matéria e reprovar ele para ele aprender.

Educação é algo de base, que envolve cultura, escola, família, costumes e exemplo. Não adianta pensar nas leis mais rigorosas do mundo se isso não vier antes. Países com baixa criminalidade, além de leis severas, tem tudo isso antes.

Hoje, o que temos no Brasil é educação negligenciada, estímulo à rivalidade e polarização e péssimos exemplos por parte daqueles que lideram o país. Não falo de um ou de outro, falo dos políticos em geral. Não adianta aumentar a nota de reprovação para 8 para obrigar o aluno a aprender se ele não tem aula e não tem livro. Não adianta colocar uma pena mais severa se a pessoa não teve educação, no sentido amplo.

Usar a lei não educa, muito pelo contrário. Gera raiva, medo, aumenta a polarização. Em vez da pessoa ganhar consciência e aprender algo, ela detecta um ataque, detecta, naquele grupo um inimigo a ser combativo e desgosta ainda mais, escuta qualquer coisa a respeito com uma tremenda má vontade e, sempre que puder, vai jogar contra.

Falta ao ser humano aceitar que existem pessoas com diferentes graus de consciência: alguns muito evoluídos, alguns rudimentares. E que isso não é necessariamente por escolha. Depende da família na qual você cresceu, do seu entorno, da sua educação e de muitos outros fatores. Gostando ou não, temos que buscar a melhor forma de conviver com esses diferentes graus de consciência. E a melhor forma não processar criminalmente pelo uso de um pronome.

Eu me pergunto se essas pessoas que acham que tem quem prender, que tem que punir, admitem para si mesmas que isso é reação fruto de raiva, ódio, vingança ou se elas realmente acreditam que assim se educa. Ou são muito escrotas, ou são muito burras, ainda não me decidi. Talvez ambos.

O último argumento eu deixo para o Somir desenvolver: não dá para sustentar a progressão que está ocorrendo. Como é que um Estado que emite um documento classificando uma pessoa como “homem” vai punir alguém por chamar essa pessoa de “homem”?

Estamos flertando com a esquizofrenia. Se continuarmos empurrando essa linha para frente, de que a pessoa tem que ser tratada como ela se sente, em breve teremos ser humano trans-espécie que se entende como cachorro processando veterinário por não querer atendê-lo. Vai ficar insustentável, é questão de tempo. Em algum momento será preciso um basta, será preciso dizer “ok, você se sente assim, mas a realidade é essa”. Ignorar a realidade é mais nocivo do que ofender alguém.

Para dizer que eu estou chamando trans de cachorro (que preguiça), para dizer que vai demorar séculos até o brasileiro entender que lei não é para educar ou ainda para dizer que na briga entre esses dois você é a favor da briga: sally@desfavor.com

SOMIR

É muito tentador olhar para esse caso e começar a fazer juízos de valor baseados nas pessoas envolvidas. Nikolas Ferreira é um “influencer conservador” que ganhou um cargo político, sua carreira é baseada em chamar atenção e manter engajamento. Ou seja, mesmo se a gente deixar em segundo plano as bobagens bolsonaristas que repete por aí, ainda tem o componente de exploração financeira da polêmica.

Por isso, é fácil olhar para o caso e pensar que bem-feito ele ter problemas jurídicos com sua estupidez com fins lucrativos. E se você, assim como nós, não tem nenhuma estúpida objeção de fundo religioso na questão da sexualidade humana, provavelmente acha uma escrotice desnecessária ficar enchendo a paciência da deputada sobre como expressa seu gênero. Bem-feito de novo: atravessou a rua para escorregar na casca de banana. Não era da conta dele o que estava na certidão de nascimento dela.

Mas a vida em sociedade nunca é tão fácil quanto o que a gente acha bem-feito.

Para coibir esse tipo de escrotice, as leis foram sendo reinterpretadas até chegarmos no ponto atual: uma pessoa está sendo processada por injúria racial por dizer que uma mulher transexual nasceu homem. Sally teve que me explicar por alguns minutos de áudio como era possível que um crime com “racial” no nome ser imputado a alguém que se referiu a uma mulher transexual no pronome masculino.

A discussão técnica sobre a jurisprudência está acima da minha alçada como escritor não-remunerado na internet. Que seja, eu adoraria que esse fosse o problema real aqui. O brasileiro (e para ser honesto, o ser humano em geral) em média ainda não tem cérebro o suficiente para lidar com a questão da transexualidade. Existe sim um ponto onde o ético é permitir que pessoas que se sintam presas no corpo errado possam se expressar livremente. Se todo seu argumento é “não é natural” ou “Deus não nos fez assim”, você não dedicou neurônios suficientes para a ideia.

Infelizmente, algumas pessoas nunca vão ter tal disponibilidade neural… torçamos para que a sociedade continue evoluindo para deixar objeções às liberdade pessoais bizarras como essas no passado. Educação vai muito bem, como disse a Sally.

Mas… e sempre tem um mas… não podemos ignorar um problema que aparece no sentido oposto do conservadorismo ignorante de rede social: o progressismo ignorante de rede social. Não vamos ganhar nada se sairmos correndo do fogo da direita para cair no fogo da esquerda. O objetivo deveria ser não ficar queimado.

Um ser humano tem o direito de se perceber como mulher mesmo que tenha nascido como homem. Um ser humano tem o direito de se apresentar como mulher mesmo que tenha nascido como homem. E é claro, vice-versa. E mesmo que eu ache uma falha lógica óbvia, até mesmo quem não quer se identificar com nenhum gênero tem que ter esse direito.

O que ninguém deveria ter direito é de ser feliz.

Essa frase é complicada, eu sei. Direitos tem que ser objetivos. Constituições ao redor do mundo e até mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos falham eventualmente nesse ponto. A questão é: é impossível criar regras que defendam direitos subjetivos. E ser feliz é muito subjetivo. Tem gente que está feliz quando está matando desafetos. Tem gente que está feliz estuprando crianças. Tem gente que está feliz escravizando outras pessoas.

Evidente que não podemos criar o direito de ser feliz, porque o direito de ser feliz obrigatoriamente criaria conflito com o direito de outras pessoas serem felizes. Sim, uma pessoa que nasceu como homem e quer ser vista como mulher deve ter esse direito, mas jamais o direito de ser feliz assim. Essa não é uma questão objetiva. Se um homem não se sentir atraído por uma mulher transexual e ela depender disso para ser feliz, como garantir o direito dela sem impedir o dele?

Infelizmente, muito do movimento por justiça social das últimas décadas foi cooptado por gente que ou não consegue entender isso de direitos objetivos ou quer mesmo forçar todo mundo a gerar felicidade para eles, custe o que custar. É um pensamento infantil, pouco desenvolvido. Você não tem direito de ser feliz, porque você exige uma combinação específica de fatores para se considerar feliz, combinação que invariavelmente interfere no direito dos outros de serem felizes.

Se você quiser se identificar como um cachorro, eu entendo que a sociedade pode dar um jeito de te acomodar, mas que existem limites de quanto ela pode seguir com essa farsa. Quanto mais você exige fora do habitual para o ser humano médio, mais complicado fica te tolerar. As leis não foram inventadas aleatoriamente, elas são muito baseadas em regras de convivência experimentadas por milênios.

Quando você quer algo que não vem nesse pacote básico de convivência, as leis são mais difíceis de se escrever, e até mesmo de serem cumpridas. Pode ser chato de dizer isso, mas se uma pessoa vir um homem de peruca, vai tratar como um homem de peruca. Eu tento ser educado e respeitoso, como tento com todo mundo, mas se passar dos meus limites, não dá para ignorar a realidade para sempre. Mulher transexual que precisa de lei para ser chamada de mulher tem um problema muito mais sério do que a rebeldia de alguns conservadores.

Nós podemos jogar juntos, é claro. Mas quando a lei começa a mudar para acomodar desejos de felicidade de alguns grupos, elas vão nos levar para lugares bizarros ou serem solenemente ignoradas. Direito de tocar sua vida respeitando as mesmas leis que todos nós e podendo fazer escolhas de cunho personalíssimo como o gênero com o qual vai se apresentar ao mundo? Com certeza. Detesto essa mentalidade de fiscal de gênero que tanta gente desenvolveu nos últimos tempos.

Só que isso não pode virar direito de felicidade. Porque aí perdemos o controle de uma das regras básicas de convívio, e gente descompensada da cabeça (é uma proporção considerável da humanidade) começa a empurrar a linha do que vai ser protegido por lei até que a maioria se rebele. E aí, os direitos lógicos das pessoas que só queriam liberdade de viver como a maioria de nós começam a ser tolhidos por causa dos malucos que querem ser animais, plantas, crianças e tudo mais que a imaginação humana puder conjurar.

Leis, como a Sally bem disse, tem que estar no final da linha de ações para controlar uma sociedade. Tem algo fundamentalmente errado em processar uma pessoa que te chamou pelo pronome que você não gosta. Tem um ranço de “direito à felicidade”, algo que eu adoraria que fosse possível, mas infelizmente não funciona se tem mais que uma pessoa no mundo.

Com o progressismo e o conservadorismo tomados por pessoas limitadas que só conseguem enxergar vantagens pessoais imediatas e atenção no horizonte, vamos acabar com leis sentimentais e ignorantes, ou proibindo liberdades pessoais, ou fazendo com que algumas pessoas tenham direito de passar por cima dos direitos alheios. Ambos os casos são péssimos.

Temos que fazer melhor. Temos que pensar de novo.

Para dizer que eu sou transfóbico, para dizer que eu sou conservafóbico, ou mesmo para dizer que lei é uma coisa que você gosta ou não: somir@desfavor.com

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Comments (8)

  • Pode chamar de mulher ate o fim dos tempos, mas continua visivelmente um homem. Virou moda fingir que e mulher?

    • Concordo plenamente. E já dizia o Dr. Enéas:” O fenótipo pode ser modificado, mas o genótipo segue sendo sempre o mesmo; homem é homem e mulher é mulher, querendo ou não!”.

  • Branca de Neve Pornô

    Injúria racial por ter usado ele no lugar de ela?
    Por mais que considere Nikolas Ferreira um escroto e que tanto ele quanto Duda estejam usando da questão pra militar em favor de suas próprias bandeiras políticas, essa parada de passar por cima da lei para dar eco a esse justiçamento é algo que me enoja.
    Mas o que esperar de um supremo tribunal federal onde as indicações são na base do pistolão?

    • O STF equiparou o crime de injúria racial ao racismo e, por mais esquizofrênico que possa soar, “homofobia” também será equiparado ao crime de racismo: “racismo social”.

  • As punições arroladas no âmbito do direito civil também podem ser consideradas desproporcionais. De resto, dificilmente seriam executadas.

  • Eu sou a favor de proibir político de ter rede social.
    Antigamente eles roubavam como hoje, mas pelo menos construíam ponte, parque, posto de saúde etc. Hoje só roubam mesmo, e ainda enchem o saco.

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