Unidos do Desastre.

Os portais de notícias e os jornais passaram a semana falando sobre a tragédia das chuvas no litoral norte de São Paulo e o Carnaval. Quase sempre as notícias sobre tapa-sexo de fulana ou de pegação no camarote entre subcelebridades gerando mais interesse. Tem algo muito indicativo sobre o brasileiro aí… que também fala sobre o povo que sofre com essas situações. Desfavor da Semana.

SALLY

Tenham em mente uma informação que serve não apenas para este caso, como para a vida: ninguém se coloca em uma situação desconfortável, arriscada ou vulnerável se não tiver um puta ganho secundário (consciente ou inconscientemente) que compense o sofrimento. E não é diferente neste caso. Com todos os envolvidos.

Como os leitores antigos sabem, trabalhei por quase dez anos no Poder Público, muito desse tempo na área ligada a habitação, então, eu conheço bem tudo que se passa – e é sempre o mesmo, independente do partido que esteja no poder. Para coroar, morei 40 anos nos Rio de Janeiro, uma das cidades campeãs de déficit habitacional do Brasil.

O que se passa é o seguinte: as pessoas tem condições de pagar por uma moradia que não é nem no cu do mundo, é na hemorroida do mundo, um pouco mais para fora do cu. Não querem morar lá, querem morar em grandes centros, pertinho de tudo. Em grandes centros está tudo lotado, então elas vão se enfiando nos lugares que sobraram, que não foram habitados por algum bom motivo, como por exemplo, por não serem seguros.

Ao se enfiarem nesses lugares, essas pessoas não pagam aluguem e dificilmente pagam alguma outra conta para o Estado: luz é ligação clandestina, gás e tv a cabo quem vende é o poder paralelo (milícia, tráfico, etc.). Moram de graça, no ponto nobre, no coração da cidade. Tanto é que no Rio de Janeiro até bairros nobres que cobram um dos IPTUS mais caros do país tem sua favela.

Todas essas pessoas estão cientes de que é um lugar de risco. O Poder Público tenta tirá-las de lá sucessivamente (durante um tempo, esse foi meu trabalho). Mas elas não querem sair. Elas se recusam a sair. E aparece advogado esquerdomacho descontruído com tênis que custa mais do que o barraco do cliente trabalhando de graça “pela causa” para ir à imprensa vilanizar o Poder Público, comover e ganhar estrelinha de bom samaritano. Vão ao Judiciário e impedem a remoção dessas famílias. Quando a desgraça acontece, a culpa é toda do Poder Público.

Não estou dizendo que o Poder Público não tenha culpa, tem uma penca de textos meus aqui denunciando as baixarias que eu vi nessa época. Tem responsabilidade sim: 1) se tem que tirar, tem que tirar, passa o trator (não fazem); 2) se não vai tirar, então vai lá e faz toda a obra de infraestrutura para garantir a segurança dessas pessoas (não fazem) e 3) Em vez de esperar 30 mil famílias ocuparem o lugar por 10 anos para tirar, tem que adotar medidas preventivas para não permitir que entrem ou construam no local.

Além disso, o mais grave: o Poder Público SABE que vai acontecer tragédia. Ele sabe e deixa, pois tragédia natural é o que paga quase tudo, desde campanha de candidato até caixa 2. Explico como funciona: para fazer qualquer intervenção pública (normalmente obras) é preciso um processo de licitação, que é controlado e fiscalizado: tem que justificar os gastos, não pode comprar nada por valor exorbitante, etc. Mas, quando acontece uma tragédia, em função da urgência, não há necessidade de licitação e o Poder Público pode contratar quem quer pelo preço que quer.

Então, gastar dinheiro após a tragédia permite pagar uma fortuna por qualquer obra, serviço ou material, e essa quantia a mais (superfaturamento) é dividia entre a empresa que fornece o serviço e o órgão público que contrata, indo parar nos bolsos dos seus altos escalões. Oficialmente, é sempre o mesmo: “choveu mais do que o esperado”. Há cem anos chove mais do que o esperado.

Porém, o fato do Poder Público ser um grandissíssimo filho duma puta, não faz do povo uma vítima. Primeiro que o povo sabe que está correndo risco e não se importa, segundo que quase todos tem opção mas querem o status e a facilidade de morar naquele local. Terceiro, e mais triste, é a quantidade de baixarias que fazem entre si: por mais fodido que seja um brasileiro, ele vai pisar se encontrar outro brasileiro mais fodido do que ele. O Poder Público, meus amigos, é só um reflexo do que é esse povo.

É revoltante ver a mídia tratando o povo como se fosse uma criança que a mãe deixou fora do cercadinho e meteu o dedo na tomada. O povo sabe o que faz. São escolhas. O povo tem um ganho secundário enorme em ser vítima, seja por toda a atenção que recebe, seja por todos os benefícios materiais que recebe. Cansei de ver gente torcendo para o barraco desabar (ou até forjando um desabamento) pois queria ganhar móveis novos, eletrodomésticos novos, casa nova.

O que acontece é que são burros, e como todo burro, frequentemente calculam mal o golpe, daí a casa desaba antes do previsto e leva os 7 filhos. Viver às custas dos outros tem seu risco. Sei que deve ser uma situação muito sofrida, mas, ora ora, se não são as consequências dos seus atos!

O que vou falar é indizível no mundo lá fora, mas… não tem vítimas. É um jogo perverso de malando querendo se dar bem por todos os lados. Obviamente malandro que não teve deficiência de proteína na primeira infância costuma se dar melhor nesse jogo, então, o mais comum é ver o pessoal da encosta se foder. Mas vítimas não são, eu te asseguro. Já vi demais para sentir pena e achar que foi uma fatalidade.

Cansei de ver carinha chorosa dizendo “eu perdi tudo” no Jornal Nacional que alugava o barraco clandestinamente para outro pobre mais pobre que ela. Quem perdeu era o sujeito que morava lá, que estava morto e soterrado, mas a carinha triste ganhou casa nova mobiliada. Isso é um verdadeiro negócio: pessoas que vivem de enxotar as outras de suas casas, ocupar as casas e depois alugar essas casas.

Não tem vítimas. O que tem são escolhas. Pessoas que se colocam em situação de risco cientes do que pode acontecer. E não vale só para pobre: teve folião arrastado dentro do banheiro químico. Francamente, quando eu morava no Brasil, se havia previsão de chuva eu não saía de casa a menos que fosse extremamente necessário. Ir ao bloco no carnaval é extremamente necessário?

Todo mundo sabe que choveu, fodeu. Todo mundo sabe. Mas o brazuca é arrogantão, acha que nunca nada vai acontecer com ele, não quer se privar de nada, acha que sempre vai ter um jeito. Pois adivinha só: às vezes não tem. Aí as pessoas falecem, em função das suas próprias escolhas. Mas não pode dizer isso em voz alta, pois é “culpar a vítima”. O povo não é vítima, o povo é cúmplice.

Como bem disse Somir na nossa edificante conversa sobre o assunto, o brasileiro sempre vota em populista. A dúvida é se vai eleger populista que acha dar o cu pecado ou se vai eleger populista que acha que não dar o cu é preconceito, mas populistas, todos são. Sempre pagando auxílio, sempre infantilizando, sempre endossando essa retrodependência perversa.

O Poder Público é podre, corrupto e filho da puta, mas o povo não é santo. A diferença é que a podridão do Poder Público é apontada diária e exaustivamente, já a do povo, é “indizível”. Pois bem, estamos aqui para falar. O povo é tão responsável por isso quanto o Poder Público. Processa Eu!

Para se chocar por sermos frutos das nossas escolhas, para dizer que acha muito rude essa conversa de ter que assumir responsabilidade pelos seus atos ou ainda para dizer que não vê muita diferença de deixar o povo sair com chuva trágica para deixar o povo sair sem vacina: sally@desfavor.com

SOMIR

Antes de desenvolver o tema pelo ângulo da mídia, acho importante reforçar o que a Sally disse: se tiver um inferno para quem enxerga o problema óbvio da cumplicidade do povão nesses desastres naturais, eu também irei para lá. É uma questão fundamental, a ideia de que enquanto não der tudo errado, está tudo bem.

Quem construiu as casas e votou nos políticos que permitiram as casas ficarem ali? Aqui é importante dizer que não achamos que essas pessoas merecem morrer ou perder o pouco que tem, não temos nenhum prazer em ver esse tipo de pessoa pagar pelos erros cometidos. Se eu tivesse que decidir se o barranco ia cair ou não, eu ia mandar ele ficar onde está e essa gente escapar das consequências.

Mas estamos falando de natureza, de leis da física, de ação e reação. Não é escolha minha, da Sally ou de ninguém se a chuva vai soterrar uma casa ou não. É uma probabilidade que vai aumentando quanto mais você fica numa área de risco e quanto mais tempo você fica por lá sem nenhuma ação enérgica do poder público. Tanto esperaram que ela chegou a 100%.

Mas essa coisa de probabilidades não parece funcionar bem na mente de um povo como o brasileiro, ele tem certeza que enquanto não acontecer o problema, ela era de 0%. Muita gente que morreu no litoral norte paulista tinha certeza de que não ia dar problema. E com certeza reagiria de forma muito furiosa se o Estado tivesse tentado tirar elas dali. Aliás, aposto que se um candidato dissesse que ia esvaziar as encostas de casas, não seria eleito.

E aqui que eu venho para o ângulo da mídia e da opinião pública: não são só os interesses fúteis do brasileiro médio que colocaram notícias de baixaria e subcelebridades no topo das notícias mais lidas, é a noção de normalidade que se instaurou em mais e mais casos de gente morrendo em deslizamentos de terra causados pela chuva. A tragédia das chuvas “imprevisíveis” é tão comum que rivaliza com o Carnaval como evento anual.

Se criticam o governo, com razão, por colocar na conta da natureza a mesma coisa acontecendo na mesma época do ano há décadas e décadas, está na hora de olhar também para o povo que se acomoda nessa situação. Se não tiver uma montanha de lama caindo na sua casa agora, o problema parece nem existir. É uma péssima aposta esperar que o poder público faça qualquer coisa impopular se ele depende de votos de pessoas que estão mais interessadas se o tapa-sexo da fulana caiu ou não do que com gente morrendo em tragédias repetitivas.

As “notícias baixaria” do Carnaval não forçam o povo a lidar com um problema estrutural assim. Querendo ou não, são escolhas. Escolha de dar atenção para uma coisa ou outra, escolha de pensar no futuro ou saciar um desejo momentâneo. Sim, a pessoa tem o direito de preferir ver fotos de uma pessoa famosa beijando outra pessoa famosa, mas que fique claro que é uma escolha.

Assim como é uma escolha morar embaixo da encosta perigosa. Não é uma escolha de morrer ali, mas é uma escolha de morar num lugar pouco disputado por um motivo. É conveniente. Muitas vezes é uma oportunidade financeira, para se apertar menos ou ter uma fonte de renda extra com aluguel. Por mais que concordemos que o brasileiro recebe pouca educação e quase nenhum estímulo para ser mais responsável, não são crianças ali. São adultos que podem enxergar todo dia o que pode dar errado.

E escolhem arriscar. Sim, o governo deveria permitir mais opções para essas pessoas, mas em última instância, eu duvido muito que as pessoas nessas encostas não tinham a menor noção do perigo que corriam. O que não dá certo – e sabemos que não dá certo porque é feito desde sempre – é ficar eternamente passando a mão na cabeça dessa gente. Vão fazer casas para tirar gente dali, e eu tenho quase certeza que as encostas vão voltar a ser ocupadas, por outras pessoas ou pelas mesmas que perderam as casas dessa vez.

Não coibir a instalação dessas comunidades em lugares de altíssimo risco é equivalente a incentivar: tem uma porcentagem da humanidade que é feita de gente escrota e irresponsável que vai forçar a barra para fazer tudo errado pela ilusão de tirar vantagem, se essas pessoas conseguem forçar a mão do poder público a tolerar a ocupação ilegal, criam a ilusão de segurança na cabeça do resto do povão. Se não tem ninguém proibindo, é porque não é tão sério assim, né? Aí, o que era uma ocupação de gente muito maluca ou muito burra vai virando um bairro de gente “normal”. E quando cai tudo numa enxurrada, ficam em choque. Então sim, o governo fez muita coisa errada, mas sem o povo nada existe nessa sociedade. É impossível se retirar da equação da humanidade. Sempre é resultado das escolhas das pessoas, seja em lugar para morar, seja em que político eleger.

Vai continuar sendo certeza de derrota eleitoral fazer linha dura contra essas ocupações, vai continuar sendo muito lucrativo explorar financeiramente obras e serviços nesses locais inseguros. E a mídia vai continuar tentando focar bastante na tragédia e nos coitados que perderam tudo para tentar gerar alguns cliques e visualizações para as propagandas. Se não pintar esse povo como coitadinho e explorar bastante as lágrimas deles na câmera, fica complicado justificar o custo de levar jornalista e equipamento para o meio da lama. Fotografar uma mulher genérica com a bunda de fora na Sapucaí é bem mais lucrativo.

E vamos alimentando esse monstro: como o brasileiro médio não quer enxergar os próprios erros, escolhe o escapismo de falar sobre tapa-sexos. Como o povo vende caro o interesse em notícias sobre tragédias, elas precisam ser vendidas como uma novela mexicana. Como essas notícias e comentários ficam só no ângulo do coitadismo para tocar corações (afinal, o cérebro não está disponível), o povo que escolhe se enfiar nesses lugares perigosos veste a camisa de vítima incapaz de fazer qualquer coisa diferente. Como o político precisa do voto dessa gente, não gera políticas públicas que forcem o povo a parar de se enfiar nesses lugares mortais.

Até a tragédia do ano que vem, quando as chuvas continuarem não sendo esperadas…

Para dizer que somos pessoas horríveis, para dizer que o brasileiro médio sempre desfila com tapa-olhos, ou mesmo para dizer que a culpa é de Deus: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Planejamento é algo que brasileiro médio e o governo desconhece.
    Na minha cidade quando construíram condomínio para remover pessoas de uma área que sempre alagava alguns dos beneficiados simplesmente venderam a casa em área de risco sabendo que elas seriam demolidas. Essas pessoas foram para o apartamento novo, as casas na área de risco foram demolidas e tem “comprador” esperando até hoje ter ser dinheiro de volta.

    • No Rio de Janeiro tem os “ocupantes profissionais”, grupos de pessoas que tem suas casas mas recebem dinheiro para ocupar outras casas e depois reivindicar terreno, móveis ou qualquer outra coisa quando acontece desastre. Ninguém se salva no Brasil.

  • “Ao se enfiarem nesses lugares, essas pessoas não pagam aluguem e dificilmente pagam alguma outra conta para o Estado: luz é ligação clandestina, gás e tv a cabo quem vende é o poder paralelo (milícia, tráfico, etc.)”.

    Lembro do meu chefe contando que, quando foi morar no Rio, foi aconselhando pela diarista sobre qual seria a melhor marca de ar-condicionado a comprar para seu apartamento pelado, porém alugado a muito custo, afinal ela tinha dois aparelhos na casa dela lá no Vidigal.

  • Uma questão interessante é que muitas vezes os indicadores são distorcidos pelos beneficiários das políticas. Por exemplo, uma UBS recebe gratificação por desempenho pelo número de atendimentos. Ou seja, quanto mais pessoas doentes, melhor!

    • É como a bonificação de PM por cada arma ilegal apreendida: quando foi instituída, os PMs subiam o morro para comprar a preço de banana as armas que o tráfico ia descartar.

      Impressionante como dão um jeito de distorcer tudo!

      • O que esperar de um país cujo governo, pra dizer que combate a pobreza, simplesmente mexe nos critérios sócio-econômicos a partir dos quais alguém é considerado pobre?

          • Como eu já disse aqui outras vezes: “se não tem esculhambação, não é Brasil”. E eu concordo com você, Sally. Não se pode mesmo aceitar o inaceitável.

  • O Brasileiro Mé(r)dio não flerta com o desastre. O Brasileiro Mé(r)dio namora firme com o desastre. E ainda casa! E de papel passado…

  • Municipalismo seria uma boa.
    Não adianta só construir conjuntos habitacionais no meio do nada, tem que descentralizar o comécio, os hospitais, as indústrias etc. e levar pro interior pra ninguém precisar viajar por horas pra chegar na capital.

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