Proteção de mentira.

Na próxima terça-feira, dia 2 de maio, começa a votação do PL das Fake News. Confuso, ineficiente, desatualizado e pior de tudo, com potencial de virar ferramenta de censura na mão dos políticos. Desfavor da Semana.

SALLY

Vamos falar do elefante na sala: o (no masculino, por favor) Projeto de Lei 2630, apelidado de “PL das Fake News”.

Como o assunto é extenso vamos a um rapidíssimo resumo: no Brasil as leis são feitas em um “bate bola” da Câmara dos Deputados com o Senado. Um deles cria o texto da lei e o outro revisa. Se quem revisa propõe alguma alteração, o texto tem que retornar para a instância originária, para que avalie a alteração, diga se concorda e se quer acrescentar algo.

Você pode imaginar o jogo de empurra que isso vira, certo? Deputados e Senadores, não raro, ficam muitos anos fazendo adendos, ressalvas e mudanças, empurrando um projeto de lei de um lado para o outro, até chegar a um consenso (ou até alguém pagar para que eles efetivamente aprovem algo). O próprio Projeto de Lei 2630 não é um recém-nascido, ele é de 2020, e, se não fosse pelo regime de urgência, ainda demoraria muito para ser aprovado.

Mas, foi aprovado um regime de urgência muito do suspeito, o que obriga os parlamentares a votar este projeto de forma prioritária, mesmo sem conversar com os envolvidos (Google, Youtube e outras grandes empresas já reclamaram que não puderam falar e que serão muito prejudicadas). Será votado na próxima terça-feira, dia 2 de maio. Mas calma, antes de entrar no mérito, queremos te dizer que nada drástico vai acontecer, não caia em terrorismo.

Não que a lei seja boa. É um desastre, uma mordaça, uma colcha de retalhos cheia de brechas para político censurar o que quiser. Nada drástico vai acontecer por motivos de: Brasil. Não vão conseguir botar em prática o que querem, pois, senhoras e senhores, até para censurar tem que ter competência nessa vida.

Vai ser simplesmente mais uma lei que, como regra, “não vai pegar”, apenas será usada para censurar pontualmente quem incomode ao governo, o que é péssimo, mas não a catástrofe que estão prevendo. Em larga escala, aplicada a toda a sociedade, essa lei não é exequível. É humanamente impossível colocá-la em prática.

“Mas Sally, como é que você diz com essa calma que o governo vai poder censurar quem ele quiser?”. Eu digo com essa calma pois isso já é uma realidade no Brasil. O governo faz, desfaz, manda matar, sai impune, se alinha com o STF para promover ou silenciar, condenar ou inocentar, fazer ou desfazer o que quiser. Então, na prática, nada muda muito, apenas fica mais “oficial”. E eu prefiro oficial do que debaixo dos panos, eu prefiro ver bem o que estão fazendo.

Dito isto, a lei é um lixo. Nada de novo, quase todas as leis brasileiras são um lixo, um corta-cola tirando coisas do contexto ou um amontoado de contradições impraticáveis. Pudera, olha as pessoas que vocês mandam para o Congresso para criar as leis! Além de burros não tem a menor noção sobre como funciona o mundo online.

O primeiro ponto que a gente pode criticar é a inviabilidade: eu lhes asseguro que esta lei é inaplicável. Não há possibilidade real de controlar tudo que é dito e feito online o tempo todo. Não há Judiciário suficiente para isso, mesmo que se dobre a quantidade de juízes. Simplesmente não dá.

Se todo mundo que potencialmente faça algo do que está previsto nessa lei for processado, todo brasileiro acabará respondendo a processo e as empresas terão que contratar zilhões de funcionários para dar explicações ao Judiciário e moderar conteúdo.

Vai acontecer o que acontece com qualquer lei inexequível: quem tem dinheiro, quem tem bons advogados, quem tem contatos, consegue uma decisão favorável contra uma pessoa que pisou no seu pé. Quem não tem dinheiro, bons advogados ou contatos, não consegue uma decisão favorável nem quando foi espancado. É mais do mesmo. É Brasil.

Tudo que está previsto nessa lei em matéria de combater crime e conduta danosa para a sociedade já existe em lei, portanto, quando a lei de proíbe de chutar cachorro, não faz sentido criar uma lei de proibindo de chutar um poodle, a questão já está coberta. “Mas Sally, se já existe, por qual motivo continuam disseminando notícias falsas?”. Pelo motivo que sempre falamos aqui: criar lei não resolve absolutamente nada.

A novidade que essa lei traz não é focada em combater crimes online e sim em ampliar poderes para que órgãos públicos possam pedir a remoção de conteúdos com muita facilidade, o que facilmente pode virar opressão e injustiça.

Então, esse papo de que a lei é necessária pois acontece isso e aquilo de perigoso na internet, não se sustenta: o que quer que aconteça de perigoso, vai continuar acontecendo. O que receberá atenção são outras coisas, coisas que incomodem pessoas importantes e, acredite, o bullying que seu filho sofre não será uma delas.

Eu adoraria que fosse possível controlar o ambiente online e zelar pela sanidade, dignidade e cumprimento da lei, mas isso não é possível, é inviável, é inexecutável. Essa lei não foi criada com essa intenção, apesar de que, oficialmente, é o que se prega. Ela foi criada para silenciar quem incomodar.

Um ótimo indício para verificar se qualquer lei é justa é: ela se aplica a todos, por igual? Seria o correto, não é mesmo? Não é o caso. Parlamentares estão totalmente blindados e a lei não os alcança. Você, idiotão pagando impostos, pode ser silenciado, se encontrarem uma brecha para julgar o seu conteúdo abusivo ou mentiroso. Eles não. Parece boa coisa?

Outro ponto importante para verificar se uma lei está bem escrita é sua objetividade x subjetividade. Em se tratando se restrições, a lei tem que ser o mais objetiva possível, pois, se for subjetiva, deixa margem para que se puna “os inimigos” e se salve “os amigos”. É uma lei falha, cheia de brechas, que permite um monte de distorções, sempre voltadas para silenciar o que não for conveniente.

Um exemplo: aqui no Desfavor nós protegemos a identidade/privacidade do nosso leitor como regra absoluta (o que está inclusive previsto na nossa humilde constituição). Podemos tomar até processo judicial, que não vamos revelar nunca absolutamente nada sobre vocês, uma regra sagrada que respeitamos há 15 anos, para criar um ambiente seguro.

Com uma frase se cria uma boa norma para isso: “O direito à privacidade e anonimato é absoluto, inviolável e inegociável”. Ponto final. Pois bem, o que esta lei faz é trazer questões para o subjetivo, é como se nós protegêssemos nosso leitor com uma norma que diga: “as pessoas merecedoras de privacidade terão seu anonimato respeitado”. Percebem? Quando você acrescenta algo subjetivo, abre uma brecha para punir uns e salvar outros.

Mais um ponto problemático que deu o que falar: quem controla o que é mentira, o que é abuso, o que é nocivo? A ideia de um órgão governamental fazendo isso é tão próximo dos censores da ditadura militar que dá náuseas. Vocês confiam nesse governo? Vocês confiam em qualquer governo? Depois que esse governo sair, vem outro. Vocês querem mesmo assinar esse cheque em branco para que todos os ignóbeis que virão tenham esse poder?

Após muita briga, falou-se em suprimir esse órgão controlador da lei. Mas, não se enganem, isso não é bom. Se você não deixar estipulado muito claramente na lei quem vai fiscalizar e com que critérios, essa decisão será tomada pelo Presidente da República, que o fará por decreto.

Essa desgraça de lei foi claramente criada por quem não entende nada, mas absolutamente nada de redes sociais e do mundo online. As exigências preventivas que fazem tornariam inviáveis a presença de qualquer rede social no Brasil. Obviamente, não vai acontecer, pois se o brasileiro quase guilhotinou o Lula por causa de blusinha da Shopee, imagina o que faria se ficassem sem Facebook, Instagram, WhatsApp e Youtube.

O mais engraçado é que, pela forma idiotesca que a lei foi elaborada, ela não vai impedir a imprensa marrom de continuar criando e divulgando notícias falsas, em alguns casos, vai inclusive obrigar a que quem as criou seja remunerado por isso. Mas tudo bem, o objetivo nunca foi uma internet mais limpa e justa. Acredita nesses bostas quem quer.

Por sorte, são muito burros e criaram algo impossível de colocar em prática. Eventualmente vão usar, para calar um ou outro que incomode, mas não tem qualquer chance dessa excrescência jurídica passar a reger a vida de vocês.

Obviamente o povo não está empenhado em discutir o texto da lei e sim em abraçar narrativas. Se você é contra essa lei quer dizer que você é a favor de fake news X se você é a favor dessa será o responsável por censurar versículos da Bíblia (até que faria sentido, pois a Bíblia é um compilado de fake news, porém a informação é falsa).

Queridos, se a situação e a oposição estão de mãos dadas e de acordo, a favor dessa lei, boa coisa ela não é. Pensem bem se querem que todos os futuros Presidentes do Brasil tenham esse cheque em branco nas mãos e, se não quiserem, se manifestem, façam pressão, façam barulho.

De qualquer forma, encorajamos o leitor a ler o projeto e tirar suas conclusões por si. Mas saibam que, como explicamos, é um texto que pode sofrer constantes alterações até a aprovação, portanto, pode ser que amanhã o nosso texto de hoje esteja desatualizado, em função de alguma mudança. Aqui está a última redação do Projeto de Lei 2360.

Para dizer que ninguém vai ter paciência de ler essa merda, para dizer que somos a favor de fake news ou ainda para dizer que se o Felipe Neto é fervoroso defensor você automaticamente é contra: sally@desfavor.com

SOMIR

Quarta-feira eu entrei no ângulo mais filosófico da coisa, a ideia de querer colocar em lei o que é verdade ou não me parece bizarra. A verdade nunca fica parada num só lugar, ela se move pela sociedade de acordo com interesses, culturas, tecnologias… faz tempo que eu escrevo sobre a minha filosofia da “melhor informação possível”, a ideia de que certezas nunca são absolutas, mas que isso não torna o mundo totalmente aleatório. Informações mais bem estudadas e testadas vão fazer você tomar decisões melhores.

Quando lidamos com um governo e uma parcela da população brasileira berrando informações horríveis sobre a pandemia nos últimos anos, nós ficamos compartilhando informações melhores (mais bem estudadas e que obedeciam ao método científico) como uma forma de reação. Isso explica muito bem a nossa visão aqui sobre Fake News e afins: faz o seu, pega algum tema que interessa e compartilhe a melhor informação possível.

É bobagem querer controlar a desinformação de cima para baixo. Talvez tivesse algum mérito em tempos antigos, mas na era da internet é exponencialmente mais difícil. Pessoas consomem conteúdos que as interessam, existe uma tendência natural de concordar com informações, versões e opiniões que se conectem com suas crenças prévias.

Quando você fala sobre algo que tem paixão com informação de qualidade, não vai convencer as pessoas automaticamente, mas vai apresentar o seu interesse por tabela: as pessoas gostam de coisas que outras pessoas parecem estar gostando também. Pessoas empolgadas projetam empolgação. Quando eu digo que ninguém é imune à propaganda, tem esse aspecto neurológico também, a gente tem neurônios que só trabalham para espelhar o sentimento alheio. Ver alguém empolgado nos empolga, ver alguém confiante nos deixa seguros… é propaganda de humano para humano.

O estado emocional de quem compartilha uma informação é contagioso. O problema fundamental das Fake News não é tratado nem por esse projeto de lei, nem por qualquer outra canetada nesse mundo: fantasias e conspirações são muito mais saborosas que ciência estabelecida para o cidadão médio. São uma versão mais colorida, mais bem temperada, mais atraente em geral do que a informação pura. E considerando como existe um mercado enorme de publicidade digital, produzir conteúdo apelativo é economicamente viável.

Muito se engana quem acha que quem produz Fake News são só bolsonaristas querendo colocar seu ídolo no poder, são muitas vezes pessoas pobres que acharam um jeito de ganhar alguns dólares por mês. Quem ganha dinheiro por clique e visualização de anúncios tem incentivo profissional para distorcer toda informação para a forma mais apelativa possível. O PL das Fake News não só não lida com a mecânica financeira da coisa, como abre uma nova porta para criadores de conteúdo (99% não são gênios do mal, são pessoas pobres vendendo muamba em forma de informação digital) ganharem dinheiro com o que produzem.

Se você tiver vocação para o sofrimento como eu para passar a tarde de sábado lendo projeto de lei brasileiro, vai perceber como o texto é vago, confuso, cheio de “objetivos nobres” mal explicados que vão ser transformados em prática pela cabecinha aleatória do Judiciário tupiniquim. É um monte de páginas dizendo que temos que evitar que coisas ruins aconteçam na internet, mas pelo ângulo do governo poder forçar provedores de conteúdo a derrubar o que não gostam. E com essa lei, fica mais fácil resolver logo, porque não vai ter mais grandes discussões jurídicas para enrolar o processo.

E isso não muda nada para quem está recebendo informações cada vez mais bizarras de uma internet infestada de influencers desesperados por dinheiro. Não só a Sally está certa dizendo que é impossível aplicar essa lei para alcançar os objetivos escritos nela, como também vamos ver mais notícias falsas por resultado dela. Tem essa parte de criar provisão legal de remuneração para notícias utilizadas pelos provedores, como também incentiva muita gente a sair da rede social e montar sites de mentiras em série fora dela. Oras, o link ainda pode ser compartilhado. O feed de notícias do celular já pega um monte de porcarias agora, imagine só quando todo mentiroso contumaz tiver seu próprio domínio?

Eu conto a história de como a 4chan foi tomada por nazistas porque fecharam um grande fórum de nazistas nos EUA, e eu talvez vá contar a história de como a podridão do Facebook, TikTok, WhatsApp, Telegram vão se espalhar pelo o que o cidadão médio acredita ser notícia em uma profusão de novos “portais de notícias” tentando arrancar dinheiro das plataformas.

Quem ganha com isso são os nossos políticos/influenciadores atuais. Até brinquei com a Sally que isso me cheirava reserva de mercado deles: com a nojenta ideia de imunidade para políticos que está no projeto de lei, eles poderão produzir os conteúdos mais absurdos e mandar derrubar os concorrentes sem o mesmo poder. Quem quer se eleger precisa de uma base de seguidores grande, e essa base pode ser mantida por concorrência desleal caso essa parte da lei seja mesmo criada.

Vai continuar chegando informação absurda para seu tio maluco, vai continuar virando motivo de brigas e comportamentos irresponsáveis como não vacinar os filhos. E de presente, vai ficar bem mais fácil para os seus líderes decidirem o que você pode dizer ou não. O texto da lei é vago sobre o que é proibido justamente porque o que é proibido é incomodar quem manda em você.

Se eu quisesse quebrar essa indústria, eu forçaria as redes sociais a darem carteira assinada para cada influencer que mostra seus anúncios em troca de pagamento por cliques e visualizações. Em um mês, acabam as Fake News.

Para dizer que nem a pau que vai ler (tudo bem, os políticos não leram também), para dizer que sente saudades do tempo que a Globo que mentia, ou mesmo para dizer que o mundo vai acabar e ninguém vai perceber: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Fazer o L e fazer arminha era coisa de GADO

    O Brasil 247, que para quem não sabe é lulista desde criancinha, entrou pra engrossar o coro dos grupos contra tal projeto de lei, que já tinha a resistência da turma ligada ao Bolsonaro. Pela forma como está, arrisco a dizer que o projeto muito provavelmente vai de base no próximo dia 2.
    Olhando bem o projeto, bem… Plataformas como o ZOOM estariam a margem de tal projeto. As big techs (em especial o Google já há bastante tempo fazem campanha CONTRA tal projeto. As grandes empresas de mídia também tem certa resistência ao mesmo pela possibilidade do direcionamento ser contra seus próprios interesses comerciais, sendo que o beneplácito dos pagamentos por direitos autorais por parte das big techs é contrabalançado com o rechaçamento do expediente dos paywalls, sendo que a posição moderada das mesmas é considerando tal equilibrio de prós e contras.
    É ineficaz contra eventuais grupos extremistas como os que motivaram o banimento do Telegram no Brasil (que são os elos da corrente entre o spree killer de Aracruz e o channer gordo que está preso desde 2018 por ameaçar o STF, dentre outras coisas) além de se tornar um projeto anacrônico na medida que tenta ditar como as empresas que atuam na internet devem agir no país.
    A decisão quanto ao projeto está apertada, mas diria que considerando os fatores acima, o caminho mais provável é o rechaçamento de tal projeto, com o Lula lavando as mãos quanto a isso.

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