Números mortais.

O sistema penitenciário do Brasil falhou, nisso Sally e Somir concordam. Mas o quanto avançamos com essa informação… aí a discussão recomeça. Os impopulares fazem seu julgamento.

Tema de hoje: como forma de desafogo do sistema penitenciário brasileiro, a pena de morte seria uma solução válida?

SOMIR

Não. Se o Brasil tivesse um problema penitenciário de algumas milhares de pessoas, eu até ouviria essa ideia. Mas o buraco é extremamente mais embaixo. As únicas coisas que conseguem matar gente o suficiente para mexer com a dinâmica social humana são as doenças. Nem mesmo ditador comunista consegue matar gente o suficiente para desafogar qualquer coisa numa população que já passou das centenas de milhões.

E mesmo esses ditadores não mataram gente diretamente: os números inflados de Stalin e Mao são muito mais relacionados com fome e doenças do que com execuções. É meio insensível escrever isso, mas é verdade: a logística de matar gente é complicada depois de uma certa escala. Matar vinte numa execução policial na favela é uma coisa, matar milhares sistematicamente como política de Estado é um problema tão prático quanto ético.

Mas vamos voltar uma etapa: o Estado não pode tomar decisões sem volta sobre a vida dos cidadãos. Quando abrimos essa porta, é muito difícil fechar. E como o Estado é composto por humanos, a possibilidade de erro, corrupção ou preconceito tem que fazer parte de todos os processos legais. Parte-se do princípio de que o Estado protege o cidadão de problemas oriundos do indivíduo. É só por isso que ele tem monopólio da força: por ter neutralidade no seu uso.

Em qualquer contexto é uma péssima ideia permitir pena de morte, num país de corruptos e incompetentes no poder público, é pedir para sofrer injustiças enormes que não podem ser desfeitas. Mas eu entendo o foco do tema, é uma questão mais matemática: as cadeias estão superlotadas e formaram máfias poderosas com o passar das décadas. Alguma coisa deveria ser feita, não?

Sim, alguma coisa deveria ser feita. Sair matando gente não é uma delas. Primeiro porque é uma traição dos conceitos que regem a humanidade moderna, que viu avanços imensos ao se afastar da lei da selva, e segundo porque a questão logística inviabiliza o processo.

Como dito anteriormente, matar gente em escala industrial é difícil. Precisou de uma das nações mais poderosas do mundo no começo do século passado, tomada por um transe quase que total para causar o Holocausto. O ser humano é um animal grande e difícil de controlar.

Não dá para matar gente como se mata insetos. Os métodos exigem muitos recursos antes, durante e depois da execução. Em países “modernos” que ainda tem pena de morte como os EUA, cada execução custa uma nota, e demora décadas para ser finalmente realizada. Aliás, só para comparar, o país que tem mais presos em relação à população são justamente os EUA, que tem pena de morte em vários estados. Eles não conseguiram reduzir desse jeito.

Mas é claro, você deve estar pensando que o Brasil é outro nível, que não teria todo esse ritual. Seriam execuções feitas de qualquer jeito, sem amplo direito de defesa, coisas meio sumárias à lá nazistas matando judeus. Você não está errado em achar que seria muito mais tosco que em países mais avançados, mas existe uma linha mínima de barbárie que nem o Brasil está acostumado ainda. Executar em escala industrial é um monstro totalmente diferente da violência urbana comum no país.

É difícil controlar os assassinatos no Brasil porque são muitas pessoas matando muitas pessoas, é pulverizado. Você não consegue prever bem quem é o matador e quem vai ser a vítima. No caso de adotarmos pena de morte, ficam mais bem definidos os papéis: o Estado mata. Todo mundo sabe que é ele, todo mundo sabe onde pressionar. Nem mesmo o Talibã consegue controlar o povo dessa forma.

Se as pessoas sabem onde focar sua energia para interferir nas execuções, fica complicado para o Estado, de verdade. Toda a monstruosa logística de condenar, matar e dar um fim aos corpos pode ser pressionada. A mulher do preso não vai aceitar numa boa, a família e os amigos idem. Vai ter muito protesto, inclusive da “turma do Datena” que vai mudar de ideia rapidinho quando alguém querido for executado.

E aí, só uma ditadura muito violenta para segurar esse povo. Não precisa nem mudar a lei, basta cometer alguns atentados para botar dificuldades severas na máquina de execução pública. As execuções ilegais que a polícia faz só funcionam porque estão pulverizadas, porque é muito difícil colocar obstáculos para eles. Quando isso vira política estatal, entra burocracia e pontos de pressão na mecânica da coisa.

Ou você começa a prender todo mundo que protesta, jogando no lixo a estratégia de esvaziar as cadeias, ou começa a punir com pena de morte novos crimes além dos que o povão concorda. Boa sorte segurando um país como o Brasil num estado desses. Eu não consigo enxergar nenhum país como o Brasil aceitando bovinamente execuções em massa. Tudo que é abstrato esse povo tolera, mas se for para o campo da prática, aí estamos lidando com algo totalmente diferente.

E talvez a análise mais depressiva do tema: vai faltar bala. As pessoas presas atualmente são uma parcela pequena dos criminosos em atividade. Temos dezenas de milhões de pessoas nesse país que estão no crime ou não tem proteção nenhuma para evitar entrar nele eventualmente. Na prática, esse tipo de pena de morte não seria um programa de esvaziamento de cadeias, seria um programa (fracassado) de erradicação do pobre. Morre um, tem dois para substituir. E eu realmente não sei o quanto o Brasil pode matar de gente ao ponto de competir com a taxa de natalidade da população mais pobre.

Não é fácil matar legalmente, não é fácil matar em larga escala. E o Brasil já se provou um lugar onde as pessoas não conseguem fazer direito nem as coisas fáceis. Matar desse jeito, só a Alemanha nazista durante uma guerra, e mesmo assim, o quanto eles mataram dessa forma sistemática não causaria o esvaziamento das nossas prisões, temos muito mais do que seis milhões de brasileiros vulneráveis à vida da criminalidade.

Não temos competência para isso. E mesmo se tivéssemos, seria pouco. O ser humano é uma praga que só a natureza consegue colocar alguma pressão, e mesmo assim, nunca foi o suficiente para dar conta. Vai ter que ser do jeito difícil mesmo, e vai demorar séculos para melhorar um pouco que seja. Não existe atalho.

Para dizer que somos dois monstros por analisar de forma tão fria, para dizer que morreria por fazer uma piada, ou mesmo para dizer que o governo brasileiro tem que ter menos poder sempre: somir@desfavor.com

SALLY

Pena de morte, não como solução válida ou eficiente, apenas como desafogo do sistema penitenciário, seria válida no Brasil?

Assim como o Somir, eu abomino a ideia do Estado ter poder de vida ou morte sobre qualquer pessoa, mas eu sei, eu vi, ninguém me contou, que isso já acontece todo santo dia – e de forma muito bizarra, cruel e injusta.

Para quem não sabe, hoje, a polícia militar executa pessoas conforme sua vontade, humor ou desejo. Existem centenas de mecanismos que lhes permite fazer estas execuções sumárias, desde afirmar que a pessoa resistiu a uma abordagem sua, até afirmar que uma pessoa com as mãos e pés amarrados se suicidou com um tiro na própria nuca.

Então, já que é algo rotineiro, que já está instituído e que fica nas mãos de gente psicopática sem a menor cognição, humanidade ou cérebro, eu prefiro que seja institucionalizado, pois, por piores que sejam seus superiores, ao menos existiria alguma chance de transparência e fiscalização. Quer executar alguém? Beleza, vai ter que passar por um processo legal, com ampla defesa, contraditório e fiscalização da sociedade.

E antes que o estagiário de direito louco para mostrar o pouco que sabe passe aqui para me “corrigir”, eu sei que isso é impossível no Brasil. A Constituição veda sumariamente a pena de morte como prática regular. Então, estamos discutindo apenas em tese.

Voltando ao assunto: os presídios estão superlotados. Todo mundo sabe que a cada transferência de presos, metade são executados no caminho, pois simplesmente não tem mais espaço, não cabe ninguém. E todo mundo, inclusive juízes, fazem vista grossa, pois sem essas execuções, não tem como prender mais ninguém por falta de espaço.

Muitas vezes nem precisa transferência, os presos são executados dentro da própria cela. E eu sei que é a hora em que muita gente torce o nariz e diz que “quem mandou ser criminoso”. Vocês sabem que eu não sou de passar a mão na cabeça de ninguém ou de nenhum grupo, certo? Eu te afirmo que boa parte das pessoas que estão presas hoje no Brasil são inocentes. E mesmo que não fossem: se não pode matar, não pode matar. Se pode matar, que seja com o devido processo legal.

E sempre é bom lembrar que qualquer um de nós, se no lugar errado e na hora errada, pode acabar preso no Brasil, por mais inocente que seja. Esse foi um dos motivos que pesou para me fazer sair do país. Eu vi gente com mais dinheiro do que eu, com mais status do que eu, com mais contatos do que eu sendo presa e torturada, apesar de inquestionavelmente inocente.

Então, por mais horroroso que seja dar poder de vida e morte ao Estado, se é para que alguém o tenha, eu prefiro que seja o Estado, através de um processo público e fiscalizável, do que um PM cheirado de cocaína, baixa autoestima, paranoico e vingativo.

Eu poderia levar estar argumentação para outro lado que seria mais bem recebido pelo leitor: alegar que boa parte da população carcerária é de psicopatas, que são irrecuperáveis segundo a ciência, e, portanto, estão consumindo dinheiro público que poderia ser usado para educação, saúde e saneamento básico. Um preso custa mais de dois mil reais por mês aos cofres públicos. Pena de morte para pessoas irrecuperáveis ajudaria a melhorar a qualidade de vida de todo o resto, investindo o dinheiro que seria gasto com o preso no futuro do país. Mas não é esse meu ponto. Meu ponto é: pena de morte já existe.

“Mas Sally eu sou contra pena de morte”. Eu também sou, mas ela já acontece de forma sistemática, organizada e regular no Brasil, concordemos nós ou não, gostemos nós ou não. Então a pergunta é: você quer que o seu país tenha pena de morte instituída sem regras ou fiscalização por um grupo de psicopatas fardados ou quer que ela seja regulamentada e fiscalizada? Entenda: não ter pena de morte no Brasil não é uma opção no momento.

Se ninguém matar ninguém, eu vou ser muito clara sobre a realidade: em poucos meses nenhum preso condenado poderá ser encarcerado, por falta de lugar. Então, basicamente, vocês têm três opções: 1) fazer vista grossa e tolerar execuções sistemáticas por debaixo dos panos; 2) entender que o sistema penitenciário falhou e, já que existirão execuções, que sejam regulamentadas ou 3) ninguém mata ninguém, mas, em contrapartida, mais ninguém é preso.

Eu sei que ninguém quer escutar isso, mas já existe pena de morte no Brasil e ela vem sendo comandada pelas piores pessoas possíveis. Eu só quero mudar o administrador de um imóvel que há muito tempo foi construído.

“Mas Sally, é só construir mais presídios”. Não, não é. Já tem estudos sobre isso, o sistema penitenciário falhou. Mesmo que o país comece a construir hoje cem presídios novos, o problema não se soluciona.

Infelizmente as coisas são como elas são, não como nós gostaríamos que elas fossem. Eu estou compartilhando uma face muito triste e dura da realidade do Brasil. É isso, essa é a realidade. Não dá para propor uma solução que negue a realidade.

“Mas Sally, tem que ter outra solução”. Bom, eu passei dez anos tentando e, quando percebi que não há solução, não há dignidade, não há lei, não há justiça, eu pulei fora, tanto da profissão como do Brasil.

Se você puder sugerir outra solução, eu torço muito para que ela seja boa e seja colocada em prática, inclusive me proponho a divulgá-la e ajudar. Eu não vislumbro solução possível. A escolha é: quem vai comandar a pena de morte, um grupo violento, corrupto, psicopata cruel e vingativo (de forma oculta e não fiscalizável) ou o Estado (de forma pública e fiscalizável)?

Dói dizer, eu sei. Mas se é para sair executando pessoas, que ao menos seja através de um processo fiscalizável e minimamente justo. O Brasil é um país desumano, não dá para pensar em soluções humanas a curto prazo, só nas soluções “menos desumanas possíveis”.

Para dizer que já começa a semana deprimido, para dizer que prefere não responder e fingir que nunca entrou em contato com este problema ou ainda para pinçar uma frase desse texto e passar anos afirmando que eu sou a favor de pena de morte: sally@desfavor.com

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Comments (14)

    • É complicado gostar disso. Te garanto que em algum lugar existem pessoas que desgostam de você e que, no entender delas, o mundo fica melhor sem você. No Brasil, se calhar dessas pessoas terem algum poder ou apenas passarem em uma prova ridícula para PM, elas efetivamente podem te assassinar impunemente. Tem que ter cuidado com as portas que a gente abre, pois o que sai delas afeta a todos nós.

  • Prisão perpétua já seria castigo o bastante. Morrer é fácil, difícil é se ver envelhecendo estando preso, sem poder aproveitar a vida.

    • Um preso custa em média 2 mil reais por mês ao estado.
      A média de idade dos presos brasileiros é bastante baixa, muita gente jovem.
      Vamos fazer uma conta aqui por alto: uma pessoa presa com 20 anos, que viva até os 60 (15 anos a menos do que a expectativa de vida esperada), consumiria 2 mil reais por mês do Estado. Isso significa que ela gastaria 24 mil reais por ano. No saldo final, essa pessoa custaria quase um milhão de reais ao estado, ao longo da sua vida. Tem quase um milhão de presos no Brasil, a maior parte por crimes hediondos que facilmente pegariam prisão perpétua. Faça as contas e me diga se o país tem condição de lidar com essa despesa.
      E com isso não quero dizer que sou a favor da pena de morte, pois não sou. Só quero dizer que prisão perpétua é dinheiro que poderia ir para escola, hospital, remédio, casa, saneamento básico e tantas causas mais nobres.

  • Preocupante não ter mais espaço pra guardar tanto bandido. Daqui a pouco vão ter que parar de prender ou soltar como já foi cogitado no meio político. Por isso dizem que neste país um terço da população deveria tá no hospício, outro terço no circo e o restante no presídio, pena que o presídio lotou.

    • Não vão ter que parar de prender nem soltar pois se encarregam de executar quantas pessoas sejam necessárias para manter o sistema funcionando.

  • A partir dos argumentos apresentados, sou a favor da pena de morte.

    Apenas penso que o Estado poderia se aproveitar para obter algum retorno do que vai ser fritado(a) /enforcado(a)/fuzilado(a) por crime (hediondo), para mitigar o custo imposto à sociedade desde sua condenação até seu extermínio (incluindo para a família dele).

    Por exemplo, se o condenado topar doar seus órgãos (pelo menos o que não for estragado após o extermínio), eventual beneficiário teria as despesas do enterro do infeliz bancadas pelo Estado, ou mesmo um benefício por algum tempo. Afinal, não vejo como seria interessante termos uma criança ou um pai de família, mãe solteira, enfim, alguém em seu auge, morrendo numa fila de espera enquanto os órgãos saudáveis dos executados viram rodízio de carnes para bactérias e micróbios.

    Alternativamente, poder-se-ia oferecer ao condenado à morte a alternativa de comutação para pena perpétua, sob algumas condições. Por exemplo, a cada três meses ser doador obrigatório de sangue e/ou de plaquetas para bancos de sangue (ou dois mesmo, para os mais fortinhos). Caso se recuse a doar ou tenha contraído alguma DST na cadeia, sinto muito, vai virar sabão. Sem prejuízo de pensarmos em outras formas de utilização dessa mão-de-obra ociosa até o fim.

  • Fico com o Somir. Por mais tentador que seja, pena de morte não seria uma solução para o Brasil. Imaginem um sistema que, por si só, já é complicado e sujeito a erros que não podem ser desfeitos, sendo administrado por pessoas corruptas, vingativas, perversas e ignorantes, como são a maioria das autoridades do Brasil. Seria um desastre completo!

  • Wellington Alves

    E se desencarcerar e libertar no meio da floresta amazônica? Fiquei fascinado com a história do piloto Antônio Senna que sobreviveu por 36 dias!

  • A tendência é disso ser terceirizado, assim como aconteceu com a tortura, que nos tempos do governo resultante da revolução nada gloriosa que chamamos por ditadura militar era aplicada pelo próprio aparato policial passar para as mãos dos sindicatos do crime organizado a moda PCC, CV e TCP por exemplo.
    E ainda tá leve de não cobrarem caixinha pro comando fora da baixada fluminense.

  • Eu acredito firmemente que a pena de morte é uma abordagem equivocada e contraproducente. Além de ser uma violação do direito fundamental à vida, também carrega consigo o risco de executar inocentes. A falibilidade do sistema judicial e a possibilidade de erros irreversíveis são argumentos fortes o suficiente para questionar a eficácia e a moralidade da pena de morte. Em vez de buscar a vingança através da morte, devemos nos esforçar para promover a reabilitação e a ressocialização dos infratores, oferecendo-lhes oportunidades de reforma. Acredito firmemente que a sociedade deve se pautar por princípios de justiça, empatia e humanidade, rejeitando a pena de morte como uma solução cruel e arcaica.

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