Cor da discórdia.

Nos EUA, a Suprema Corte recentemente tornou inconstitucional fazer qualquer tipo de seleção com base na cor de pele da pessoa; no Brasil, as cotas raciais continuam valendo. Sally e Somir concordam que cotas por cor de pele não são uma boa ideia, mas discordam sobre como fazer essa distinção caso o Estado se decida por isso. Os impopulares mostram suas cores.

Tema de hoje: caso seja necessário decidir legalmente se uma pessoa é negra ou não, qual é a forma mais justa de fazê-lo?

SOMIR

Teste do olhar. Se a pessoa que toma a decisão acreditar que a pessoa em questão é negra, ela é negra. Isso abre espaço para subjetividade e injustiças? Claro que sim. Mas essa é a escolha do Estado ao se decidir por cotas raciais. Eu prego coerência até na insanidade: se esse é o caminho que as autoridades escolheram, que façamos as coisas de forma consistente.

Cotas raciais são ideias extremamente subjetivas desde seu planejamento até sua aplicação. Decidiu-se pelo fator “quantidade de melanina na pele” para determinar representatividade, então que sigamos em frente com ele. Não pode começar um processo de forma arbitrária e passional e querer terminar ele com lógica e ciência.

A ideia das cotas não é colocar mais pessoas de pele mais escura em posições de poder e influência? Oras, então temos que trabalhar diretamente com o benefício proposto: se o que importa é a cor da pele e a cor da pele é algo visivelmente reconhecível, que alguém tome essa decisão baseado na imagem da pessoa.

Vejam bem, se o objetivo das cotas fosse dar oportunidades para pessoas mais pobres subirem na vida e combater a desigualdade, o critério seria econômico, não? Mas não é, é racial. O simples fato de criarmos cotas para pessoas negras significa que alguém olhou para a classe dominante da sociedade e viu cores. Essas cotas existem porque grupos de alunos de universidades e funcionários públicos (e cada vez mais do setor privado) não passaram no teste do olhar: muita gente branca.

Eu concordo com esse critério para aferir igualdade de oportunidades entre as pessoas de um país? Não. Eu acho um atraso, segregação racial “do bem”. Mas tem diferença entre o que você gostaria que acontecesse e o que acontece de verdade: no Brasil está decidido que é sobre a cor da pele, e é a partir desse ângulo que eu analiso.

E é aí que eu estabeleço o ponto: não adianta tentar consertar algo fundamentalmente errado. Não adianta maquiar o porco. Trazer qualquer forma de análise objetiva sobre genética para essa conversa não resolve o problema de falta de pessoas cuja pele tem alta concentração de melanina nas vagas que as cotas querem preencher. E se a pessoa tiver a cor certa, mas o DNA errado? E se for o contrário?

Muitos anos trabalhando com atendimento direto a clientes me ensinaram que mesmo adultos precisam colocar a mão no fogo para aprender de tempos em tempos. Se você for discutir com alguém que defende cotas raciais, a pessoa vai teimar de mil jeitos diferentes que só isso resolve o problema da desigualdade, que sim, afeta desproporcionalmente pessoas negras. Não aceitam o risco de uma pessoa branca pobre usar uma dessas vagas eventualmente.

Para os maiores defensores das cotas, cor de pele passa por cima de tudo. Eles querem ver a melanina primeiro e pensar em igualdade econômica depois. Novamente, discordo, mas já que o nosso Estado aceitou fazer desse jeito, que façamos direito, oras! Uma pessoa reconhecidamente negra por seus pares pode reconhecer outra pessoa como negra, e assim por diante. Negritude por testemunho com validade legal.

Não deixa de ser uma justiça poética: essas pessoas com o poder legal de decidir se alguém é negro (sempre ao vivo numa sala com iluminação padronizada, afinal, não vamos deixar ninguém passar a perna no sistema) vão ter que decidir o quão inclusivas vão ser. Aliás, se possível eu sugeriria uma escala de poder decisório baseado na retintes da pele. Se uma pessoa de pele muito negra disser que você é negro, ninguém pode discutir. O voto dela vale mais na comissão.

E aí, veríamos na prática como o povo negro brasileiro quer lidar com isso: vai aceitar a imensa maioria miscigenada do povo ou vai preferir manter seu grupo mais limpo de impurezas? Eu pagaria para assistir essas audiências públicas de negritude. Gente comemorando por sair com um documento oficial sobre ser negra, gente chorando porque a banca achou que a pele estava muito clarinha… imagina só os processos de apelação?

Sim, eu estou sendo cínico e querendo ver gente que claramente errou a mão na sua estratégia de justiça social tendo que resolver a bagunça que criou, mas talvez isso seja necessário para que o povo da “solução mágica” para séculos de racismo contra os negros veja que focar em cor de pele foi o que deu errado desde o começo. Ou, sei lá, os negros talvez fiquem felizes com esse sistema, enxergando a possibilidade de excluir pessoas que não tem a pele da cor certa como uma forma de empoderamento. Eu sempre fui da opinião que ninguém é santo e que para existir opressão, só precisamos de oportunidade.

E sim, por incrível que pareça, me parece o sistema mais justo dentro da lógica proposta. É cota racial, e a ciência nos diz que raça é um conceito muito complicado quando você começa a analisar código genético. Estamos discutindo até hoje sobre raças de lobos e tigres, imagine só com humanos? Não tem ciência que resolva isso de forma eficiente, mas bancas decisórias formadas por pessoas de pele muito escura seria algo fácil de implementar e praticar. A pessoa entra na sala, fica debaixo de uma luz e algumas pessoas dizem se acharam ela negra ou não. Se a pessoa ganhar a maioria dos votos, é negra, se não ganhar, perde a cota. Vai discutir o que é ser negro ou não com uma pessoa que qualquer ser humano da Terra concorda que configura uma pessoa negra?

Quem quer só isso, só cota por cor, ficaria feliz. Quem é contra continuaria contra. Mas pelo menos o sistema faria sentido dentro da sua lógica.

Para dizer que agora quer ver isso acontecendo e quer as audiências transmitidas ao vivo pela internet, para dizer que está rindo imaginando cotas para transexuais, ou mesmo para dizer que não acredita que eu fui contra a ciência (maquiagem, porco…): somir@desfavor.com

SALLY

Em sendo necessário aferir se uma pessoa é negra ou não (por exemplo, para cotas), qual é a forma mais justa de fazê-lo?

Por um exame genético. Não tem como deixar a critério da subjetividade, ao menos não no Brasil, pois as pessoas abusam, tiram proveito e fraudam.

Autodeclaração ou avaliação de terceiros sempre será mais injusta por um motivo: subjetividade. Quando falamos em algo sério, formal e que afeta a toda a sociedade como por exemplo a concessão de benefícios estatais ou reparação histórica, não há espaço para subjetividade.

Quem vai dizer se uma pessoa é negra ou não? Vão andar com uma cartelinha de cores como aquelas de loja de tinta e colocar perto da cara da pessoa para ver se ela é escura o suficiente? Quem diz o que é escuro o suficiente para ser considerado negro? Quem fiscaliza para saber se a decisão foi adequada?

Poderia até funcionar em países predominantemente brancos com recente ingresso de imigrantes, pois ali fica mais fácil dizer o que é branco o que é negro. Mas o Brasil é um país miscigenado com todas as tonalidades de cor de pele possíveis, simplesmente não dá para estabelecer que do número x pantone para cima é negro.

Sério, eu tenho dificuldade de imaginar quais seriam os critérios. Critério são importantes, pois toda decisão de classificar uma pessoa como negra tem que poder ser questionada (vide a quantidade de brancos que se dizem negros para obter benefícios) e quem vai julgar essa decisão precisa de critérios. Vai fazer o quê? Escanear a cara da pessoa, jogar no Photoshop, puxar uma amostra no conta-gotas e ver que cor dá? Não tem como deixar na subjetividade.

Fora que o critério de cor de pele é bastante questionável. Um negro albino não é negro? Tem todos os traços da raça negra, apesar da pele branca. O contrário também é possível: uma pessoa branca que pegue muito sol regularmente (ou que faça bronzeamento artificial) passa a ser negra? Negro é uma raça, não estado temporário.

Não dá, simplesmente não dá para deixar só na conta da cor da pele, pois cor de pele pode oscilar e, além disso, é muito difícil mensurar a cor da pele de todos os habitantes de forma justa em um país com todo tipo de mistura de raças e com um povo malandro que não tem pudores de se fazer passar pelo que não é.

Quando o subjetivo pode ser distorcido, confundido ou manipulado, nos resta pensar em um critério objetivo, no qual o resultado não dependa da percepção de terceiros.
E, dentro dos critérios objetivos, me parece que o mais seguro seria um teste genético, analisando o DNA da pessoa e sua ancestralidade. Através desse teste é possível determinar o quanto de cada etnia aquele ser humano tem. Ser negro vai muito além da cor da pele.

Eu sei que é caro, eu sei que na prática seria inexequível, mas aqui estamos falando em tese mesmo, afinal, na prática, hoje, basta se declarar negro mesmo sendo branco como um papel.

Curiosamente, nesse quesito específico, o pessoal abraça a ciência com força: se você tem cromossomos XY mas se sente mulher, você tem que ser tratado como mulher, usufruindo de todos os direitos que elas têm, mas, se você é branco loiro de olho azul, mas se sente negro, não tem que ter direito a cotas.

Então, já que uma vez na vida o povo escolheu prestigiar a ciência (pois lhe convém), abracemos a ciência!

É a prova de falhas? Não, claro que não. A premissa em si é falha: é uma imbecilidade usar a raça/etnia de uma pessoa para qualquer coisa que não seja o direcionamento de eventual tratamento médico. Então, obviamente, falhas irão acontecer.

E não seria o caso de culpar o método pelas falhas e sim a contradição daqueles que incentivam essa classificação negros/brancos. Os que mais se dizem disruptivos parecem ter prazer de estimular que se continue enfiando pessoas em uma caixinha: negro, índio, branco etc. Os mesmos que recriminam quem classifica são os primeiros a classificar quando isso pode lhes gerar algum benefício.

Já que querem continuar com as classificações, ao menos usem a ciência e não o olhômetro/achometro do brasileiro médio. Spoiler: qualquer coisa falha menos do que o olhômetro/achometro do brasileiro.

A necessidade de um critério objetivo só aumenta quando pensamos na motivação para fazer esta classificação. Sejamos francos, por qual motivo alguém oficialmente classificaria a cor de pele de uma pessoa hoje no Brasil? A única hipótese dentro da lei que eu consigo imaginar para fazer isso é para dar algum tipo de benefício, reparação histórica.

Portanto, há uma enorme probabilidade de muita gente tentar burlar, o povo adora um benefício e se for na malandragem, mais ainda pois se sentem duplamente espertos. Eu sou terminantemente contra política de cotas, acho inclusive ofensivo, mas já que será implementada, que ao menos o seja da forma que a lei prevê: beneficiando negros. (como se não houvesse pobre branco e pardo no Brasil…)

Sabemos que não dá para deixar o brasileiro autodeterminar a cor da pele, se não, acontece a aberração de ter 80% de brasileiros brancos no CENSO e 80% dos brasileiros negros na hora do concurso público. Sabemos que não há consenso na classificação de cor com base no achometro, pois as pessoas tendem a achar negro quem for mais escuro do que elas e branco quem for mais branco do que elas. O que resta? Sorteio ou a ciência.

Meus queridos, é um país no qual uma pessoa que se declara negra diz “nós, o povo soviético”. É um hospício a céu aberto. A única forma de botar ordem para valer é através da ciência.

Para me chamar de transfóbica, para me chamar de racista ou ainda para me chamar de qualquer coisa pejorativa por defender a ciência: sally@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Desfavores relacionados:

Etiquetas: ,

Comments (6)

    • Não faz mal. Todo mundo se engana às vezes. O mais importante é que a matéria que você mostrou é mesmo interessante.

  • “Portanto, há uma enorme probabilidade de muita gente tentar burlar, o povo adora um benefício e se for na malandragem, mais ainda pois se sentem duplamente espertos. Eu sou terminantemente contra política de cotas, acho inclusive ofensivo, mas já que será implementada, que ao menos o seja da forma que a lei prevê: beneficiando negros. (como se não houvesse pobre branco e pardo no Brasil…)”

    Falando nisso, viram essa notícia do mês passado?

    https://www.metropoles.com/brasil/servidor-brasil/candidato-pinta-o-rosto-para-entrar-em-concurso-do-inss-por-cotas

  • No olhômetro seria melhor porque é a aparência que causa a discriminação, não o genótipo.
    Aliás, eu sou a favor do teste de ancestralidade em todas as maternidades do Brasil. O resultado seria impresso junto com a certidão, quero ver quantos nazistas e wakandeiros sobreviveriam.
    Gente loira com 40% de DNA africano, negro com 50% de DNA europeu e 30% de DNA indígena (pele marrom não é exclusividade de africanos), pardo com 20% de DNA asiático…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: