Nerds em série.

Existem muitas personagens consideradas nerds nas séries mais famosas, mas Sally e Somir gostam de sair do caminho tradicional: quando escolhem as melhores nessa categoria, valorizam características que vão muito além de estudo e timidez. Os impopulares escolhem seus nerds favoritos.

Tema de hoje: qual a melhor personagem nerd das séries?

SOMIR

Heiserberg. Também conhecido como Walter White de Breaking Bad. Eu começo chamando pelo nome de seu alter-ego porque esse é o ponto central da minha argumentação. Mas é claro, vamos começar pelo básico: Walter White começa a história como um pacato professor de química que se vê numa posição extremamente difícil, com um câncer dito intratável e um prazo curto para deixar uma herança razoável para a mulher e o filho deficiente.

A série já terminou faz tempo, mas fica o aviso de spoilers: Breaking Bad é uma das, senão a melhor série já feita. Vale a pena ver mesmo hoje em dia. Se você já viu ou não liga para saber mais sobre o que acontece, vamos lá!

No começo, Walter é mostrado como apenas um homem de meia idade que não se destaca em nada, e mal tem o respeito da família. Mas nada de terrível, apenas uma pessoa meio sem sal. Com o avanço da trama, vamos descobrindo que ele estava se controlando o tempo todo. O que muita gente não entende sobre nerds é que por trás da fachada discreta, existe uma personalidade como em qualquer outra pessoa.

Eu gosto dessa jornada de Walter White rumo ao que estava escondido por trás da máscara de adequação que usava no trabalho e até mesmo em casa. Muitos nerds acabam suprimindo sua personalidade real por acúmulo de pressão externa: seus interesses menos comuns e baixo interesse natural por socialização nos padrões habituais acabam fazendo a pessoa se sentir como se não valesse a pena ser ela mesma. Cria uma figura neutra para apresentar para o mundo, afinal, atenção nunca foi uma experiência positiva para ele.

Mas por dentro, muita coisa continua borbulhando. Eu sou do time que acha que Walter White sempre foi Heisenberg, a persona real dele é do gângster inescrupuloso, mas a sociedade conseguiu controlá-lo pela maior parte da vida. Não quer dizer que todo nerd é um sociopata escondido, mas que sempre tem algo a mais por trás de pessoas que são “livros fechados”. A mente não tira férias: algumas pessoas desenvolvem suas personas à plena vista dos outros, outras o fazem de forma bem mais discreta.

E quanto mais Heisenberg assume o volante, mais as características intelectuais de Walter ganham força. A escalada rumo ao sucesso no mundo do crime se dá através de planos meticulosos, coisas de quem está pensando dez passos na frente da maioria das outras pessoas. Sim, seus arroubos psicopáticos são momentos chocantes da jornada, mas é a capacidade dele de montar planos e armadilhas muito específicas que mantém as pessoas tensas ao seu redor.

O nerd costuma trocar bom-senso social e inteligência emocional por alternativas mais analíticas às dificuldades que encontra no seu caminho. Um nerd que acumulou muito conhecimento e treinou o cérebro por décadas pode pensar de forma muito surpreendente para pessoas normais. Tanto que é parte da sua jornada alienar todo mundo ao seu redor: Walter vira um vazamento nuclear para família, amigos e colegas, contaminando todo mundo no seu caminho rumo ao topo do mundo do crime.

Eu acredito que Heisenberg seja a melhor personagem nerd de séries não porque eu goste do que ele fez ou tenha torcido por ele nas temporadas finais; como a maioria das pessoas, eu também fui mudando de time e achando ele uma pessoa horrível com o passar do tempo, mas não podemos negar que tem uma figura fascinante ali.

Talvez para quem não sente nenhuma identificação com nerds seja mais difícil entender isso, mas vamos lá: Walter se tornando num bandido terrível com golpes geniais é uma fantasia de poder nerd. A fantasia de ser um gigante musculoso acompanha todos os homens, mas a fantasia de ser um gênio que está sempre na frente dos adversários é uma muito poderosa na mente dos nerds.

Heisenberg é fascinante porque explora essa fantasia de poder às últimas consequências. Quanto custa ser o gênio do mal? No caso dele, custou tudo. Eu já passei por essa fase, então posso dizer com segurança: se você passa por momentos de sofrimento por ser diferente com sua nerdice, é natural nutrir um sentimento de vingança pela sociedade, fazer com que as pessoas que te trataram mal sintam medo de você por sua inteligência incrível… no meu caso eu consegui explorar isso sendo chato na internet e argumentando coisas aleatórias para expurgar o mal (tanto que hoje em dia eu cago e ando para discutir na internet), mas muitos nerds não tem uma válvula de escape baseada em alta capacidade de articulação.

Muitos ficam com isso dentro da cabeça a vida toda. A escolha da Sally é um nerd fora da caixa, muito divertido, mas não tem a profundidade psicológica de Walter/Heisenberg. Se você acompanha a história, vê como esse ressentimento social pode virar um monstro. Walter conseguiu uma família meio chatinha, mas amorosa. Heisenberg jogou tudo isso fora numa fantasia de poder que ele mesmo foi percebendo como danosa durante seu caminho.

Mas o nerd tem a obsessão na alma. Ele não consegue parar, ele não se controla. Sem uma interferência externa de uma pessoa mais “normal” para trazer ele de volta ao chão, ele costuma ser consumido pelos seus interesses. Quando Heisenberg assumiu o controle, ele era pura obsessão por poder, e com as pessoas da vida de Walter afastadas, nada estava mais no seu caminho. Heisenberg queimou até não sobrar mais nada.

Esse é o nerd que a Globo não mostra. Uma pessoa que perde a conexão com outras pessoas, e que se não tiver nenhum caminho de volta, é consumida por esse afastamento sem volta. Em Breaking Bad, vimos um caminho fantástico no mundo do crime, mas na vida real é muito mais comum que a pessoa acabe isolada até se radicalizar de alguma forma (vulgo incel e homem de peruca) e usar suas capacidades para exercer sua “vingança” contra o mundo das pessoas normais. Breaking Bad é um aviso sobre o que é o nerd sem um caminho de volta para a sociedade.

Dificilmente vai ser grandioso e emocionante como na série, mas quase sempre termina com muitas pessoas sofrendo ao seu redor.

Para dizer que este texto foi uma fantasia de poder, para dizer que ainda prefere ser o Conan do que um gênio do mal (acho saudável), ou mesmo para dizer que já cansou de nerdice: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é o melhor personagem nerd de seriados?

Dwight Schrute, do seriado The Office. Nunca houve um nerd como Dwight Schrute, a combinação perfeita de desequilíbrio, autoritarismo e violência.

Normalmente o nerd de seriados costumava ser retratado no conceito nerd dos anos 80 (sem força física, vítima de abuso pelo entorno, ligado de forma umbilical à ciência) ou como exemplo de superação (quem foi tudo isso mas, em algum momento, em uma jornada do herói, deu a volta por cima). Dwight veio para romper com esses dois clichês: nem nerd clássico, nem nerd reloaded que virou a mesa.

Dwight é um vendedor de personalidade autoritária, comportamento inadequado e percepção distorcida do mundo. Ele se acha superior ao resto das pessoas por elas não seguirem seus rígidos padrões de comportamento e externa isso de forma grosseria, rude e agressiva. É um nerd politicamente incorreto ao extremo, uma combinação que raramente vemos nesse tipo de personagem.

Adepto de violência, punição física e com uma leve pegada autista, Dwight é, além de nerd machista, e meio Amish. Vive em uma fazenda onde planta beterrabas (é obcecado pelo vegetal), odeia seus colegas de trabalho (os considera inferiores) e acredita que a masculinidade está ligada a uma vida rústica e força física.

Você pode ter uma clara noção do personagem em apenas poucos minutos, por exemplo, no que eu considero a melhor cena de abertura de seriados de comédia de todos os tempos, no episódio “Stress Relief” (temporada 5, episódio 14, você pode assistir aqui). São cinco minutos que vão alegrar o seu dia.

Dwight está chateado por seus colegas de trabalho não terem prestado atenção no seminário sobre protocolos de incêndio na semana anterior, então, ele decide ensinar uma lição a todos os membros do escritório simulando um incêndio. Tranca todas as portas e esquenta as maçanetas com um maçarico, corta a comunicação telefônica e ele mesmo começa um incêndio, jogando álcool em uma lixeira, acendendo um cigarro e dizendo “Hoje fumar vai salvar vidas” ao jogar o cigarro aceso na lixeira. O que se segue (além do incêndio) é um caos sem precedentes que culmina com o infarto de um dos membros do escritório.

Esse é Dwight, um maluco, vingativo, agressivo sem noção, mas que, em muitos momentos, solta umas verdades com as quais eu me identifico muito. Coisas como “Há muitas pessoas neste planeta, precisamos de uma nova praga” ou “Os olhos são a virilha da cara” (dizendo que é a parte mais sensível que deve ser atacada na hora da agressão física) ou ainda “Eu nunca sorrio se eu puder evitar. Mostrar os dentes é um sinal de submissão nos primatas. Quando alguém sorri para mim, tudo que vejo é um chimpanzé implorando por sua vida.”

Acredito que Dwight Schrute tenha sido um dos primeiros personagens nerds a romper com o estereotipo do magricelo de óculos que sofre bullying, ao menos dos que ficaram famosos. Ele é um nerd com força física, bruto, rude, a favor da violência, faixa preta de caratê e que pega mulher, inclusive a mulher dos outros.

Ele veio para mostrar que existem diferentes tipos de nerds. Nem todos estão abraçados à ciência. Nem todos são fracos fisicamente. Nem todos são fracassados com mulher. E essa combinação contrastante com o que, até então, se convencionava chamar de nerd, além de ser muito engraçada, rompeu barreiras e alargou o conceito de nerd.

O nerd padrão sempre foi retratado com algum refinamento graças ao seu amor pelos estudos, mas Dwight é um nerd tosco, sem verniz social e sem qualquer preocupação com sua inadequação. Sim, é um nerd com autoestima, que acha os outros uns merdas, aponta o dedo na cara deles e diz isso com todas as letras.

O que torna o personagem tão genial é sua imprevisibilidade: ele não se encaixa naquele conceito conhecido, então, é mais difícil antever como ele vai reagir. Ele é totalmente maluco, imprevisível e sem limites.

Eu realmente não consigo nem começar a comparar ele com o egoísta babaca escroto do Walter White. Impressionante como Breaking Bad se esforçou para só ter personagem insuportável, chega a ser quase que desvio de caráter gostar de alguém ali.

Nem é sobre os atos em si, mas sobre o lugar de onde eles vêm: quando Dwight faz as coisas ele acredita que está fazendo o certo, em sua grande cabeça disfuncional. Já Walter White sabe que está fazendo errado, mas, em sua cabeça vitimizada, a sociedade lhe deve algo e tem que pagar.

White caga e anda para as consequências ou para quem ele possa ferir no caminho, inclusive para sua família. É um grande poço de ressentimento, rancor e sede de poder típica de um desempoderado.

Dwight é divertido, é leve, é engraçado. Walter White é pesado, se leva a sério, é maçante. Eu prefiro um nerd que rompe barreiras a um que reforça o clichê. Nerd conflituado, fodido na vida e ressentido tem aos montes, nerd que valoriza força física, é machista e faz piada com deficientes só tem um.

Plus: além de Dwight ser maravilhoso, o ator que o interpreta, Rainn Wilson, também o é. Eu não sou fácil de impressionar, mas ele é uma pessoa que inspira. Além de ser um excelente ator, seus livros são maravilhosos, inclusive sua biografia (acho que nunca ri tanto lendo um livro). É preciso ser muito são para conseguir construir tão bem um personagem insano como Dwight Schrute.

Para dizer que eu tenho um padrão Rafael Pilha de admiração, para dizer que vale a pena superar a primeira temporada horrível de The Office para usufruir do resto ou ainda para dizer que o melhor nerd é Sheldon Cooper: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Eu vi o trecho de episódio sugerido pela Sally e fiquei espantado com a maluquice do cara de simular um incêndio no escritório e todos os funcionários ficarem em pânico.

  • Discordo um pouco da superficialidade do Dwight.

    Além de divertido, era uma pessoa com um senso puro de justiça, mesmo com quem o tratava mal. Três exemplos: (a) Protegeu Jim, o colega de trabalho frustrado que o atazanava o tempo todo, de apanhar de outro colega de quem Jim roubara a noiva, jogando spray de pimenta na cara do sujeito, sem querer nada em agradecimento; (b) desconfiou de outro colega, que alegou estar doente para faltar ao dia em que a empresa toda fazia uma faxina interna. Ao final do dia perseguindo o faltoso, flagrou o cara de boa em casa, mas foi magnânimo ao não dedurá-lo para a chefia por mentir que estava doente, sem usar isso depois para conseguir alguma coisa na empresa (e sem se tocar que o colega faltoso tinha tirado o dia na verdade para ficar com o namorado em casa que, para Dwight, era só um amigo) e (c) quando Jim avisou que deixaria a empresa para perseguir sua verdadeira vocação em outra cidade, Dwight, agora gerente, decidiu que a empresa é que iria demiti-lo, a fim de que ele pegasse a grana da demissão para financiar nesse recomeço.

    De resto, é uma pena que Dwight não tenha tido sua própria série. Até fizeram um episódio que seria um spin-off, no qual Dwight passa o dia com seus familiares na fazenda de beterraba após o funeral do tio, no qual aprendemos muita coisa sobre os Schrutes, como dar um tiro de escopeta no caixão para expressar pesar ou dar um bico de corvo para uma mulher para expressar seu interesse por ela.

    • Mas o senso de justiça dele era de acordo com sua visão de mundo, então, algumas vezes o levava a fazer coisas escrotas, mesmo achando que está fazendo o certo, como por exemplo quando denunciou o Michael para a supervisora e tentou tomar o lugar dele.

  • Guilherme Protzner

    Olha, a contenda sobre o nerd está ótima. Dão uma pimenta ótima aos textos. Se for pra ter mais alfinetadas, mandem mais textos sobre.

  • mas na vida real é muito mais comum que a pessoa acabe isolada até se radicalizar de alguma forma (vulgo incel e homem de peruca)
    Basicamente cair de pato no jogo da esQUEERda radicalizadora que vive de manipular a mente das pessoas na base da engenharia social, mais ou menos na linha do que aconteceu no caso Chris Chan.

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