Série de injustiças.

Estamos vivendo mais uma temporada de greve de roteiristas nos EUA, o que eles fazem de tempos em tempos para aumentar seus salários. Só que em alguns casos, Sally e Somir discordam do valor deles… e até mesmo entre si sobre quem foi a maior vítima deles nos últimos tempos. Os impopulares escrevem suas histórias.

Tema de hoje: qual a personagem mais injustiçada pelo roteiro das séries nos últimos tempos?

SOMIR

Littlefinger, também conhecido como Mindinho da série Game of Thrones. Sim, nas últimas temporadas todas as personagens da série foram injustiçadas pelo roteiro estúpido, resultado da trama televisiva ter avançado além do material original dos livros. Mesmo com a supervisão do escritor, ficou tudo corrido, confuso e francamente… broxante.

Mas é na figura do cafetão/conselheiro do rei Littlefinger que a coisa ficou mais bizarra. O Q.I. das personagens caiu uns 30 pontos em média a partir do momento que os roteiristas da HBO assumiram a história, mas essa média está muito inflacionada pela derrocada assustadora da inteligência dessa personagem.

Do nada, de uma temporada para outra, um homem que só tinha sua esperteza e paranoia para o ajudar a subir na vida ficou sem ferramenta nenhuma para interferir na trama. Sem as ideias que já vinham prontas dos livros, os roteiristas não sabiam mais o que fazer com ele.

A graça de Littlefinger é que ele era uma figura meio patética mesmo, mas complementava isso com a capacidade de prever o pior nos outros e se posicionar corretamente para aproveitar as oportunidades. Ele era literalmente o contraponto do Ned Stark: que era forte, corajoso, honrado… mas que idiotamente enxergava essas qualidades em todo mundo ao seu redor.

A alma da história, pelo menos no começo, é como o verme inseguro do Littlefinger se deu bem porque enxergou o mundo sem idealização. Ele não era exemplo de nada, mas era uma personagem fascinante que mostrava a gravidade das consequências por ações impensadas naquele mundo. Eu até entendo que havia alguma graça nele se dar mal eventualmente, quando o mundo tivesse mudado o suficiente para alguém que só vê o pior nos outros finalmente estivesse errado.

Mas não foi isso que aconteceu. A série perdeu os neurônios e Littlefinger precisou ficar bem burrinho para ser finalmente vencido pelas filhas do Ned Stark. Não foram elas que evoluíram, foi que ele regrediu. Na última temporada, ele arma um plano muito imbecil que é facilmente revertido por elas, e termina a série morrendo numa cena de empoderamento feminino de 1 metro e 40. O Gollum Stark o mata e depois até o exército mágico de gelo por motivos de fazer fãs gordas berrarem na frente da TV.

Repito, não é que ele precisava terminar a série no topo, ou mesmo imune às consequências de seus atos, mas o roteiro simplesmente o fez escorregar numa casca de banana para ter mais tempo de mostrar cenas de batalha extremamente escuras e dragões tacando fogo em inocentes.

Quando você estabelece uma personagem muito atenta e paranoica, não pode jogar tudo pelo ralo só para finalizar sua participação. Ou o fizesse um cretino que só tinha subido na vida pela sorte, ou fizesse que sua derrocada fosse resultado de uma das suas inúmeras falhas de caráter. Morreu que nem um orc do Senhor dos Anéis, vilão genérico que estava no caminho do herói.

A história de Game of Thrones parecia um castelo de cartas deixado na mão de uma criança hiperativa. Quanto mais alta na pilha de inteligência a personagem, maior sua queda na temporada final. Os imbecis que escreveram aquilo só conseguiam lidar com um Q.I. médio de dois dígitos, então todo mundo se adaptou a essa realidade. Virou novela mexicana, todo mundo motivado por raiva e paixão, quem não podia gravar cena lutando morreu aleatoriamente (Varys que o diga, botaram fogo nele porque não sabiam escrever sequer uma fala realista para alguém inteligente).

Littlefinger foi o mais injustiçado porque é quem mais tinha o que entregar nos capítulos finais da saga. Tudo bem que ele não era o protagonista, mas ele era uma carta na manga dos roteiristas para criar mais complexidade nas disputas por poder. Ficamos temporadas esperando para ver o que ele estava aprontando, e na hora do vamos ver, não estava aprontando nada, porque não tinha tempo no episódio para colocar nada além de maluca do dragão e joão sabe-de-nada, os queridinhos do público de cabeças-ocas que ficou fã da série depois que descobriram que ganhavam biscoito por se dizerem fãs.

A personagem poderia ter arriscado demais com um exército em mãos e se dado mal, poderia ter formado aliança com o lado perdedor, poderia ter tentado uma via de redenção (falhando ou não no final), poderia até ter dado um brilhante golpe pelas costas de todo mundo e saído como rei no final da série. Todos futuros mais lógicos do que ser passado pra trás por duas pirralhas que ninguém respeitaria ou apoiaria naquele mundo (é um mundo injusto com mulheres, faz parte da porra da história toda, bando de roteirista imbecil que prefere lacrar do que escrever algo coerente).

Eu nem vou falar sobre o Stanis, porque a série desistiu dele no primeiro minuto que os livros acabaram. Mas dependendo do que o gordão fizer no próximo livro, ele talvez se torne o maior injustiçado. Com o material que temos em mãos, a maior sacanagem feita com uma personagem na série é a que fizeram com ele, e talvez a maior sacanagem feita com um roteiro na história da TV seja a série onde ele estava. Essa soma que faz meu voto ser como é.

Sim, eu estou puto até hoje.

Para me chamar de misógino, para me chamar de nerd chato, ou mesmo para dizer que nem lembra mais dessa série (sorte sua): somir@desfavor.com

SALLY

Quando falamos sobre roteiro, qual é o personagem de seriado mais injustiçado dos últimos tempos?

Nossa pergunta é: que personagem merecia algo muito melhor do que lhe foi reservado pelo roteiro do seu seriado? Tem muito personagem de seriado injustiçado, mas, na minha opinião, a maior injustiça aconteceu com Charlie Harper, do seriado “Two and a half man”.

Para quem não sabe o que aconteceu, Charlie era o personagem principal do seriado: era divertido, engraçado, politicamente incorreto. Tudo ia bem, o seriado era um sucesso, mas o ator que o interpretava, Charlie Sheen, se meteu em tantos problemas, confusões e desgastes por causa do seu vício em drogas que seu personagem pagou o preço.

Charlie Sheen chegava para gravar alterado, não lembrava das falas, desrespeitava os colegas e a equipe. Dia sim, dia também era manchete de jornal por crimes, falas desagradáveis e escândalos. A coisa se tornou insustentável, mas, como Two and a Half Man era um dos seriados mais vistos da época, os produtores decidiram tentar uma última chance.

Foram até a casa de Charlie Sheen e lhe disseram que havia um jatinho esperando por ele, para levá-lo a uma das melhores clínicas de reabilitação do mundo e que suspenderiam as gravações do seriado até ele se tratar e voltar melhor. Charlie Sheen mandou enfiarem a reabilitação no cu.

Então, diante dessa situação, ele foi imediatamente cortado da série, sem qualquer desfecho filmado para seu personagem, que foi sumariamente morto e “substituído” por Ashton Kutcher, um novo personagem que entrou para ocupar a lacuna que se criou, transformando Two and a Half Man em um espetáculo deprimente, decadente e agonizante.

No seriado, Charlie Harper desaparece do nada e é dado como morto, mas o roteiro dá a entender que Rose, sua vizinha e stalker, o teria sequestrado e mantido em cativeiro e colocado o corpo de outra pessoa para ser cremado. Eu compreendo a necessidade de tirar Charlie Sheen do seriado, uma vez que estava inviável trabalhar com ele, mas precisava usar essa justificativa grotesca e infantil do roteiro?

O esmerdeio respingou até no coitado do Ashton Kutcher, que foi chamado para um papel que substituiria Charlie (ele interpretou o milionário Walden Schmidt). Prometeram um personagem para ele e entregaram outro, muito menos interessante, bobo e até ridículo. Eu não sei que disritmia mental acometeu a equipe de roteiro de Two and a Half Man, mas se era para fazer isso, teria sido melhor acabar com o seriado.

A impressão que ficou é a de que os produtores e/ou roteiristas se dedicaram a alfinetar Charlie Sheen nas temporadas que se seguiram, como se estivessem escrevendo só para afrontá-lo. Ele de fato saiu falando mal do seriado, da equipe, criticando tudo, mas… era apenas um viciado em drogas bostejando. Precisava levar a sério, cair na pilha e ficar com raivinha? Parecia picuinha de ex-namorada, algo que você não espera que aconteça em um dos seriados mais famosos e mais vistos da tv. Para responder às provocações, mataram o seriado.

Seja pelas indiretas nos diálogos, seja pelas cenas grotescas envolvendo Charlie (por exemplo, frequentemente a urna com as suas supostas cinzas caía no chão), os roteiristas pareceram não perceber que o público tinha muito carinho pelo personagem e bater em Charlie Harper não era sinônimo de bater no Charlie Sheen.

Os furos no roteiro começaram a empilhar. Na tentativa de reforçar o humor, o personagem do Ashton Kutcher foi se tornando cada vez mais grotesco. As críticas começaram ficar mais contundentes, mas, como Charlie Sheen disse que o seriado não sobreviveria sem ele, que ele era Two and a Half Man, parece que por birra, resolveram esticar o seriado por mais quatro vexaminosos anos, cavalgando nas costas de Jon Cryer (Alan) e Conchata Ferrel (Berta).

O final é puro suco de vergonha alheia. Descobre-se que Charlie Harper estava vivo o tempo todo e de fato sequestrado por Rose. Ele consegue escapar, fazendo um retorno triunfal à sua casa, cenário onde se passa o seriado.

Nas cenas que mostram como ele foi mantido em cativeiro, usaram desenhos animados, o que por si só já foi grotesco. O mais triste foi ver que a prioridade não era dar um desfecho digno ao seriado e sim alfinetar Sheen, incluindo cenas desnecessárias que em nada contribuíam para contar a história. Por exemplo, em uma cena dele no restaurante com Rose, o açucareiro vira, jogando açúcar por toda a mesa e, na animação, de Charlie Harper o aspira freneticamente, como se fosse cocaína.

Charlie Sheen se recusou a participar do episódio final, pois não concordava com a morte do personagem. Ele tinha planos para filmar outro seriado no futuro, onde interpretaria novamente Charlie Harper. Em vez de se adaptar e criar um final que pudesse ser filmado de forma plausível sem ele, os produtores preferiram cagar o final e sacanear Sheen, impedindo seu projeto.

No retorno triunfal, Charlie Harper acaba morrendo na porta da sua casa. Para isso, usaram uma pessoa que lembra vagamente ao ator (que parece estar usando uma peruca), que só aparecia de costas para a câmera. Mas calma que piora.

Quando o cosplay de Charlie Harper finalmente consegue escapar e voltar para casa, um piano (instrumento que o personagem tocava) cai em sua cabeça, na porta da sua casa matando-o. Mas calma que ainda piora mais. Corta para o diretor da série, Chuck Lorre, em sua cadeira, gritando que ele venceu, até que um piano cai por cima dele também.

Para cobrir Charlie Sheen de merda, cobriram Charlie Harper de merda. Muito pouco profissional e burro, já que o personagem era querido pelo público e, fatalmente, ninguém gostou de ver o que aconteceu. O final (bem como as últimas temporadas) foram duramente criticados e ficou a impressão de que a produção ficou pau a pau com Charlie Sheen em matéria de profissionalismo.

Charlie Harper merecia um final digno, pois, ao contrário de Charlie Sheen, havia conquistado o público e era querido. Não se faz isso, não se passa sete temporadas criando um vínculo entre o protagonista e o público para, depois de sete anos, escrotizar, sacanear e espezinhar o personagem por um erro do ator que interpretava o personagem.

Provavelmente Charlie Sheen mereceu tudo que aconteceu, mas Charlie Harper não. Um personagem divertido, carismático e engraçado, que sumiu de forma estranha e morreu de forma ainda mais bizarra em um remendo de roteiro que nem eu teria coragem de escrever.

Para dizer que sacanagem é o que fizeram com Dexter, para dizer que a vingança nunca é plena pois mata a alma e envenena ou ainda para dizer que se for assistir Chuck Lorre melhor optar por The Big Bang Theory: sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • O que fizeram com Mindinho e Stanis é imperdoável. Mas minha maior injustiçada ainda é Sculy (Arquivo X) que jogaram no clichê historinha sobre “amor de mãe”.

  • Charlie, e acrescento o Junior de Eu a Patroa e as Crianças (maratonei neste mês, me julguem). Foi o personagem que mais sofreu com a destruição do desenvolvimento de personagem, depois da segunda temporada.
    O mal de séries de comédia é quando as ideias vão acabando e os roteiristas vão deixando os personagens mais idiotas pra tentar manter a graça.

  • Charlie. Dá pra ver que a série morreu mesmo com ele.

    E eu gosto do Ashton, mas sacanearam ele nisso também. Fora que o ator que fez o Jake ainda se converteu e saiu falando merda da série também.

    E quando inventaram a filha lésbica do Charlie? Uma mulher masculinizada que coçava as bolas e tal.

    Horrível, simplesmente constrangedor como cagar na frente de todo mundo.

  • Um exemplo bobinho, mas que eu não entendi o que caralhos aconteceu (não só com o personagem, mas com o seriado como um todo) foi o Michael Kyle de Eu, a Patroa e as Crianças.

    Era uma sitcom focada numa família negra mas razoavelmente bem sucedida, com o Michael, o pai, sua esposa, seus dois filhos adolescentes e uma filha pequena. Todo tipo de coisa acontecia, desde historinhas divertidas até temas mais sérios como um amigo do Kyle morrer assim que se aposentou e levar ele a pensar em sobre o que é aproveitar a vida, um outro amigo jogador de basquete ficar paralítico e ele não saber como lidar com isso, passando desde a fingir que nada mudou até a tratar ele como um inválido digno de pena, ou um outro que ele ajuda uma amiga da filha a não surtar por causa de uma gravidez indesejada falando sobre como ele tinha vivido a situação.
    Entra Franklin, o Menino Gênio, um vizinho de cinco anos que é o melhor advogado dos Estados Unidos, engenheiro, astrofísico, cirurgião cardiologista, almirante naval, piloto habilitado em todos os tipos de aeronaves do mundo e melhor jogador de pebolim do ocidente . Depois que ele entra na série o Michael vira um retardado e a maioria dos episódios se resume a ele fazendo alguma merda e o Franklin sendo convocado pra consertar.

    Também tem o Kevin do The Office que era o personagem “realista” da série e virou o Patrick do Bob Esponja.

    • Engraçado, não senti essa mudança do Kevin. Provavelmente não percebi pois nunca me importei muito com o personagem (eu amava o Dwight, maluco descompensado). Você acha que fizeram do Kevin uma caricatura?

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