Problema silencioso.

A população em situação de rua no Brasil aumentou 935,31% nos últimos dez anos, segundo levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base em dados do CadÚnico (Cadastro Único) do governo federal. O número de pessoas cadastradas saltou de 21.934 em 2013 para 227.087 até agosto de 2023. LINK


O Brasil tem problemas graves nesse nível que mal viram notícia. Desfavor da Semana.

SALLY

Na terça desta semana fiz um texto falando sobre problemas graves que afetam o Brasil, problemas que repercutem, que dão o que falar, que impactam a vida de todo Brasileiro. Hoje a gente pega a mão oposta: problemas silenciosos que, por não serem ventilados e por não impactarem diretamente a vida da maior parte da população estão passando abaixo do radar – e não deveriam.

Quando o país no qual você mora tem a maior quantidade de homicídios do mundo, todo mundo se preocupa, se indigna, ao menos fala a respeito. Mas quando aparecem problemas graves que não batem à sua porta, é muito fácil ignorá-los.

E isso não é uma crítica. O brasileiro está soterrado em problemas graves faz tempo e me parece até uma questão de autoproteção escolher suas batalhas. Não há saúde mental que resista se você abraçar todas as causas. Eu entendo quem não faz nada para solucionar os problemas silenciosos e de forma alguma culpo essa pessoa: o brasileiro está lutando para não ser assassinado e contra outras ameaças diárias igualmente graves. Não sobra tempo nem disponibilidade emocional para muito mais.

Porém, é nosso papel apontar que existem problemas silenciosos graves acontecendo. Isso de forma alguma coloca qualquer pessoa do povo na obrigação de resolvê-los, apenas queremos que estejam cientes de sua existência. É importante ter total consciência do que está acontecendo no país no qual se vive.

A notícia que ilustra a postagem fala de um crescimento de 10x da população de rua. Se você aprofundar um pouco mais, verá que uma parcela minoritária dessas pessoas está nas ruas por questões financeiras, e sim por problemas de saúde mental (como doenças mentais, vício em drogas e coisas do tipo) ou problemas familiares.

Um aumento de 10x da população de rua vai de encontro com o que se esperava, mostra um retrocesso, não um avanço, e nos leva a refletir sobre algo que eu venho criticando faz tempo: tudo na cabeça do brasileiro parece girar em torno da economia.

Assim como nem todo rico é feliz, saudável e boa pessoa, nem todo país rico é feliz, saudável e bom de morar. O brasileiro parece focar muito na economia, esse é o termômetro para saber se o país vai bem.

Parece que um país com economia ruim é a pior coisa que pode acontecer. Obviamente uma economia destruída não é o melhor dos mundos, mas certamente não é o pior. Eu prefiro uma economia em crise, mas com pessoas educadas, com prestação de serviços públicos bons e sem tanto risco de morrer, ser mutilada ou estuprada quando sair na rua. Economia não é tudo, gente.

Ao entender que economia não é tudo a gente entende que talvez não seja financeira a solução para esse aumento de moradores de rua. A gente entende que talvez seja recomendável focar ao menos parte das demandas em melhorias que não sejam econômicas. E, mais importante de tudo, a gente entende que talvez o Brasil não seja um país tão bom como se imaginava.

Outro exemplo de problema silencioso: estupros. O Brasil tem um dos maiores índices de estupros do mundo, o que preocupa dobrado, pois nem toda mulher ou criança estuprada denuncia, portanto, os números reais devem ser muito maiores. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgou que em 2022 (2023 ainda não acabou, não dá para contabilizar), ocorreram no país uma média de mais de 200 estupros por dia, levando em conta apenas os casos que foram levados às autoridades.

Hoje, no Brasil, a maior parte dos estupros não ocorre em um beco escuro e sim dentro de casa. Não ocorre com mulheres e sim com crianças. Não parte de estranhos e sim de familiares. Mas são vítimas sem voz. São crianças, que não podem se defender. É um problema silencioso que não impacta diretamente a vida de nenhum brasileiro, então, acaba passando abaixo do radar. Mas… qual será a saúde mental de tantas pessoas que crescem nessa realidade? Que tipo de família essas pessoas vão conseguir construir? Que filhos vão deixar para o mundo?

Como estes, o Brasil tem centenas de problemas silenciosos que não são vistos, discutidos ou enfrentados. Mas, não se enganem, são problemas que impactam, ainda que indiretamente, todos os que moram no país. Não queremos colocar a responsabilidade pela solução desses problemas nas costas de ninguém, como já foi dito, queremos apenas lembrar que eles existem. E o fato deles existirem deve ser levado em conta na hora de avaliar o que é o país no qual você vive.

Ainda tem gente relativizando o que se tornou o Brasil: “problemas todo país tem” ou “nenhum lugar é perfeito”. Desculpa, mas pior educação do mundo, maior quantidade de homicídios do mundo, 50% da população cagando em vala e uma quantidade surreal de estupros dentro de casa não são meros “problemas” e definitivamente não é todo mundo que os tem.

Hora de tomar consciência e somar os problemas silenciosos aos problemas ruidosos e entender que ambos existem e impactam sua vida, de forma direita ou indireta. Hora de repensar o seu conceito sobre o Brasil, sobre o que você quer do ambiente no qual mora e de recalcular seu foco na hora de criticar outros países.

Os problemas ruidosos são inevitáveis, eles vão chegar até você pela realidade, pela mídia, pelas redes sociais. Não tem necessidade de procurar por eles. Mas, os problemas silenciosos não. Você só tomará consciência deles se estiver atento. E é muito importante para fins de escolhas, de juízo de valor e até de noção da realidade estar ciente de todos os problemas, os ruidosos e os silenciosos.

Não permitam que os problemas ruidosos abafem os silenciosos. Esteja plenamente consciente de onde você vive.

Para dizer “Mas o Milei…”, para dizer que prefere não saber ou ainda para abrir uma nova aba e começar a clicar nas notícias de “O Brasil Tem Saída”: sally@desfavor.com

SOMIR

Mesmo com minha visão costumeiramente mais otimista sobre o futuro da humanidade, eu não fico cego para tendências negativas. Uma delas é a concentração de renda. Eu ainda não sei dizer se é terminal, mas o capitalismo com certeza está doente. Os recursos se afunilam na direção de poucos com uma velocidade incrível, muito porque nunca fomos tão produtivos.

E da mesma forma que se acumulam na mão dos mais ricos, escorrem das mãos dos mais pobres. Então, sim, existe uma explicação econômica para um aumento de pessoas em situação de rua. Mas não é a explicação que resolve o problema de um aumento de quase 1000% em uma década.

Tem mais coisa aí para acelerar essa estatística de moradores de rua. E assim como a Sally, eu acredito que a deterioração da saúde mental do brasileiro é parte integrante do processo. Discutimos sobre o quanto a “nova economia” está influenciando nisso, discordamos sobre o peso desse fator, mas eu ainda vou sustentar o ponto: o nosso sistema produtivo, isso é, a forma como produzimos bens e oferecemos serviços uns para os outros, já está mudando diante dos nossos olhos.

Robôs e inteligências artificiais já estão no processo de tornar muitos dos nossos trabalhos clássicos obsoletos. Revoluções na forma de funcionar do ser humano em larga escala não são cortes secos, não é da noite para o dia que todas as fábricas passam a usar robôs. As coisas acontecem aos poucos, de acordo com a disseminação da tecnologia e as oportunidades que se apresentam por redução de custos na sua aplicação.

A questão aqui é que a maioria de nós nem vai perceber quando nossas funções ficarem obsoletas. Apesar das estatísticas dizerem que desses novos moradores de rua da última década, apenas 30% estão nessa situação por perderem o emprego, isso não é o número final dessa mudança de paradigma. Essas são as pessoas que tinham um emprego e não conseguiram mais manter um padrão de vida mínimo.

Estatísticas de desemprego costumam falar apenas sobre pessoas que estão procurando emprego, mas existe uma massa de pessoas que desistiram e vivem ou de recursos da família ou fazendo bicos. Essa é uma parcela considerável da população. É gente que perdeu a esperança de um emprego tradicional, não tem dinheiro ou capacidade para um negócio próprio e vive perdida pelos cantos da sociedade. E o que eu enxergo aqui é que esse é o verdadeiro contingente que faz a população de rua aumentar com essa força, especialmente pós crises como a da pandemia.

O mundo está ficando mais hostil para pessoas com Q.I. e/ou motivação baixos. Existem limites práticos de quanta inteligência é necessária para realizar alguns trabalhos, e são eles que aumentam de demanda nas últimas décadas. Faz tempo que eu prevejo esse “grande abandono” dos seres humanos incapazes de acompanhar o avanço da tecnologia e seu impacto na economia, e acredito que estamos vendo os primeiros sinais disso.

O Brasil é um lugar especialmente perigoso para isso: não temos um setor industrial gigantesco como China e Índia para acomodar a massa de perdidos do mundo moderno, mas temos leis e expectativas sociais que nos colocam num patamar acima da exploração descarada do trabalho humano. Muita gente ainda funciona em países extremamente pobres porque dado um salário quase que de escravidão, o ser humano é mais barato que máquinas. No Brasil só temos isso na economia rural, onde ainda existe escravidão (não à toa, nosso setor mais produtivo). Na economia urbana é muito mais complicado acomodar gente que é incapaz de realizar funções mais complexas como a economia do século XXI exige.

E é aí que a parte da saúde mental entra com força. Drogas e problemas psicológicos são a maioria dos motivos para pessoas irem morar na rua, e eu vejo tudo muito interligado. O ser humano precisa de algum propósito, se você está bem da cabeça você acha os seus, mas se você está psicologicamente abandonado no meio de uma massa de pessoas com baixo desenvolvimento intelectual numa sociedade cada vez mais agressiva com quem não se adapta à economia tecnológica atual, faz sentido que o número de desistentes da sociedade aumente exponencialmente.

Estamos vivendo num mundo cuja tecnologia e economia estão empurrando as pessoas para uma pressão psicológica sem precedentes. De uma certa forma, o medo de passar fome, frio e ser atacado por predadores faz parte do nosso pacote básico, somos instintivamente programados para lidar com isso; mas quando a pressão evolutiva passa a ser intelectual, não temos proteção. Muita gente está se perdendo por não conseguir lidar com isso, por não sentir mais que faz parte do mundo, por não entender o que diabos está acontecendo e como é esperado de uma pessoa saber sobre tudo e ter opinião sobre todos os temas.

Esse é um problema silencioso que pega desproporcionalmente a parcela mais pobre e abandonada da população. Os números de moradores de rua aumentam ao redor do mundo, mas aumentam muito mais em países como Estados Unidos e imitadores como o Brasil. O “estágio final” do capitalismo aliado a um avanço constante das expectativas sobre a capacidade produtiva do ser humano está destruindo a mente de muitas pessoas.

E podemos ver isso em resultados práticos no aumento do número de pessoas que ficam completamente abandonadas nas ruas. É gente que perdeu propósito, ficou com a mente destruída por problemas mentais e/ou drogas, e não tem caminho de volta por falta de políticas públicas decentes de recuperação. Esse problema tende a crescer sem fazer muito alarde, até que os seres humanos “jogados no lixo” alcancem uma massa crítica de incômodo para o resto da sociedade.

Tem algo fundamentalmente errado com o sistema. Algo que vai explodir na nossa cara uma hora ou outra. Eu mantenho o otimismo que podemos dar um jeito no longo prazo, mas que é provável que passemos por muito aperto antes disso, é sim.

Minha dica de negócio do futuro: reciclagem de pessoas.

Para dizer que eu sou o otimista mais depressivo, para dizer que é culpa do político A ou B (A+B), ou mesmo para dizer que enquanto não chegar no seu condomínio está tudo bem: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Sally e Somir, o que vocês pensam sobre internação compulsória de pessoas com vícios graves em drogas, alcool incluído? A maioria dos psicólogos é contra, mas as pessoas que já tentaram trabalhar com a população de rua – e quem já esteve nesta situação – tendem a ser a favor, dizem que a partir de certo ponto não há mais discernimento para decidir.
    Eu tentei ajudar algumas pessoas em situação de rua em algumas épocas da vida e fui orientada pelos responsáveis por um abrigo a não fazer isso, por ser um risco para mim e por acabar sendo um incentivo para que permaneçam na rua ao invés de procurar um abrigo e tratamento. Não tenho expertise no assunto, então me limitei a seguir as orientações e fazer doações para abrigos sem me aproximar.

    • Paula, minha opinião é extremamente impopular: eu olho pela ótica da sociedade, não do viciado. Acho uma questão de saúde e segurança pública. Uma pessoa nesse grau de vício coloca em risco a saúde e a segurança pública, portanto, sim, tem que ser retirada as ruas. Para onde, podemos discutir (não pode ser permitido ao Estado te trancar em um lugar insalubre que piora sua saúde), mas eu acredito que sim, tem que ser retiradas do contexto social à força.

  • A prefeitura de São Francisco tem 3 funcionários só pra limpar cocô de mendigo. Já saiu por a vaga no edital?

  • De fato, a população de rua teve um boom com a piora da questão socioeconômica combinada a uma série de fatores pesando no desencaixe de tal população em condição de periclitância social. Tem o fator da idade, tem o fator dos vícios, tem o fator do desarranjo da estrutura “familiar”, tem o fator do inflacionamento do custo dos imóveis e tem ainda o fator da maior dificuldade de se inserir no famigerado “mercado de trabalho”.

    Grande parte das empresas tem apostado pesado no downsizing com vistas a reduzir custos e na medida do possível melhorar os resultados financeiros. Famílias e organizações de terceiro setor tem condições bem limitadas para dar suporte a tais pessoas que mal e mal se mantém na linha da subsistência. Por mais que os governos possam ter boas intenções e ajam pontualmente, eles tendem a passar longe de ir na raiz da problemática, até porque lidar com a questão social a sério não é tão vantajoso assim em termos de angariar votos, sendo que o circo da polarização em cima de factoides é bem mais produtivo no sentido de marcar posição no campo político.

    E no fim essa questão, por mais inconveniente que seja (e associações comerciais nos grandes centros urbanos estão em polvorosa com tal “problema”) acaba permanecendo como algo sem solução, pois quem poderia se empenhar num trabalho a sério tende a não ter recursos ou mesmo motivação para seguir na direção de uma solução adequada, sendo que quando muito se apela a soluções cosméticas que passam longe de ir na raiz da problemática e são voltadas tão somente a tentar afastar tal população de certos setores específicos de nossas cidades.

  • “(…) uma parcela minoritária dessas pessoas está nas ruas por questões financeiras, e sim por problemas de saúde mental (como doenças mentais, vício em drogas e coisas do tipo) ou problemas familiares (…)”

    Uma coisa engraçada, é que eu fiz Serviço Social. E inclusive, fiz estágio em 2011 e lidei com moradores de rua. Nos livros que estudamos no curso, apesar do ângulo da saúde mental, vícios e vínculos familiares ser abordado, os materiais davam muito mais ênfase na questão econômica (desigualdade, capitalismo, etc.)
    E quando eu fiz estágio, todos os moradores de rua tinham basicamente a mesma história: saíram de casa porque a droga, o álcool ou o crime fez com que a convivência familiar ficasse insustentável, e ou eles saíram por iniciativa própria, ou foram expulsos pela família. Na rua acabam de foder o cérebro com mais droga e corotes de pinga, até que chegam num ponto sem volta.

    • Anubian, a cidade onde passei a infância tinha vários casos famosos de pessoas em boa situação financeira que passaram a viver nas ruas por causa de vício em drogas. Uma delas era de uma família bem rica, e acabou levando a irmã para as drogas antes dos parentes desistirem de ajudar… provavelmente cuidar da saúde mental das pessoas será uma boa prevenção, mas será suficiente?
      Espero que a nossa sociedade consiga encontrar uma solução viável para este problema, porque a maioria das famílias com pessoas nessa situação acaba drenando recursos tentando salvar e não tendo sucesso.

  • O seu otimismo é perfeitamente compreensível e compartilho um pouco dele, a humanidade sempre esteve em crises. Nunca existiu A Época Ideal Pra Se Viver, ao contrário do que alguns pensam. Mas não consigo imaginar uma solução que não passe pela economia. Até mesmo medidas que não se limitem a assistencialismo precisam de dinheiro.

  • Sally e Somir, esta é mais uma daquelas postagens do Desfavor que fazem pensar e que são necessárias, por mais desagradável que o assunto seja. Vocês podem até achar que não, mas todo “problema ruidoso” que hoje nos aflige já foi, um dia, algo que passava “abaixo do radar” da maioria. Só que, quando passamos muito tempo sem percebermos ou sem nos importarmos, um problema que antes era silencioso, cedo ou tarde, acabará ficando grande demais para continuar sendo ignorado e passará a “fazer o seu barulho” todo de uma vez. E aí, quando estivermos todos “ensurdecidos” por esse problema agora desconfortavelmente escandaloso, chegaremos à triste conclusão de que já ficou tarde demais para se fazer alguma coisa.

  • Só que o Brasil não quer solução. Ele deseja permanecer exatamente igual, apenas quer que as consequências disso não existam. Esse nível de esquizofrenia não tem solução até atingir um teto de esgotar a paciência, como foi no período 2013~2018. Só que agora, nesse período pós-2022, a paciência generalizada parece que foi restaurada e todos estão com o mesmo comodismo do início do século.
    Então lá vem mais uma ou duas décadas pérdidas…

    • “Só que o Brasil não quer solução. Ele deseja permanecer exatamente igual, apenas quer que as consequências disso não existam”. Concordo com você, Anônimo. E fico muito triste por ter que concordar…

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