Presidente preso.

O sistema americano tem várias peculiaridades, e uma delas tem a ver com o fato de um candidato poder concorrer à presidência mesmo estando preso. Trump, com vários processos nas costas, um até por tentativa de golpe de Estado, foi liberado para aparecer nas cédulas e vai poder participar normalmente da eleição. Parece bizarro para a gente, mas o americano médio não liga muito. E isso tem dois motivos: um ideológico e um infelizmente bem mais prático.

Só para estabelecer a ordem das coisas: não é que eles tem uma lei que permite que uma pessoa presa possa concorrer, é que não tem nada impedindo. E isso tem mais importância do que pura semântica. A ideia por trás da Constituição dos EUA é regular o mínimo possível para se ter um Estado funcional. Evidente que quase dois séculos e meio adicionaram várias novas regras (as tais das emendas) e o Judiciário foi interpretando os inúmeros casos no meio do caminho para criar jurisprudência para casos específicos.

Mas lá na alma a coisa está uma ideia que eu acho louvável: o Estado já é falho quando tem boas intenções, imagine só se as pessoas no poder não tiverem… tem uma regra não escrita que permeia o sistema deles, a de que os EUA não podem cair na mão de tiranos, e que se isso acontecer o povo pode reverter a situação sem necessariamente trocar de Constituição.

Por isso, tem sim um motivo ideológico para que até mesmo uma pessoa indiciada, condenada e presa possa concorrer à presidência, o de que o povo pode reverter uma decisão da Justiça com a qual não concorda. Se a maioria do povo quiser que aquela pessoa presa seja presidente, ela vai ser presidente.

Se Trump for preso antes das eleições, ele pode ser eleito, e de dentro da cadeia se perdoar, saindo da cela para a Casa Branca como se nada. Como a possibilidade está relacionada com a pessoa que está, pode parecer um furo enorme nas leis deles, mas existe uma situação ideal que pouca gente considera: se o governo atual estivesse perseguindo um adversário político, como fazem ditadores não-assumidos como Maduro e Putin, o truque de colocar o adversário na cadeia não funcionaria.

Difícil saber se esse era especificamente o plano das pessoas que escreveram a Constituição americana, mas como a ideia de cadeia já existia naquela época, não me parece que simplesmente esqueceram dessa possibilidade. E como a primeira emenda ao documento foi sobre liberdade de expressão e a segunda sobre o povo poder ter armas para formar uma milícia e arrancar do poder um governo do qual não gostam, é de se imaginar uma linha guia sobre não permitir poder absoluto de um governo sobre o povo. Eles terminaram o documento, e logo depois perceberam que tinha mais o que fazer para controlar o poder do Estado.

Quer dizer que os EUA acharam um sistema perfeito? Claro que não. Tem todo o sistema de votação por delegados que é uma bagunça, não garante direitos básicos como saúde pública, não tem nenhuma proteção contra pena de morte, é cheio de problemas. O ponto deste texto não é dizer que o sistema americano está certo, é mencionar uma lógica por trás da coisa. Eu vivo dizendo aqui, mas não custa repetir: por mais estranhas que as coisas nos pareçam, sociedades já existiam há milhares e milhares de anos e as coisas não foram feitas à toa. Muita gente já se debruçou sobre os problemas da convivência humana; abençoado seja o espírito revolucionário do jovem, mas ele tem o péssimo hábito de achar que foi o primeiro a pensar no assunto.

Todas as dificuldades que surgem na nossa sociedade são difíceis por um motivo. E muitas escolhas já foram feitas para termos sistemas de governo como temos atualmente. Podemos dividir essas escolhas em basicamente duas categorias: as que privilegiam confiança no Estado e as que privilegiam confiança no cidadão. O sistema americano tem no seu espírito confiança maior no cidadão do que no Estado, o sistema brasileiro, em comparação, faz o contrário.

Escolheu-se confiar no sistema aqui. Por isso tantas restrições e o poder do Legislativo e do Judiciário de mudar as regras de acordo com o que acham certo a cada momento. Se o povo quiser fazer algo que o Estado acha uma besteira (ou incômodo), existem muito mais ferramentas de controle. Em tese, o Estado brasileiro sabe melhor do que o povo o que fazer. Você pode ver as restrições que o Brasil coloca em seus candidatos como uma forma de evitar que bandidos assumam o poder, mas também pode enxergar uma brecha para que quem já esteja no controle evite que adversários possam tirá-los de lá.

Permitir que o Estado controle a vontade do povo para evitar que façam algo estúpido ou permitir que o povo controle a vontade do Estado para evitar que abusem desse poder? Eis a questão. Eu tenho um sentimento de que se é para errar, é melhor errar dando mais liberdade para o povo fazer besteira do que permitir que tiranos se instalem. Mas eu vivo num Estado que cada vez mais prefere colocar freios em liberdades pessoais para “proteger o povo dele mesmo”. São escolhas com vantagens e desvantagens.

Permitir que um preso seja eleito presidente é arriscar uma péssima decisão do povo em troca de uma segurança contra um Estado querendo abusar do poder. Colocar limites em quem pode ganhar a eleição é arriscar abuso de poder em troca de proteger o povo de tomar uma péssima decisão. Não é tão preto e branco como você vai ver muita gente discutindo por aí, especialmente na mídia e nas redes sociais extremamente polarizadas. É uma escolha complicada que temos que fazer.

Confiar em quem? Eu já disse para que lado pendo, mas não acho nada de tão horrível quem pensa diferente, afinal, o povo faz péssimas escolhas mesmo. Escolha o seu veneno. O meu é pecar pelo excesso de liberdade, pois acho que é mais fácil corrigir problemas quando você é mais livre para pensar, discutir e agir.

Dito isso, que lindo seria o mundo se a questão americana fosse baseada nessa parte ideológica. O povão que provavelmente vai eleger o Trump independentemente do que ele seja acusado ou até mesmo condenado não está pensando nisso: são pessoas que compraram a narrativa de perseguição política e têm certeza de que estão ajudando um inocente a vencer a batalha contra um Estado opressor. Você não precisa fazer escolha entre liberdade e controle se acredita que está do lado justo.

A pessoa pode querer que o Trump vire ditador dos EUA e mesmo assim lutar contra um sistema que acha que é opressor. Ninguém é fiel à ideia de ditadura, e sim a quem vai ser o ditador. Democracia enquanto o adversário está no poder e autoritarismo na vez do aliado. E isso não é exclusividade americana, é típico do bolsonarista médio: berrando por liberdade e tratamento justo ao mesmo tempo que esperam que seu político de estimação tome o poder junto com os militares e force todo mundo a seguir as regras que ele considera certas.

A discussão que eu vivi para ver sumir é a sobre a ideia de liberdade e controle do Estado. Extremistas de esquerda e direita estão em concordância sobre as vantagens de ter um poder absolutista, só não querem que ele vá para o outro lado. Lula e Bolsonaro eram amigos de ditadores e projetos de ditadores, só mudava o grupo. Não era e não é sobre a ideia de opressão, é sobre quem oprime. Se é amigo tudo bem, se é adversário, precisamos respeitar os valores democráticos.

Como eu gostaria que nos EUA estivessem discutindo se é melhor dar mais poder para o povo ou para o Estado, porque talvez essa discussão chegasse aqui. Mas como os “líderes da democracia mundial” perderam a mão com uma divisão cada vez mais irreconciliável entre Democratas e Republicanos, isso está vazando para outras democracias. Nossos macacos de imitação estão discutindo quem deve ser o ditador, e não se deveríamos ter um ditador. É por isso que todo esse papo de defesa da democracia não parece ter profundidade… porque não tem.

Democracia é a sala de espera da ditadura. Talvez seja algo cíclico mesmo, o ser humano precisa enfiar o dedo na tomada e tomar um choque para lembrar porque não era uma boa ideia. É uma pena que tanta gente sofra nesses ciclos. Deveria ser evidente que é uma má ideia que alguém tenha poder de te prender, torturar e matar por pensar diferente, mas a primeira coisa que a pessoa pensa é “mas eu não penso diferente, eu penso certo”.

Gente mais simples da cabeça tem dificuldade mesmo com situações hipotéticas. Não adianta dizer que se o ditador mudar de ideia você pode acabar do lado errado, porque a pessoa não enxerga a possibilidade. Eu sei que essa coisa de ser incapaz de entender situações hipotéticas é uma meme racista na internet, só que eu a estendo para todas as cores como algo realista, afinal, o povo invadindo o Capitólio americano e os três poderes brasileiros era até mais branco que as médias nacionais dos países. Só precisa ter aversão ao pensamento abstrato para fazer parte desse grupo.

Um mundo mais inteligente ainda sim discutiria se é bom ou ruim o fato de uma pessoa presa poder ser eleita presidente. Esse não é o problema, na verdade, é uma discussão bem razoável sobre como dividir poder entre povo e Estado. Dá para ter uma conversa supercivilizada sobre o tema com os dois lados entendendo que o outro tem boas intenções. O que acontece na prática que é o problema: os dois lados discutindo porque não querem que seu candidato seja impedido de assumir o poder, mas tranquilos sobre a possibilidade do adversário ser impedido.

Aí não é discussão sobre como fazer o Estado funcionar da forma mais eficiente e justa, é só tentativa de tomar o poder. E pior, provavelmente sem nenhuma profundidade ou capacidade de antever os riscos dessas escolhas. E quando as coisas dão errado, lá vai o povo virar a meme do Pikachu surpreso. “Como assim eu perdi minhas liberdades depois de defender que o povo tenha menos liberdades?”.

É muito mais importante saber por que você está de um lado do que estar de um lado. Vamos ver como os americanos vão lidar com isso, porque é provável que o Brasil cometa exatamente os mesmos erros algum tempo depois.

Para dizer que é FALSA SIMETRINHA, para dizer que os americanos são gênios e estúpidos ao mesmo tempo, ou mesmo para dizer que não temos competência nem para fazer o errado direito: comente.

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Comments (4)

  • O povão que provavelmente vai eleger o Trump independentemente do que ele seja acusado ou até mesmo condenado não está pensando nisso: são pessoas que compraram a narrativa de perseguição política e têm certeza de que estão ajudando um inocente a vencer a batalha contra um Estado opressor.

    Qualquer semelhança com o caso do Lula lá por 2018 NÃO é mera coincidência.

  • Eu acredito que o que funcionaria no Brasil seria uma ditadura benevolente estilo Singapura. O cara transformou um pântano cheio de malária num tigre asiático em UMA geração.

    Agora, como chegaríamos a isso, não faço ideia.

  • “Por isso, tem sim um motivo ideológico para que até mesmo uma pessoa indiciada, condenada e presa possa concorrer à presidência, o de que o povo pode reverter uma decisão da Justiça com a qual não concorda. Se a maioria do povo quiser que aquela pessoa presa seja presidente, ela vai ser presidente”

    Ou mesmo concorrer a deputado, como ocorreu lá nas ilhas britânicas, que originaram esse motivo ideológico.

    Em 1981, três presos do IRA, em greve de fome para serem reconhecidos como presos políticos, se candidataram ao Parlamento (um na Irlanda do Norte e dois na Irlanda). O que se candidatou na Irlanda do Norte ficou como suplente, e os outros dois foram eleitos na Irlanda.

    O suplente acabou morrendo depois de 66 dias de greve de fome (não dava para esperar qualquer flexibilidade por parte da Dama de Ferro), e outro membro do IRA entrou no seu lugar.

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