Extremos climáticos.

Já que o assunto ainda está em alta, vamos falar sobre o que a natureza pode fazer no mundo em seus momentos mais furiosos. O clima é um sistema complexo que manipula forças gigantescas, várias delas além da nossa capacidade de controle, mas pelo menos em grandes escalas, não é como se não soubéssemos como lidar com isso. Não se controla a natureza, mas dá sim para saber como sair do caminho dela…

Voltando ao ângulo que puxei no Desfavor da Semana, a gente nem precisa discutir aquecimento global aqui: a chuva cai, o vento venta e as temperaturas variam de verdade, sem se importar com o que você acha que causou isso. Francamente, eu acho que é negação científica não perceber a relação entre Revolução Industrial e Globalização com aumento considerável de partículas de carbono na atmosfera, mas como a Sally bem disse, estamos na fase de contenção de danos e contenção de danos não se faz apontando dedo para culpados.

Considerando isso, o que o planeta e seu clima conseguem fazer com os minúsculos macacos pelados e suas construções?

Falando de temperaturas, a mais fria já registrada foi de -89.2ºC na Antártida, em 1983. Previsível, afinal, é um lugar que sempre está congelado, e por motivos óbvios, não costuma ser habitado. Os próximos da lista são locais igualmente previsíveis como Groenlândia, Rússia e Canada. Interessante que mesmo considerando como recentemente temos muito mais presença em lugares distantes e capacidades de análise, a maioria desses recordes de frio são bem antigos.

No sentido oposto, o recorde de altas temperaturas está nos EUA, 56.7ºC, na California em 1913. O Oriente Médio e norte da África vem em peso na sequência, com os outros recordes bem próximos em países como Irã, Israel, Iraque e Tunísia. Nessa categoria podemos enxergar uma participação bem maior de recordes nos últimos 10 anos. 2023 foi o ano mais quente (em média) já registrado, e 2024 pode bater esse recorde. Estamos numa fase mais quente, inegavelmente.

Apesar de aquecimento global não significar diretamente que todos os lugares ficam mais quentes, a média aumenta. Os lugares muito quentes vão aumentando aos poucos e puxando a linha média do planeta para cima. E qualquer aumento médio começa a mudar a forma como o ar se move e a água evapora, o que obviamente impacta chuvas e tempestades.

Chuva nada mais é do que água que evapora, sobe e assim que chega nos céus volta para a forma líquida. Como o mundo é muito mais oceano do que terra firme, evidente que essas águas contribuem e muito na quantidade de chuva que cai nas nossas terras. Oceano mais quente gera mais evaporação, e como o movimento do ar e das nuvens depende de graus diferentes de temperatura em locais diferentes, o sobe e desce deixa “buracos” que são preenchidos por ar vindo de regiões próximas.

E mesmo sem tornados, furacões e ciclones, o ar pode se movimentar rapidamente. Especialmente em lugares sem nada para parar esse vento. Na Antártida, registrou-se vento médio de 172km/h durante um dia inteiro. Alguns lugares formam corredores perfeitos de vento, muito comuns perto de montanhas, quando o ar é sugado por uma queda vertiginosa de temperatura morro acima. Nos EUA, uma montanha já registrou ventos de 372km/h. Quando adicionamos tempestades, já registramos ventos de quase 500km/h nos EUA, bem no corredor de tornados no centro do país.

Lembrando que ventos de mais ou menos uns 120km/h já derrubam um ser humano médio. 500km/h carregam carros como se fossem folhas… como o Brasil costuma construir suas casas de alvenaria, é provável que nem mesmo um furacão poderoso conseguisse derrubar a maioria das casas e prédios (mas acabaria com a cidade do mesmo jeito, só ficariam paredes de pé).

O grande perigo aqui com certeza é a chuva. E apesar das tragédias recentes, o Brasil não passa nem perto dos recordes de precipitação encontrados ao redor do mundo. Chuvas são medidas em milímetros, ou seja, quantos milímetros de água ficaria no chão caso a água não escoasse. Uma pancadinha rápida ou uma garoa geram poucos milímetros.

E como eu disse, tem toda a parte do escoamento. Ainda não tapamos toda a superfície do mundo com concreto e asfalto, então o chão consegue absorver muita dessa água, e mesmo materiais feitos por humanos para suas construções absorvem alguma água, mesmo que devagar. Além disso, água evapora, umidade do ar é basicamente isso. Alguma capacidade de lidar com chuva todos os lugares do mundo têm.

Durante um ano, caem em média 1.760mm de água no Brasil. Também conhecido como 1 metro e 76 centímetros, a altura de um homem médio. É muita água, mas se for bem espalhada e espaçada, nem percebemos. Escoa pelo solo, é levada pelos rios até o mar, evapora. E mesmo que chova bastante no Brasil, somos amadores perto de locais como a Índia, por exemplo. A barreira que as montanhas do Himalaia criam e o clima quente fazem com chuvas enormes se forme por lá, chamadas de monções.

Foi numa cidade indiana que se observou o recorde anual: mais de 26 metros de água caíram em Cherrapunji entre 1860 e 1861. Sim, mais de 26.000mm de chuva num ano. A ilha de Reunión, próxima de Madagascar na África, está numa posição perfeita para grandes chuvas, pois tem um vulcão agindo como barreira para a umidade do mar ao redor. Lá se registrou mais de 1.800mm de chuva num só dia, mais que o Brasil por ano. Nos EUA, já choveu mais de 300mm em uma hora numa cidade em 1947.

Apesar da capacidade natural de lidar com chuvas, toda região tem seus limites. Desastres acontecem quando chove muito mais que a capacidade de escoamento da água num período curto. Lugares diferentes lidam com chuvas de forma diferente.

Primeiro temos que considerar a capacidade do solo: a casquinha de terra na qual vivemos ainda sim tem vários quilômetros de profundidade, então cabe muita água lá embaixo. Tanto que existem lençóis freáticos ao redor do mundo, é provável que você encontre alguma água se cavar na maioria dos lugares. Mas aí temos que considerar a porosidade do solo.

Debaixo dos nossos pés, a terra costuma ser mais porosa, ou seja, tem mais espaço para absorver água. Quanto mais você desce, mais sólida fica a camada, primeiro pela pressão de cada vez mais terra e eventualmente porque material que não fica exposto aos elementos não sofrem erosão e continuam como as pedras enormes que são. Terra absorve muita água, pedra bem menos.

Quando chove, a terra consegue absorver uma boa quantidade de água, mas tem um limite prático: quando chove muito, a terra fica saturada e não aceita mais água. Muitas vezes é pior quando chove pouco por muitos dias seguidos do que quando chove muito de uma só vez: a terra fica saturada e começa a se parecer com uma superfície impermeável. A água que seria engolida pelo chão começa a passear livre.

Sem contar que a nossa superfície é tudo menos lisa: existem diversas variações de altura que fazem com que a gravidade concentre água em locais mais baixos. E até por isso, rios normalmente se formam em regiões de depressão, reforçadas pelo curso da água por séculos e milênios. Todo rio tem potencial de transbordar porque eles já estão no caminho mais fácil para a água escoar.

Sempre foi prático construir nossas casas e cidades nas margens dos rios, mas sempre foi um risco. O único lugar seguro contra inundação é o lugar onde a natureza não colocou água para começo de conversa. E mesmo assim, água é uma coisa dinâmica, podemos perceber isso claramente com fósseis marinhos encontrados onde hoje temos grandes placas continentais: o mundo muda sua configuração e a água sempre vai para o lugar mais baixo.

Até por isso, não é como se tivesse uma quantidade de chuva universalmente perigosa, cada região tem sua capacidade, e essa capacidade tem que ser analisada por técnicos com medições precisas e dados históricos. Uma chuva de 100mm pode ser terrível ou mal ser percebida de acordo com a estrutura do local. Agora, o que sabemos é que se a natureza estiver intocada, ela se adapta a qualquer quantidade de chuva, a coisa fica feia quando nós estamos no lugar.

No Rio Grande do Sul, a chuva acumulada nos últimos dias pelo estado passou de 300mm em geral, 400 na Capital e 700 na região das serras. É muita água sim, mas não passa nem perto dos maiores recordes de chuvas do mundo, nem em um dia nem em um mês. Várias dessas cidades estavam na rota da água, com milhares de casas em depressões naturais que a própria água criou com o passar do tempo.

E não são só os gaúchos que têm esse problema, quase todo o Brasil é construído sob a presunção que as áreas criadas pelas águas não vão ser tomadas de volta pelas águas, e com quase nenhuma estrutura para lidar com surpresas. Choveu, alagou. Como quase sempre é gente pobre que perde tudo, a mesma gente pobre que vota em quem não tem interesse em mexer nesse status quo, não chama muita atenção. Dessa vez a coisa foi tão severa que tomou as casas de gente mais endinheirada.

É prova que nem mesmo o sistema de “deixa pobre afogar ou ser soterrado” dá conta. Não adianta deixar o povo mais escuro ser oferenda para a água, porque como o projeto todo estava errado, uma hora ou outra a água vai subir além das casas deles.

O que aconteceu: uma série de chuvas fortes na região serrana aumentou a vazão dos rios que descem de lá para o mar, e nesse caminho estão grandes cidades gaúchas. Como choveu no estado todo, não só vinha um monte de água morro abaixo, como o solo estava encharcado nas partes mais baixas. A água não foi absorvida, ela continuou descendo até acumular na parte mais baixa, incapaz de escoar de vez para o mar por causa da geografia local. Enquanto a água não consegue descer, ela empoça. É a mesma lógica de só ter um furinho para esvaziar uma garrafa d’água.

Existem lugares do mundo onde chove 400mm num dia, ou mesmo em algumas horas. Quando a gente diz que não era totalmente imprevisível, é porque não era. Se você não estiver num deserto, é provável que lide com chuvas fortes eventualmente. E se o seu sistema de escoamento for baseado em torcer para a terra engolir a água e ter mais ou menos um metro de respiro antes dos rios começarem a invadir as casas, você obviamente não se preveniu.

Prevenção é feita com margens de segurança, não com esperança de chover “o normal”. Se quem mora do lado de um rio tem o mesmo preparo para inundação que eu que moro longe da água numa área alta da cidade, é evidente que tem algo errado. Percebem que a margem de segurança para um país onde chove quase 2 metros de água por ano não pode ser 40 centímetros em uma semana? Está totalmente dentro da lógica ter fenômenos do tipo.

A crítica não é ao povo gaúcho que tomou uma enchente na cabeça até mesmo onde nunca tinha visto enchente, é a quem é pago, e bem pago, para ter essa noção. O próprio fato de muita gente ter achado bobagem o aviso e ficado em casa demonstra como a informação que a estrutura das cidades não era capaz de lidar com grandes chuvas sequer chegava na cabeça do cidadão médio. Achavam que era problema de quem ia morar em lugares que inundavam todo ano.

É o hábito de esperar dar errado para resolver. Deu errado, morreram mais de 100 pessoas até o fechamento deste texto. E o desastre só vai aumentar nos próximos dias, com mais desaparecidos sendo declarados como vítimas fatais e o com a destruição que só vai ser vista de verdade quando a água descer. O que pode demorar vários dias: o solo continua encharcado e a água não tem para onde ir.

Chuva nunca é imprevisível, porque, novamente, se você não está no Atacama, você sabe que vai chover uma hora ou outra. E média de chuva não é uma promessa da natureza: as condições mudam rapidamente, especialmente agora que temos temperaturas médias mais altas nos oceanos. Pensar no pior caso possível é o que salva vidas em lugares mais bem organizados como Japão e EUA. Não é só olhar a média e achar que não passa muito disso, é olhar para a região e imaginar como a coisa pode dar errado. As chuvas no RS foram grandes, mas foi a estrutura das cidades montada pelo poder público por preguiça, incompetência, corrupção ou omissão que gerou o desastre.

A natureza só fez o que faz há bilhões de anos: empurrou água morro abaixo com a gravidade. O resto é problema nosso.

Para dizer que estou culpando as vítimas, para dizer que já está ficando meio cansado do tema (azar), ou mesmo para dizer que aquecimento global não existe (é mensurável, anta, se quiser discutir a causa se divirta, mas o aumento de temperatura existe): comente.

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Comments (6)

    • Pelo amor de Deus, temos um texto desmentindo isso.
      O ser humano merdou os suficiente para não precisar botar a culpa em mais nada!
      Vamos assumir nossas escolhas? Não precisa de teoria da conspiração para justificar o que está acontecendo!

  • Começou a circular um vídeo em redes sociais alegando que o governo sabia da possibilidade dessas chuvas extremas há quase dez anos, graças a um relatório climático encomendado pelo Governo Dilma e engavetado igualmente pelo Governo Dilma por ser considerado alarmista. Não duvido, mas não li o relatório e não posso afirmar ser verdade sem nenhuma dúvida. Mesmo se for uma mentira completa, entre o desastre do ano passado e o de agora tinha um tempinho pra preparar alguma contenção de danos…
    Eu espero que os gaúchos cobrem o governo por esse sistema incessantemente. Tem tantos projetos e tecnologias disponíveis agora, não faz sentido nenhum fingir que tudo foi uma fatalidade imprevista…

    • Tem que ter uma cobrança em cadeia: para o Governo Federal liberar verba para prevenção (liberam muito pouco, liberam muito mais para contenção, depois que a desgraça aconteceu) e cobrança local para que esse dinheiro seja de fato bem gasto com medidas que possam impedir esse tipo de tragédia. O que nos leva a uma pergunta: algum estado ou cidade brasileira tem um corpo técnico capaz de pensar, criar e executar essas medidas? Nos locais nos quais eu morei, te garanto que não tem. Não é apenas sobre ter a ideia, é sobre conseguir executá-la bem com uma mão de obra tenebrosa. Tá tudo errado, tá tudo tão errado que dá desespero.

      • Sallyta, será que precisamos de um prodígio de engenharia para pelo menos mitigar danos?
        Minha pequena e tosca cidade mineira tem enchentes todos os anos no verão. Entre ano passado e março deste ano, tivemos vários dias seguidos com chuvas de mais 100mm. Houve sim áreas inundadas, mas ninguém morreu e as perdas foram pontuais. Isso tudo porque quatro anos atrás, quando tivemos três enchentes muito feias em dois meses, a prefeitura aproveitou a quarentena para fazer algumas obras de prevenção. Prometeram muito mais do que entregaram sim, prometeram limpar o rio e tratar o esgoto também. Não fizeram tudo isso, o rio continua fedendo, ainda tem gente morando em áreas irregulares mas terminaram a obra e ninguém nunca mais perdeu a moradia ou o negócio por causa da água. Tem vários comércios que ficam quase na beira do rio, e mesmo que ele tenha de fato transbordado esse ano, conseguiram alertar e se organizar para salvar muita coisa.
        Sim, foi feito nas coxas e Minas tem um relevo que facilita lidar com inundações, mas ainda foi suficiente para que a dimensão das perdas fosse muito menor e ninguém precisasse morrer. O Brasil vai acabar tendo de começar por aí, e pelo que tenho visto do RS, a própria população tomou a iniciativa em alguns lugares…

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