Des Contos: O canal.

PARTE 1: SINTONIA

Vale do Silício, Califórnia, EUA:

Mesmo com um elevado número de cadeiras vazias na sala de imprensa da sede Commtech, o porta-voz da empresa não dava o braço a torcer e continuava falando sobre as maravilhas possíveis com a nova tecnologia desenvolvida.

PORTA-VOZ: É com muito orgulho que apresentamos o Sistema Commtech-Q de transmissão de dados. Baseado numa tecnologia patenteada de emissão de sinais Q, até um milhão de vezes mais eficiente que a transmissão por ondas de rádio, o sistema Commtech-Q é capaz de transmitir através de virtualmente qualquer material, em velocidades e quantidades muito maiores até mesmo que a fibra ótica!

Uma grande tela desce do alto do palco, adornada com o logotipo da empresa e do sistema. Logo após a imagem corta para um homem de jaleco branco, o fundo está escurecido, mas pode-se perceber paredes rochosas

PORTA-VOZ: O nosso cientista-chefe, o Dr. Johnson, vai nos explicar ao vivo um pouco mais sobre as possibilidades desta tecnologia. Doutor, onde você está neste momento?

DR. JOHNSON: Bom dia a todos aí na Califórnia! Eu estou falando diretamente do poço número 3 da mina TauTona, na África do Sul! Essa mina de ouro é a mais profunda do planeta. Estou debaixo de quase quatro quilômetros de rochas!

PORTA-VOZ: Uau! Duas milhas e meia debaixo da terra… Em outro continente… E transmitindo em alta definição sem nenhum problema?

DR. JOHNSON: A transmissão pelos sinais Q, patenteada pela Commtech, é capaz de vencer esses desafios com extrema facilidade. E podem guardar as algemas, não violamos nenhuma das leis da física!

PORTA-VOZ: Ha ha ha! Mas temos mais uma surpresa, vamos passar agora para mais uma pessoa usando o Sistema Commtech-Q, vocês conseguem adivinhar aonde? Vamos lá! *apontando para a tela*

A imagem na tela embaralha por um ou dois segundos, apresentando uma mulher flutuando no que parece ser um dos compartimentos da Estação Espacial Internacional, ela sorri e acena.

ASTRONAUTA: Bom dia! Meu nome é Suni… *estática*

A imagem do telão volta a ficar embaralhada. O porta-voz da empresa, visivelmente constrangido, tenta por panos quentes na situação.

PORTA-VOZ: He he… Tecnologia de ponta… Percalços são inevitáveis. Nossa equipe técnica está sintonizando novamente para retomar o contato com a Estação Espacial Internacional. Enquanto isso, gostaria de reforçar o compromisso da Commtech… *música*

Os jornalistas voltam sua atenção para o telão, visivelmente surpresos. O porta-voz acompanha o interesse da platéia, voltando-se para a transmissão na tela.

Caracteres estranhos giram pela tela até se posicionar de forma a lembrar um logotipo, atrás desses caracteres, um fundo azulado com uma arte que lembra um mapa-múndi, mas com os continentes totalmente diferentes dos habituais.

A cena corta para uma bancada cenográfica, ao fundo o logotipo de antes, estilizado. Mas o que mais impressiona são os dois seres sentados atrás da bancada: Humanóides de pele azulada e rostos mais próximos de um anfíbio do que de um primata. Um deles, o maior, emite um som estranho, gutural sem parecer ameaçador.

O corte seguinte o coloca num plano mais aproximado, deixando o outro ser fora de cena. Numa estrutura cênica típica de telejornais, uma animação traz ao seu lado esquerdo uma montagem de diversas imagens, a maioria de difícil compreensão. O ser começa a emitir mais sons parecidos com o inicial, como se estivesse lendo uma pauta.

PORTA-VOZ: É…

REPÓRTER: Hahahah! Boa! Boa! O sistema é tão bom que pega até TV de outros planetas, né?

Boa parte dos presentes começa a rir, alguns com menos convicção. Outros parecem irritados. O porta-voz, por sua vez, continua com olhar confuso. Ele olha para os lados, esperando alguma explicação do time técnico. Vários dos funcionários da empresa saem de trás do palco e começam a observar a tela, atônitos.

Um dos repórteres, mais idoso, se levanta, expressão fechada e dedo em riste:

REPÓRTER IDOSO: Isso é um absurdo! Se alguém estivesse transmitindo isso ao vivo, poderia gerar pânico! Eu trabalho com jornalismo há mais de trinta anos e não aceito fazer parte de brincadeiras infan…

A cena na tela corta mais uma vez. Agora parece uma cena externa. Outro dos seres azulados está em frente a uma curiosa construção arredondada, ao fundo pode se perceber um horizonte urbano, com diversas réplicas da construção em foco, e além de tudo, um céu esverdeado pontuado por enormes e densas nuvens.

REPÓRTER: Nossa… vocês se dedicaram mesmo, hein? Deve ter custado uma nota… *nervoso*

O porta-voz se aproxima de um dos técnicos.

PORTA-VOZ: Isso foi ideia de quem?

TÉCNICO: Ninguém. Só produzimos três transmissores, um está na África do Sul, um está na Estação Espacial e o terceiro está lacrado no cofre do subsolo. O receptor não pega nenhum outro tipo de sinal… Seja o que isso for, não é a gente.

Alguns repórteres começam a se entreolhar, como se realizassem o que estava acontecendo ali. Em questão de segundos, estão ligando desesperados para as redações de seus jornais, agências e televisões. Os funcionários da Commtech não fazem a menor menção de cortar a transmissão.

PARTE 2: POP-STAR

A maior parte das dúvidas sobre a veracidade das cenas capturadas pelo receptor da Commtech acabam dirimidas após o primeiro dia de transmissão completo, devidamente repassado para todos os meios de comunicação terrestres. Boa parte do mundo para para assistir a programação do que aparentemente era um canal de notícias alienígena.

A humanidade parece fascinada pelo material, em questão de poucos dias, a internet está tomada por milhões de análises e estudos sobre a cultura do planeta de onde se originava aquela transmissão. Como o canal parece intercalar boletins de notícias com documentários, uma quantidade incrível de informações pode ser teorizada pelas curiosas mentes humanas. A tecnologia de lá parecia similar com o nosso próprio estágio de evolução, com uma aparente vantagem na área de comunicação.

Nunca tanta gente prestou atenção em um canal de notícias. Muita gente aprendeu mais sobre a fisiologia, história e cultura dos fibians – apelido popularizado pela mídia – do que sobre a própria.

A partir de uma animação computadorizada num provável documentário sobre o espaço, astrônomos conseguem depreender uma provável localização do planeta. Na órbita de Alfa Centauri A, estrela a pouco mais de quatro anos-luz de distância da Terra. Isso significava um atraso compatível entre os sinais recebidos e seus envios originais.

A quebra da patente do Sistema Commtech-Q tornou os receptores economicamente viáveis para o consumo em massa. Mais e mais canais eram descobertos por curiosos, exibindo cada vez mais similaridades entre a mídia fibian e a terrestre. Canais de notícias, esportes, entretenimento e até mesmo alguns que provavelmente seriam proibidos para menores… A reprodução com fertilização externa acabou se tornando fetiche para muitos humanos.

Os transmissores, contanto, ficaram sob estrito controle das autoridades americanas. Embora nada sugerisse que os fibians fossem uma ameaça, ou sequer capazes de nos alcançar, havia a preocupação de que humanos irresponsáveis estragassem nosso primeiro contato com uma civilização alienígena.

Porque era apenas questão de tempo. Quatro anos e quatro meses a partir da primeira transmissão pelo sistema Q na frequência que eles usavam, para ser mais preciso. Além, é claro, de mais quatro anos e quatro meses para receber a reação dos alienígenas. A primeira mensagem oficial foi enviada seis meses depois da primeira recepção, chancelada pela ONU e apresentada por doze líderes mundiais. Era basicamente um guia rápido sobre a Terra, sua localização e uma declaração de interesse na troca de conhecimento. E graças à dedicação incrível de inúmeros linguistas profissionais e amadores, a mensagem pode até ser enviada com legendas numa das “línguas locais” mais comuns às transmissões fibianas.

PARTE 3: CÂMBIO

Três anos após o envio da primeira mensagem, a humanidade já havia adicionado os fibians ao seu cotidiano. Jornais e revistas foram criados apenas para comentar sobre a sociedade fibiana, milhões de pessoas consumiam os filmes e músicas transmitidas pelos nossos vizinhos cósmicos. Muitos aprendiam os idiomas de lá. Cursos foram abertos em inúmeras universidades para formar especialistas inclusive na fauna e flora do planeta. Até mesmo algumas das religiões alienígenas encontraram seguidores entre os humanos. Passando por cima de diferenças fisiológicas, os fibians eram uma cultura extremamente compatível com a nossa.

Até por isso milhões sentaram-se em frente às suas tevês para acompanhar um assunto que ganhava cada vez mais destaque nas emissoras fibianas: Uma doença altamente contagiosa e fatal que se espalhava em ritmo assustador pelo planeta. A melhor tradução para línguas humanas definia a condição como Peste Bolhosa. A pele lisa e úmida dos azulados fibianos enchia-se de pústulas arroxeadas, seus órgãos internos se liquefaziam, drenando quase que completamente a água de seus corpos. Especialistas humanos sugeriam que por causa da fisiologia dos alienígenas, desidratação era para eles algo extremamente mais perigoso do que para nós.

A cada dia mais e mais casos eram confirmados. A doença era tão agressiva e contagiosa que a sociedade local começava a desmoronar por conta do pânico e diminuição acentuada da população. Estimava-se dois bilhões de fibianos no momento em que as primeiras transmissões chegaram à Terra. Segundo os cada vez mais raros canais disponíveis no planeta deles, os números já estavam reduzidos a menos de um bilhão um ano depois do pandemia.

Dois meses depois, as transmissões deram lugar a boletins emergenciais orientando os sobreviventes. Dez dias depois, estática. Apenas estática. O número de pessoas deprimidas e suicídios cresceu exponencialmente na Terra. A mídia chamava de Depressão Fibiana. Vários especialistas tentavam conter os danos dizendo que o fim das transmissões não significava o fim dos fibianos, e que assim que eles se organizassem novamente recomeçariam a se comunicar.

A estática se manteve por mais alguns meses. A maioria dos cálculos estimava que a transmissão que a Terra mandou para Fibian (nome oficial a este ponto) estaria a poucos dias de alcançar seu destino. Pouca gente parecia interessada em acompanhar os canais vazios tanto tempo depois do término das transmissões, até por isso boa parte da humanidade precisou acompanhar aquela cena posteriormente pela internet e pelos nossos canais de tevê.

Mais ou menos às dez horas da manhã do dia em que a mensagem deveria ser recebida por lá, a estática cedeu para uma imagem borrada, onde se podia ver movimentação ao fundo, com o céu esverdeado característico de Fibian. Com o que parecia ser uma correção de foco, surgiu a imagem de inúmeros corpos de fibianos jogados às ruas de uma grande cidade. O que mais chamou a atenção, contanto, foram seres diferentes, também humanóides, mas de pele acinzentada. Esses seres carregavam os corpos dos fibianos para fora da imagem.

A câmera se vira, mostrando uma iluminação avermelhada primeiro, e depois uma enorme pilha de corpos sendo queimados. Um deles se aproxima da câmera, com um aparelho em mãos e emite alguns sons que não lembram nenhuma língua fibiana ou humana. A transmissão começa a embaralhar. Alguns segundos depois, a figura reconhecível do ex-presidente dos EUA aparece saudando o povo fibiano. Era a mensagem. Ela durava meia hora e terminava com um “mapa estelar” determinando a posição da Terra em relação à Fibian. A imagem embaralha novamente e cede à estática.

Alguns dias depois, a mídia ainda fala exaustivamente da transmissão, parando apenas para noticiar novos casos de uma doença desconhecida que se espalha pela Ásia.

FIM

Para dizer que não entende porque eu me dou ao trabalho, para reclamar que meus textos causam depressão fibiana, ou mesmo para perguntar em qual canal está passando a fertilização externa: somir@desfavor.com

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