Desfavor Convidado: Kitsune Chenson.

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Desfavor Convidado é a coluna onde os impopulares ganham voz aqui na República Impopular. Se você quiser também ter seu texto publicado por aqui, basta enviar para desfavor@desfavor.com.
O Somir se reserva ao direito de implicar com os textos e não publicá-los. Sally promete interceder por vocês.

Série Jornalismo Literário: Kitsune Chenson.

Esqueçam o glamour ou o romantismo que há sobre o jornalismo, pois ao contrário do que se mostra nos filmes, normalmente o jornalista ganha mal, trabalha muito e nem sempre possui auxílio técnico do jornal onde trabalha. Trabalhar na área jornalística nos dias de hoje é complicado, ainda mais com a internet falindo grandes meios de comunicação. Por isso, muitos profissionais acabaram debandando para trabalhos menos bem vistos pelos colegas de comunicação. Um desses trabalhos inglórios é o de Ghost-Writer, onde o escritor oferece seu dom literário para pessoas que não possuem tanta habilidade com a escrita.

Apesar de ser bem remunerado, o “escritor fantasma” (tradução do nome em inglês) normalmente abre mão de seus direitos autorais e ou de ter seu nome publicado na capa do livro. Como jornalista é um ser narcisista, esses simples fatos transformam o trabalho de Ghost-Writer motivo de chacota aqui no Brasil (mas é muito respeitado em outros países). Com as dificuldades financeiras atuais esse pensamento está mudando, já que cada vez mais jornalistas são obrigados a sambar conforme a música, mas é muito triste ter que escrever a biografia de subcelebridades e ver o nome delas na capa e não o do verdadeiro escritor.

No Brasil, Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, foi Ghost-Writer de D. Pedro I, e a ex-prostituta Bruna Surfistinha serviu-se da escrita de Jorge Tarquino para a formatação do best-seller “O Doce Veneno do Escorpião – O Diário de uma Garota de Programa”. Já eu servirei de Ghost-Writer da minha esposa Kitsune Chenson, que possui uma linda história de superação e fé em Deus. Tenho muito orgulho dela ter me escolhido como seu companheiro na vida e agora como seu escritor fantasma. Espero que gostem.

III

Foi num sábado que o nosso fusca novo chegou, mas logo reparamos na cor amarronzada que ele possuía. “Parece cor de bosta”, comentei, mas mesmo assim eu estava muito feliz com a nova aquisição. Na época morávamos em Sousas, um distrito de Campinas e o carro ajudaria bastante no nosso dia a dia.

Porém, outro fator fez com que meu pai comprasse aquele carro: era o plano Collor. Com medo de que o banco pegasse suas economias, ele tratou de comprar o automóvel, um luxo que poucas pessoas podiam ter naquela época.

Naquele dia minha tia passou em casa e pegamos um ônibus para a casa da minha avó, que naquela época morava em Hortolândia. Durante a ida, pedi para passar embaixo da roleta: “Pode passar, com o carro novo que vocês compraram, pode ser que essa seja a última vez que você anda de ônibus mesmo”. Mal sabia ela o poder que aquelas palavras tinham sobre o meu destino.

Chegando na casa da vovó, os mais velhos ficaram conversando na sala, já eu aproveitei para brincar com minha irmã, mas ela ainda era muito novinha para me acompanhar nas brincadeiras. Então fiquei correndo no quintal e caí, ralando o meu joelho. Parei de correr e fiquei amuada em um cantinho, mas sem chorar. Fiquei assim até irmos embora.

Voltamos para casa e eu já tinha me esquecido do pequeno acidente quando meu pai quis dar uma volta com o carro e lá vamos nós novamente. Naquele dia havia muito trânsito na pista que liga Sousas até Campinas, o que forçou meu pai seguir por um longo caminho antes que pudesse fazer um retorno.

Quando voltávamos, algo aconteceu. Meu pai descia com o carro na banguela e um movimento em falso, uma distração, não sei, fez ele perder o controle do carro e acabamos capotando. Nada aconteceu com minha família, mas eu fui arremessada do carro e bati com a cabeça no meio da pista. A partir deste momento fiquei inconsciente, mas me falaram depois que minha irmã ficava gritando “Tata! Tata!” enquanto as pessoas tentavam me socorrer.

Fui encaminhada para o Mário Gatti, um hospital especializado em traumas e atendimento de emergência, mas eles não puderam me ajudar. Então me reencaminharam para a Casa de Saúde para tirar Raio X, mas comecei a ter uma parada respiratória e eles acharam melhor esperar antes de fazer novos exames, pois naquele momento os médicos achavam que eu ia morrer.

Fiquei em coma por cinco dias e nesse período os médicos detectaram uma lesão na minha coluna. Para amenizar a lesão, eles retiraram uma parte do osso da minha perna e fizeram um enxerto na minha coluna, colocaram também uma haste para segurá-la reta e engessaram todo o meu tronco. Um erro que resultaria na minha primeira escara, uma ferida que afeta a parte interna da pele e pode atingir músculos, articulações e ossos, causando necrose. Se não for tratada adequadamente, a escara pode matar por infecção.

Quando voltei do coma, me senti perdida no meio daquele monte de equipamentos de UTI. Eu não sabia onde estava e nem o que tinha acontecido. Para piorar, ninguém da minha família estava ali para me ajudar. Comecei a observar ao meu redor e tinha um moço do meu lado que estava tendo um piripaque. As enfermeiras tentaram reanimá-lo, mas ele acabou morrendo.

O tempo lá parecia que não passava, as noites eram longas e só de vez em quando aparecia alguém para medir meus sinais vitais. Quando tentavam falar comigo, eu não conseguia responder, pois estava ainda muito fraca. Com o tempo comecei a tentar mexer minha mão, meu pé, mas ainda não tinha noção do que tinha acontecido. Na minha cabeça eu estava ali por causa de uma crise de bronquite.

No dia seguinte meus pais foram me visitar, mas eles não podiam entrar na UTI, então só pude vê-los através de uma porta. Meu pai acenou para mim e tentei corresponder, mas mal consegui levantar meu braço. Eles foram embora e depois de um tempo chegou uma médica. Ela se apresentou e era muito bonita, bem arrumada e cheirosa. Ela me disse que logo sairia dali e iria para um leito.

Os dias foram passando e eu continuava tocando meu corpo. Foi quando percebi que meu tronco estava engessado e que eu não podia sentir minhas pernas. Perguntei para a Dra o que tinha acontecido e ela me respondeu que eu havia sofrido um acidente e que estava ali em observação para me recuperar.

Minha irmã também estava internada e ela não parava de me chamar, chamou tanto que os médicos tiveram que levar ela até mim. Ela também tinha batido a cabeça e feito um machucado no rosto, mas nada de grave havia acontecido com ela. Quando ela me viu, ficou mais aliviada por saber que eu estava viva.

Depois de nove dias na UTI fui encaminhada para o quarto e tive que fazer vários exames, transfusões de sangue e finalmente comecei a receber visitas das pessoas que queriam me ver. Descobri que no meu bairro haviam feito uma corrente de oração e todo mundo que me visitava acabava levando algum presente para passar o tempo.

Eu ficava dizendo que ia sair daquele hospital dançando alegre e contente, mas a minha tia, aquela mesma que havia me levado de ônibus para a casa da minha avó, me falou: “Você sofreu um grave acidente e ainda está em observação, por isso pode ser ainda que demore um pouco para você voltar a andar”. Naquela hora dei de ombros, afinal de contas estava viva e conversando com as pessoas que eu gostava.

Depois de duas semanas no hospital, finalmente voltei para casa e continuei recebendo várias visitas. As opiniões dos visitantes sobre minha condição se dividiam em duas principais linhas de raciocínio: “Força, você vai superar isso” ou “Você nunca mais será uma pessoa normal novamente”.

Essas duas formas de pensar me fizeram refletir: Ou eu aceitava aquele acidente como um golpe do destino e simplesmente baixava a cabeça para a vida ou me adaptava aquela nova condição física e mostrava para as pessoas que eu não havia me tornado uma inválida.

Se estou aqui, firme e forte até os dias de hoje, é por que preferi me adaptar e evoluir. Continuei estudando, consegui um bom emprego e hoje tenho minha família graças a minha força de vontade. É engraçado lembrar quantas pessoas me olharam nesse meio tempo e pensaram que eu sou um vaso frágil por ser cadeirante, mas quem passa pelo que eu passei sabe que vaso ruim não quebra.

A maior lição que eu tirei do acidente foi que grande parte das pessoas não querem ser tratadas como coitadas, mas sim com respeito, independente de sua condição física, financeira, religiosa, amorosa, etc. Digo isso porque hoje em dia as pessoas possuem consciência das dificuldades que um deficiente possui, mas mesmo assim elas simplesmente não se importam com isso.

Perdi a conta de quantas vezes vi pessoas estacionarem em vaga de cadeirante sem necessidade ou por pura preguiça de andar alguns metros a mais. Quando vejo cenas assim, me lembro de um texto que li onde o autor falava que o difícil é ser normal, já que todo mundo é um deficiente em potencial.

Concordo plenamente com essa ideia, mas a maioria das pessoas acham que estão acima de Deus e que coisas assim nunca irão acontecer com elas. Eu posso afirmar que elas estão erradas! Uma simples falha no organismo ou um acidente inesperado podem mudar suas vidas para sempre. Por isso, sempre respeitem o próximo e curtam cada segundo precioso de suas vidas.

Enfim, sempre que tiver vontade, passe embaixo da roleta, pois essa pode ser a última vez que você faça isso.

Nota do autor: Conheci a Kitsune pela internet com a ajuda de um amigo meu e aos poucos nossas afinidades foi virando amor. Na verdade, meu maior trunfo durante a conquista foi fazer cantadas sem graça e cantar músicas do Wando pra ela.

Nosso primeiro encontro foi no cinema e confesso que eu não sabia absolutamente nada sobre cadeirantes. Fiquei na dúvida se devia ajudar a empurrar a cadeira, segurá-la no colo durante a passagem para a poltrona do cinema e outros pequenos detalhes.

No final das contas, quem conduziu o encontro foi ela e agradeço até hoje por isso. Se tudo tivesse ficado sob o meu controle, a ida ao cinema seria um desastre total já que eu sou um estabanado por natureza.

Chester Chenson

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Comments (20)

  • Lembrei agora que sua esposa há anos atrás veio falar comigo no Orkut pensando que eu era o Somir… Não sei porquê.

    De todas as deficiências, a que mais me causa medo é a cegueira. Olha, só esse ano eu já assisti há 252 filmes, vejo 36 seriados… penso que seria horrível.

    (Nunca mais ver peitos e vaginas também me causa medo…)

  • Parabéns para sua esposa, Chester. Por toda a força que ela tem!

    E para você por aceitar sua condição, amando-a independente disso.

  • Parabéns por essa estória, ou melhor, por sua história, Chester. Faz pensar em quem realmente é limitado nessa vida…

  • Resumo da história: Se comprou um carro mais ou menos (um Fusca) por conta do clima de medo gerado pelo Plano Collor. A Kitsune devia de ser criança mais ou menos tipo eu e acabou se acidentando provavelmente por não estar de cinto. Por conta do acidente, teve fratura na coluna e hoje é cadeirante.

    Vamos pensar que há males que vem para o bem… Morando em Campinas, se não tivesse acontecido isso, talvez ela tivesse sido um dos alvos do assédio de algum “Alicate tem, né?” da vida.

  • Chester, vc é um cara romântico.
    Sem querer ser sentimentalóide e muito menos religioso, mas não e à toa que dizem que “Deus” dá as pessoas o que elas conseguem superar. Se fosse comigo com certeza eu já teria me matado, por muito menos até às vezes já penso em morrer.
    Vc é o cara!

    • assim como respondi pra sally, digo o mesmo pra vc: provavelmente vc nao se mataria….

      todas as pessoas no mundo possuem problemas e pela probabilidade muitas delas possuem os mesmos problemas que vc, independente de qual seja esse problema….

      se formos ao passado, veremos esses mesmos problemas e no futuro eles continuarão existindo. as vezes achamos que temos exclusividade na dor e nos problemas, mas isso é coisa da nossa cabeça, pois tem muita gente por aí passando os maiores perrengues de cabeça erguida…..

      porém, se mesmo assim vc achar que está sozinho diante de um problema, procure ajuda com pessoas que passem pela mesma situação: os famosos grupos de auto ajuda. como são pessoas que passam por uma mesma situação, talvez vc consiga resolver seus problemas vendo a situação pelos olhos de outras pessoas…. ou algo assim

      um abraço

  • Manda parabéns para sua esposa, porque eu, no lugar dela, certamente teria desistido de viver e pedido para o Somir me levar ao veterinário e me botar para dormir…

    • eu duvido muito que vc faria isso mesmo….
      a gente costuma potencializar a dor, mas depois que passamos por ela, vemos que havíamos feito tempestade em copo d’água….
      o que aconteceu com a kitsune foi forte e demorou muito tempo para ela se acostumar com a situação, mas isso deixou ela mais forte e firme em suas decisões e na vida….
      é como diz aquele ditado: cada um recebe o frio conforme o cobertor….

      • Não acho justo esse ditado. Nem esse nem “Deus só nos dá uma cruz que podemos carregar”. Se fosse verdade, ninguém se suicidaria. Fica parecendo que a pessoa se fodeu por ser forte, sabe? “Ah, você é bem forte, toma aí uma cegueira porque VOCÊ aguenta”. Passa a mensagem de que ser fraco é melhor porque você não vai se foder tanto, sei lá, acho meio cruel esse ditado.

        Sua esposa tem mérito sim, porque não é todo mundo que passa por isso que se acostuma, que consegue reconstruir a vida de forma plena. Eu, por exemplo, te garanto que não sobreviveria tempo o suficiente para perceber que pode haver uma vida com estas limitações. Eu optaria por não viver em uma cadeira de rodas, eu nem mesmo tentaria. Então, mais uma vez, parabéns para ela de não ser mimadinha como eu sou e conseguir contornar limitações. E parabéns para você por também não se deixar assustar por elas.

      • Não diria “cada um recebe o frio conforme o cobertor”, mas sim que limitações podem te levar a outras oportunidades, caso você demonstre disposição a se reinventar, tal qual vem demonstrando Fernando Fernandes. Não fosse o acidente, muito provavelmente seria mais um ex-BBB esquecido por aí, morto de fome, e não alguém que está mudando a história da canoagem…

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