Melhores Momentos: Desfavorã Explica: A primeira missa.

Raios!

Recuperamos hoje uma postagem da Semana Temática do Descobrimento. Sally faz o papel da índia Sallerê, nativa tupiniquim encontrando-se com os conquistadores portugueses pela primeira vez. Não pode ser tão ofensivo assim… pode?
Data Original da Postagem: 30 de Agosto de 2011

O desfavor teve acesso a um material de valor histórico inestimável: Cópias de cartas datadas da época do descobrimento do Brasil. Várias delas assinadas por um ilustre desconhecido que assina como Tiago de Somir, aparentemente um dos tripulantes da esquadra de Pedro Álvares Cabral. Mas o que realmente chama a atenção é a transcrição de material criado por uma nativa chamada Sallerê. Todos os textos foram atualizados e/ou traduzidos na medida do possível para a divulgação.

SALLERÊ

Desfavorã, 27 de abril de 1500

Cacique PapaPilha,

É a presente para cientificá-lo de que na data de ontem participei de um ritual estranho organizado pelo povo sujo e burro que desembarcou em nossas terras. Contarei desde o começo o ocorrido para sua apreciação.

Tudo começou quando caminhava pela floresta para alimentar nossos papagaios oferecendo-lhes seu prato favorito, a Kumba, mistura de diversas sementes. Foi quando observei uma movimentação estranha no litoral, maior do que a habitual. Os homens sujos estavam desembarcando diversos pertences e pareciam estar preparando algum ritual. Aproximei-me, por curiosidade, antes mesmo de alimentar as aves. Quando me viram, começaram a dizer palavras que, ao que pude entender, eram ordens para realizar trabalhos.

Continuei olhando inerte. Achei ingrato que os tenhamos acolhido em nossas terras e ainda por cima sejamos obrigados a trabalhar para montar a tribo deles. Não movi uma palha e pude sentir o ar de desprezo deles por isso. Gritaram comigo algumas vezes e me mantive imóvel, até que desistiram e continuaram sozinhos. Nós não lhes pedimos ajuda com nossos afazeres, porque eles se sentem neste direito? Bastante preguiçosos, não acha? Além de tudo burros, pois começaram a trabalhar em um momento em que uma grande tempestade estava por vir. Eles só prestam atenção em si mesmos, não percebem nada em seu entorno.

Em um primeiro momento, achei que estavam preparando uma festa ou uma homenagem ao povo de Desfavorã, afinal, permitimos que usem nossas terras com hospitalidade, nada mais justo. Mas posteriormente percebi que se tratava de um ritual particular deles, por sinal muito cansativo e sem propósito. Tudo começou quando cravaram na areia um tronco de árvore esculpido em uma área decorada para o evento (decoração de péssimo gosto, diga-se de passagem) e começaram a se reunir em torno dele. Fizeram sinais para que me junte a eles e eu cometi o erro de aceitar, acreditando que me fariam uma homenagem. Foram as horas mais desinteressantes e sem propósito da minha vida. Alguns companheiros Desfavorãs foram chegando e se juntarando a mim. Observamos o ritual dos homens sujos e burros.

Um deles, que capitaneava a cerimônia, apareceu trajando um roupa estranha, branca, com um objeto nas mãos. O objeto representava um homem coberto de sangue preso a um tronco de árvore pelas mãos. De imediato percebi a falta de veracidade. Nós sabemos muito bem ser impossível afixar alguém pelas mãos em um tronco, pois estas não suportam o peso do corpo, sendo o correto afixar pelos punhos, como fazemos quando assamos os membros das tribos inimigas. A credibilidade do evento já começou a ruir a partir daquela imagem. Outros homens trajando as mesmas vestes brancas se juntaram a ele e começaram as pregações.

Todos se reuniram em torno dos homens de branco, aparentando um interesse inicial. Foi quando o homem de branco começou a falar. Ele usava outro idioma diferente do que era falado pelos homens burros e sujos. Os ouvintes não pareciam entender e muitos deles adormeceram durante o evento. Sinceramente, não entendo o objetivo de um evento onde a platéia não compreende o que está sendo dito. Em determinado momento, todos se levantaram e levantaram as mãos. Acompanhei-os, por questão de educação e todos me olharam maravilhados. Um povo simplório e fácil de agradar, basta reproduzir seus rituais de fácil execução. Quando eles se sentaram, sentei-me novamente.

Curiosamente os aborígenes sujos e burros pareciam ter muito respeito pelo homem que conduzia a cerimônia. Era este mesmo homem que eu presenciei fazendo sexo com o Capitão da embarcação dentro da selva, conforme narrado na última carta. Talvez por isso ele trajasse vestes típicas das mulheres daquela tribo. Sei que são vestes femininas pois vi diversas em reproduções pintadas que me foram mostradas. Eram vestes destinadas exclusivamente a mulheres! Creio eu que na carência de mulheres na embarcação ele desempenha o papel de mulher. Achei versátil. Acho pertinente contar que hoje pela manhã, também presenciei este mesmo homem de saias fazendo sexo com uma capivara às margens de nossa cachoeira. Eles são bem versáteis.

Em determinado momento da cerimônia, todos se ajoelharam no chão. Neste momento achei que aquilo já havia passado dos limites. Eu e três companheiros estávamos ali por horas e não havia sido oferecida nenhuma comida ou bebida e o evento estava monótono a ponto dos próprios colegas dos organizadores dormirem. Nos entreolhamos e começamos a debochar: ajoelhamos, levantamos as mãos, gritamos. Todos olharam maravilhados. Sua inteligência rudimentar não lhes permitiu perceber que estávamos ridicularizando seu ritual.

Quando acreditamos que estaríamos livres para sair, o homem de branco que substitui as mulheres para fins sexuais voltou a falar. O mais curioso era a reação de seus colegas: alguns dormiam, outros faziam trabalhos manuais como afiar facas ou esculpir madeira e outros conversavam entre si. Ora, se evento não despertou curiosidade nem mesmo daqueles que estavam familiarizados com ele, como poderia despertar a nossa curiosidade? Por pouco não tivemos um surto de má educação e saímos no meio daquela palhaçada, afinal, ainda teríamos que alimentar os pássaros e a tempestade parecia cada vez mais próxima.

Para minha surpresa, o ritual terminou sem que ocorra nenhum sacrifício, nenhuma dança, nenhuma votação. Nada. O evento não tinha razão de ser. Ninguém foi nomeado, destituído e não ocorreu nenhum ato significativo que justifique uma festa ou rito de passagem. Aparentemente todos se reúnem para ouvir o nativo que faz sexo com capivaras dizer algo, que nem ao menos interessante parecia, porque boa parte deles não compreendeu e não se manteve atento ao que era dito. Ao final, o homem vestido de mulher que faz sexo com outros homens passou um recipiente de pano, onde todos depositavam metais. Ao que pareceu, aqueles metais eram valiosos para eles. Ou seja, promovem uma cerimônia sem qualquer objetivo ou atrativo e ainda cobram por ela! Um povo bastante estranho.

Também não compreendi porque todos nos olham com espanto, sobretudo para nossos corpos descobertos, se o elemento de adoração deles, fincado naquele tronco, também se encontra praticamente nu. Adoram uma figura nua porém se cobrem e se espantam com a nudez. Não há coerência. Talvez o homem de branco que faz sexo com outros homens estivesse fazendo um discurso para convencer seu povo a se libertar destas vestes e de tanta repressão, afinal, um homem que faz sexo com pessoas e animais no meio da floresta e se veste com roupas femininas deve ter um pensamento livre, ao menos esta seria a linha coerente de raciocínio. Espero que ele consiga convencer seus seguidores a serem mais flexíveis e abertos como ele.

Para piorar, ao final ofereceram a um por um algum tipo de alimento, embebido em um líquido de cor escura. Os homens sujos e burros fizeram fila e o homem de vestes femininas os alimentava, um a um, com aquilo. Em que pese meu desejo de ser educada, recusei-me a comer, pois poucas horas antes, como disse, havia flagrado o homem de vestes brancas fazendo sexo com uma capivara na floresta e introduzindo seu dedo em um orifício nada higiênico da do animal. Não nos sentimos tentados a comer alimentos provenientes daquela mão. Impressionante como eles não tem a menor noção de higiene. Ao perceber que a qualquer momento a tempestade se iniciaria, nos levantamos em direção à floresta.

Quando nos viram saindo, os homens sujos e burros gritaram conosco apontando para todo o material do evento e para as embarcações, como se quisessem ajuda para a transportar seus pertences. Rimos. Somos livres e não fazemos a tarefa dos outros, ainda mais quando havia uma tempestade se aproximando. Cada qual tem a sua tarefa e cada qual que a execute. Um tanto quanto preguiçosos estes visitantes. Sempre que podem tentam nos empurrar suas tarefas! Em nossas festas, nós cuidamos da decoração sem pedir ajuda aos convidados, pois sabemos que isto seria rude. Esses selvagens tem muito a aprender em matéria de educação e higiene.

Olhavam intrigados para o grande prato de grãos que eu carregava. Falavam sobre ele, apontavam com curiosidade. Decidi me explicar, na tentativa de passar um pouco de nossa cultura para eles. Disse o nome do prato, para ver se eles aprendiam: “Kumba”. Todos ficaram olhando. Eu repeti: “KUM-BA!” e coloquei no chão, no local onde habitualmente alimentamos os papagaios. Eles pareciam não entender, então, resolvi apontar para o alto, para o topo de uma árvore onde se encontravam os papagaios e repeti o nome “kumba” apontando para cima diversas vezes, na tentativa de mostrar que era alimento para as aves. Foi quando finalmente começou a cair uma tempestade com raios e trovões.

A cena que se seguiu foi ridícula. Os homens sujos e burros imediatamente associaram a tempestade ao prato de comida, apontavam para o prato, para os céus e gritavam e corriam de medo. Ora, bastava olhar para os céus horas antes para saber que uma tempestade se aproximava. E bastava ser racional para saber que um prato de comida no chão não tem qualquer poder sobrenatural. Mas eles não entendiam nada, e ao não entender, em vez de estudar e buscar conhecimento, divinizavam. Espero que com o tempo estes homens sujos e burros acabem entendendo que uma tigela de comida no chão não pode causar mal a ninguém, apenas um homem pode causar mal a outro homem. É tão difícil perceber isso?

Em menos de uma noite o ocorrido virou mito. Hoje pela manhã vi um grupo deles andando nas proximidades do prato de comida. Quando perceberam que estavam próximos ao prato, começaram a gritar “Uma kumba! Uma kumba!” e desviaram seu caminho, com medo de passar próximos a um inocente prato cheio de sementes. Sinceramente, talvez seja hora de expulsá-los de nossas terras. Sua burrice está tornando o convívio insuportável. Sem contar que cada vez mais deles estão chegando. Devemos agir enquanto somos maioria.

Depois de presenciar tanta covardia e ignorância, desisti dos forasteiros e me dirigi à Tribo dos Carijós para realizar meu relatório diário destinado a orientar nossa invasão. Continuo afirmando que será muito fácil invadi-los, pois são desunidos e despreparados. Seu cacique Ti Xã, como sempre, encontrava-se repousando. Os outros membros discutiam entre si de forma agressiva. Ao que tudo indica, amanhã haverá uma competição importante naquela tribo, que acabará gerando a expulsão de um dos membros. Sinceramente, espero que a mulher seja expulsa da tribo. Ela é quase tão chata quanto a cerimônia que presenciamos hoje.

A fragilidade da tribo é tanta que o seu índio mais jovem, que deveria ser o mais destemido e ousado, se assustou com alguns ruídos da selva e se recusou a apagar sua tocha para dormir. Também se recusou a proteger mulheres da tribo que aparentavam medo, alegando que não era homem. Ele disse “Não tem nenhum homem aqui”. Talvez ele seja convidado para vestir a roupa feminina preta e pregar aos nossos visitantes burros e sujos, pois ele seria uma boa mulher. Observarei se ele faz sexo com capivaras para verificar se atende aos requisitos.

Curioso é que, mesmo depois de ter proferido que não era homem, o mesmo índio se desentendeu com um dos patriarcas da tribo e bateu no próprio peito afirmando que era homem e manifestando seu desejo de embate corporal. Vale lembrar foi este mesmo índio que solicitou a expulsão de uma índia da tribo porque esta o teria agredido. Desculpe, Cacique Papapilha, se meu relato aparenta contradições, mas esta tribo dos Carijós não tem a menor coerência. Fica impossível depreender qualquer padrão de comportamento ou de pensamento. A única certeza é a de que eles estão se matando entre si e isto só irá prejudicá-los.

Apesar da invasão ser fácil, sinto-me no dever de informar que as condições da aldeia são precárias. Em função da incompetência dos índios, a mesma se encontra suja e mal cuidada. Além disto, no caso de invasão, sugiro que os índios sejam destinados à alimentação de nossa aldeia, pois não é possível uma convivência pacífica com os Carijós e estes jamais se adaptariam a nossos costumes. A exceção seria o cacique Ti Xã, que por sua sabedoria poderia ser mantido entre nós. Já presenciei belíssimos rituais de dança e canto comandados por ele e ficaria honrada em participar de um deles.

A inaptidão dos aborígenes Carijós é notória. No trato com um animal de grande porte, uma das índias foi mordida nas costelas. Em matéria de higiene eles também são precários: além de manter as instalações da aldeia imundas, ainda tem o hábito de urinar no mesmo local onde dormem e guardam seus pertences. Não há como adaptar criaturas tão rústicas ao nosso convívio. Além disso brigam entre si todos os dias, se ofendem, fazem ruídos altos. Vivem em um ciclo doentio de ofensas, perdão e mais ofensas. Por isso, sugiro que o cacique Ti Xã seja mantido prisioneiro para nosso aprimoramento musical e os demais sejam servidos em uma refeição.

Acredito que na grande disputa de poder que será realizada amanhã teremos mais indícios para avaliar a melhor estratégia de invasão. Aguarde por mais relatos.

Novamente reitero que estou realizando diversas tarefas sozinha. A situação prossegue a mesma. O índio Urinã Piá continua desaparecido e não me auxilia em nada. A situação beira o insustentável. Solicito com urgência auxílio em minhas tarefas e recomendo que seja traçado plano para retirar os homens sujos e burros de nossas terras. Com todo o respeito que lhe devo, informo que se não forem adotadas providências em breve não será possível prosseguir com meu trabalho.

Sallerê

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