Des Contos: Meu bem.

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O despertador do celular começa a tocar. Tamara deixa escapar um longo suspiro, o corpo ainda anestesiado pelo sono. Por mais que disposição matinal nunca tenha sido seu forte, sente uma dificuldade maior que a habitual em se desvencilhar dos lençóis. O banho, o café da manhã e seus outros rituais do começo do dia também vem acompanhados dessa letargia incomum. A conta vem em forma de atraso, e por consequência a perda da carona diária até o trabalho.

Não são mais do que cinco quarteirões até a estação de metrô mais próxima, trajeto consideravelmente mais complicado com as roupas e os sapatos de trabalho. Enquanto Tamara negocia sua passagem pelas irregulares calçadas de sua vizinhança, o celular começa a tocar.

TAMARA: Bom dia, Paula!
PAULA:Bom dia nada! Por que você não veio para a reunião?
TAMARA: Com o pessoal da matriz? Não é hoje?
PAULA:Foi ontem! Você me deixou na mão, tive que apresentar tudo sozinha…
TAMARA: Desculpa! Eu jurava que era hoje… Ontem eu fiquei atualizando os relatórios de vendas justamente para apresentar!
PAULA:On…

O salto de Tamara enrosca numa pedra solta, tirando o apoio de sua perna direita e lançando-a de forma atabalhoada em direção a um poste. No esforço para se manter em pé, o telefone paga o preço. Arremessado ao chão, tela apagada e rachada pelo impacto. Tamara recobra o equilíbrio e recupera o aparelho, não sem antes confirmar rapidamente se haviam testemunhas presentes. Para sua sorte, não era o caso: Seu prédio ficava numa rua acanhada no centro da cidade onde nem mesmo o comércio tinha interesse de se manter. No lugar, dezenas de prédios habitacionais que eclipsavam qualquer tentativa do Sol de encontrar o asfalto. Rua deserta e escura como de costume.

Atrasada e quatro quadras restantes com um celular quebrado e um tornozelo dolorido pareciam problema o suficiente. O homem estranho que acabara de sair de uma viela próxima comprovava que suficiente ainda não era o bastante. Impossibilitada de acelerar o passo e melindrosa sobre manter contato visual por mais que algumas frações de segundo, Tamara prestava mais atenção nos sons dos passos que a seguiam do que em qualquer outra coisa. Tamara enxerga a esquina: outra rua deserta. A cadência do homem parecia um pouco maior do que a dela, mas nada alarmante.

Até que o som torna-se alarmante. Os passos que a acompanhavam ficam mais pesados e rápidos. Ela se volta para a direção do homem, ele tem pele clara e compleição avantajada. Vestido com roupas discretas e casuais, olhos escondidos por óculos escuros e nítida intenção de abordá-la. Tamara tenta correr, a dor do tornozelo anestesiada pela adrenalina. Não é o suficiente.

Ela sente o tranco em suas costas. Antes mesmo que o ar consiga escapar de seus pulmões em forma de grito desesperado, a mão do homem recobre sua boca. O outro braço a envolve – braços inclusos – suas tentativas de escapar inutilizadas pela considerável força de seu agressor. Tamara sente o pânico percorrendo o corpo assim que se percebe indefesa contra a tentativa dele de arrastá-la no sentido oposto de seu destino. Ele a arrasta por alguns metros até uma van estacionada na própria rua. Ela pode sentir a respiração dele próxima de seus ouvidos:

HOMEM: Se quiser ficar viva, não grite.

Tamara mal consegue raciocinar sobre os prós e os contras de pedir socorro naquela situação e já está com uma fita adesiva colada por sobre a boca. Ela se sente fraca, grogue e confusa antes mesmo de ser vendada. Tanto que os minutos seguintes parecem apenas um borrão em sua mente. Sente os braços e pernas imobilizados, sente o movimento do carro, mas já não consegue mais fazer sentido de sua situação. Sua consciência finalmente cede.

VOZ: Oi?

Com alguma dificuldade, Tamara abre os olhos. A vista ainda borrada não a permite compreender a cena. Ela volta a sentir seus membros, apenas para perceber que continuava presa.

VOZ: Se estiver com vontade de vomitar, avisa!

A voz reaviva seus sentidos. O homem que a raptara estava a sua frente, corpo inclinado e dedo indicador tocando seu rosto. Com um movimento brusco, Tamara não só demonstra seu protesto contra o toque do estranho como também visualiza melhor o lugar onde está. Uma sala mal iluminada por uma lâmpada pendurada do teto por fios, paredes de concreto aparente e nenhuma janela. Com exceção da poltrona onde se vê presa por amarras de couro, nenhum outro móvel ou elemento decorativo. Há um balde próximo aos pés do homem à sua frente.

TAMARA: Por favor, me solta… Eu não conto pra ninguém…

As lágrimas que acompanham a fala são tão reais quanto o enjôo que se segue. A tosse seca e o movimento brusco do pescoço são o gatilho para a reação do homem, que rapidamente coloca o balde no colo de Tamara com uma mão e segura seus cabelos com a outra. Tudo a tempo de conter o retorno do café da manhã de Tamara. Ela vomita algumas vezes, respirando com dificuldade. Quando finalmente parece retomar um pouco do fôlego e da cor, o homem coloca o balde no chão e tira um lenço do bolso com o qual limpa cuidadosamente a boca dela.

HOMEM: Efeito colateral do remédio, mas não se preocupe que você vai ficar bem. Vou pegar uma água, espera…
TAMARA: O que que você me deu?

O homem ignora a pergunta e sai pela única porta do recinto. Tamara começa a gritar por socorro na ausência de seu captor. Pouco menos de um minuto se passa até que ele retorne com um copo d’água em mãos.

HOMEM: Não adianta gritar, é tudo isolado por aqui. E vai fazer mal para sua garganta. Toma um pouco d’água para tirar o gosto ruim da boca…

Ele tenta virar o copo na boca de Tamara, que se recusa a engolir. O que não escorre pelos cantos da boca acaba cuspido de forma violenta de volta no corpo dele. Depois de um suspiro frustrado, ele começa a tentar se secar.

TAMARA: O que você vai fazer comigo?
HOMEM: Te fazer esperar aqui nessa sala por 24 horas… bom, agora 21 horas.
TAMARA: Hã?
HOMEM: Nem vale a pena explicar. Você vai acabar me achando ainda mais maluco e vai ficar assustada à toa. A única coisa que vai acontecer aqui é você ficar sentada até o sol nascer de novo.
TAMARA: Você é maluco?
HOMEM: Olha, no meu ramo não existe isso de ação sem reação. E acredite, você é uma das sortudas. Antigamente vocês morriam!
TAMARA: Me solta, por favor. Você não é uma pessoa ruim, não precisa fazer isso…
HOMEM: Se eu te soltar, você morre. Vai soar estranho, mas eu estou te salvando.
TAMARA: Você acha que me conhece, mas não conhece… Seja lá o que você acha que está fazendo, não está me ajudando. Me solta, por favor.
HOMEM: Eu nem tenho liberdade para te soltar. O que aconteceu com você é culpa minha e eu sou obrigado por lei a garantir que você não saia do fluxo.
TAMARA: Fluxo?
HOMEM: Essa é a parte onde você vai me chamar de maluco… mas vamos ficar aqui por mais várias horas, conversar não vai ser tão ruim.
TAMARA:
HOMEM: Ok… o fluxo é um apelido que damos na minha área para a relação de causalidade entre os multiversos. Mais fácil de falar. De forma resumida… Existem várias realidade paralelas e todas elas dependem de um certo equilíbrio para coexistir. Pessoas como eu trabalham mantendo esse equilíbrio.
TAMARA: E o que isso tem a ver comigo?
HOMEM: Pois bem… digamos que algo ou alguém cruze a multimembrana para se aproveitar de uma condição mais favorável em outra realidade. Algumas estão bilhões de anos mais avançadas que esta, por exemplo.
TAMARA: *olhar choroso e desesperançado*
HOMEM: Eu te juro que não sou maluco. Toda vez que eu ou um dos meus tem que entrar num universo paralelo para expulsar um invasor, criamos um desequilíbrio no fluxo. Um desequilíbrio pelo qual infelizmente um dos habitantes originais acaba pagando a conta! Eu entrei neste aqui e você acabou sendo deslocada vinte e quatro horas para o futuro.
TAMARA: Não estou entendendo nada. Eu juro que não vou contar para ninguém o que aconteceu…
HOMEM: Pode contar à vontade, além de ninguém acreditar, ainda vão ter que cruzar a multimembrana e me procurar num dos virtualmente infinitos universos paralelos. E pelo o que eu já vi dessa realidade aqui, ainda tem uns bons dois ou três milhões de anos até vocês ou um dos outros povos inteligentes daqui desenvolverem a tecnologia.
TAMARA: Que remédio você me deu? Eu ainda estou enjoada.
HOMEM: Ah, é para evitar que sua consciência desligue antes de você voltar a ficar sincronizada com o fluxo. Efeito colateral… mas melhor do que a outra opção. Grandes coisas colocar você de volta morta! Quer dizer, pro universo em si dá no mesmo, mas eu não quero ter isso na minha consciência.
TAMARA: Se você não quer me fazer mal, por que eu estou presa?
HOMEM: Porque você não acreditou em uma palavra do eu disse e tentaria fugir. Você ficando presa evita que eu tenha que te ameaçar de qualquer forma. Desnecessário, não? Juro que tentei explicar para o primeiro que salvei, mas ainda mais nessas realidades atrasadas é quase impossível que acreditem.
TAMARA: Eu estou… cansada… sono.
HOMEM: … Olha… se você prometer ficar quieta, eu trago um colchão para cá e você descansa um pouco.
TAMARA: Eu prometo.
HOMEM: Tá bom. Espera um pouco.

O homem sai pela porta novamente e dessa vez retorna empurrando um colchão. Pega ainda um travesseiro e um lençol, dispondo-os de forma cuidadosa num dos cantos da sala. Segue até Tamara e solta as amarras. Ela não faz menção de reagir. Escorada nos braços do homem, ela se move até o colchão, onde deita e pega no sono em questão de segundos.

O despertador do celular começa a tocar. Tamara deixa escapar um longo suspiro, o corpo ainda anestesiado pelo sono…

Para dizer que eu já fiz esse final antes, para dizer que não foi bem esse o final que eu fiz antes, ou mesmo para dizer que ainda sim se sente sujo(a) por ler o texto: somir@desfavor.com

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