Um dia comum.

Landrof tamborilava os dedos de uma mão sobre o volante, a outra vacilante sobre pressionar ou não a buzina. Os conquistadores mongóis estavam há quase vinte minutos ininterruptos atravessando a pista. Pensava seriamente sobre a proposta do candidato do Partido Canibal sugerindo faixas exclusivas para invasores estrangeiros.

No carro ao lado, olhares cúmplices de outro homem receoso de chamar atenção de Khan e sua gangue montada. O congestionamento que se formara atrás de seu carro parecia pactuar com o silêncio respeitoso. Dezenas de metros de carros, cavalos e dinossauros de montaria esperando pacientemente pela sua chance de cruzar as ruas de São Pedro.

Landrof estava atrasado para o futebol com os amigos. Não que eles fossem se ressentir por meia hora sem sua companhia, mas o último a chegar dificilmente encontraria cervejas das marcas boas no isopor. Ao ver o grupo de guerreiros finalmente reduzir-se a uma anêmica fila de retardatários, ele religa o motor e atravessa o mar de estrume ao qual reduzia-se agora a larga avenida.

Isso agora era problema dos ciborgues do Ministério de Limpeza de Avenidas. Landrof segue por mais alguns minutos até chegar ao estacionamento da quadra de futebol, no octogésimo andar do Edifício Esportivo. Dá um trocado para um dos enormes ratos da máfia dos flanelinhas verticais e segue apressado para o elevador.

Já lá dentro, escolhe o 36º andar. Um leve salto inicia o movimento do elevador. Landrof suspira ao se lembrar que deixara sua sacola com o uniforme no carro. Aperta o botão do andar mais próximo seguidas vezes, até que subitamente as luzes se apagam e o movimento é interrompido.

Logo a escuridão é vencida por uma luz cegante. Os seus olhos tem imensa dificuldade de se adaptar, mas atravessando o incômodo em suas córneas surge a imagem borrada de um ser humanóide, pele esverdeada, feições pouco distinguíveis. Landrof não consegue se mexer, seus movimentos impossibilitados por algo parecido com uma espessa geléia transparente recobrindo todo o corpo.

O ser que enxerga parece estar do outro lado de um vidro. Veste o que se pode entender por um jaleco branco e definitivamente anota algo em uma prancheta. De forma muito abafada, consegue ouvir os sons vindos dele: uma mistura de grunhidos e cliques vindos de trás de seus brancos e cerrados dentes expostos.

Sentindo o desespero da impotência, força todos seus músculos na tentativa de se desvencilhar do que quer que estivesse prendendo-lhe. Seus gritos não vão muito longe. Ainda prestando atenção no ser que tomava notas de seu esforço, percebe a chegada de um segundo, visualmente parecido até nas vestimentas. Ambos parecem discutir algo em sua língua estranha.

Tudo volta a ficar escuro. Landrof se vê novamente no elevador, portas abertas no 53° andar, prestes a se fechar novamente. Ele estica o braço, impedindo o fechamento. Depois de pensar por alguns segundos, recolhe o membro e decide continuar a viagem até o andar desejado. Perguntava-se se tinha sido tudo apenas uma alucinação, opção que acaba aceitando quando finalmente encontra-se com seus amigos na quadra de futebol.

Tarzan, chimpanzé que conhecia desde seus quinze anos de idade, é o primeiro a notar sua chegada. Ele dependura-se sobre o alambrado, acenando a última taça de cerveja de qualidade da noite. O Barão também acabara de chegar, seu avião estacionado há poucos metros de distância do grupo. Landrof resigna-se e pega uma das cervejas vagabundas, oferecendo uma para o piloto germânico e começando um tímido aquecimento para a próxima partida.

Para piorar, o último a chegar também era obrigado a jogar no gol. Apesar das inúmeras reclamações do grupo, Goro, o único ser com quatro braços do grupo, preferia mesmo era jogar no ataque. Landrof veste as luvas e posiciona-se debaixo das traves. Os jogadores de ambos os times se espalham pela quadra, o cavalo falante dá o pontapé inicial.

Depois de alguns minutos de péssimo espetáculo esportivo, a bola finalmente se aproxima da meta defendida por Landrof. Tarzan corria com auxílio dos longos braços, segurando a bola com seus hábeis pés. Totalmente livre, o chimpanzé dispara um chute, ou melhor, um arremesso de difícil defesa mesmo que o goleiro não fosse um preguiçoso e desmotivado humano esperando sua chance de jogar na linha.

Prevendo a futilidade da tentativa de defesa, Landrof desiste do movimento e desvia sua atenção da bola para uma teatral reclamação com sua defesa. A distração não o faz perceber a curva da bola e sua perigosa nova direção. A pancada em cheio, bem no meio de sua cara, não deixa o erro passar impune. Landrof cai desacordado imediatamente.

A escuridão cede lentamente. A luz que invade seus olhos continua incômoda, seu corpo continua limitado pela gosma, os dois seres esverdeados continuam observando-o. Agora, com os rostos colados no vidro que separa Landrof dos estranhos.

O desespero recomeça. Mas a cada espasmo muscular, as coisas vão ficando mais fáceis: a substância ao seu redor vai liquefazendo-se lentamente. Os sons da fala alienígena que escuta vão ficando cada vez mais fortes. Os poucos minutos feitos de eternidade pelo esforço terminam com o líquido escorrendo por ralos no que agora percebe ser um tubo.

O corpo sofre para se acostumar com o ar novamente, mas cada tragada de ar traz alívio para seus pulmões. A frente do tubo se abre, deixando o ar gelado do exterior entrar em contato com seu corpo nu.

LANDROF: GASP! COFF! …éisso?

SER DE PELE VERDE: *ininteligível*

LANDROF: Coff… onde… estou?

O estranho humanóide é alto e esguio. Parece ter a pele recoberta de pequenas escamas esverdeadas, os olhos esbugalhados chamam atenção num rosto quase sem outras características. Outro logo se aproxima, ambos trocando sons incompreensíveis. Landrof recolhe-se a uma posição fetal no chão, misto de fadiga muscular e frio. Um dos seres acocora-se ao seu lado e coloca alguma coisa em seu ouvido.

SER DE PELE VERDE: Uí u uá?

LANDROF: Hã?

SER DE PELE VERDE: uá iá… human dialect? The device is not recognizing yours… wait….

SER DE PELE VERDE: Acho que agora foi! Foi?

LANDROF: Estou com… com frio…

SER DE PELE VERDE: Ah, que cabeça a minha! Veste isso.

Os dois se juntam para vestir Landrof, que não esboça muita reação. Colocado numa cadeira, começa a perceber seus arredores: algo parecido com um laboratório abandonado. Paredes rachadas, uma enorme quantidade de vidro e papéis jogados no chão, prateleiras e mesas metálicas carcomidas pela ferrugem. O que mais chama atenção são os grandes tubos num dos cantos, amontoados. Todos abertos e vazios.

SER DE PELE VERDE: Eu sou Loc Fwizz, ele é Clac Cez. Você é Leandro, certo?

LANDROF: Landrof… o que está acontecendo aqui? Eu estava jogando bola…

LOC: Aonde?

CLAC: Não, é uma expressão. Acredito que ele esteja falando da simulação.

LANDROF: Eu desmaiei com aquela bolada?

LOC: Está ficando tarde, nosso horário já deu aqui. Boa sorte, viu?

CLAC: Onde você pensa que vai?

LOC: Para casa. Terminamos o trabalho!

CLAC: Tem um vivo!

LOC: Clac, minha mulher está botando ovos. Ela vai me comer vivo se eu chegar tarde.

CLAC: Ela vai fazer isso de qualquer jeito em alguns ciclos!

LOC: Ei! A família dela parou com isso há muito tempo.

CLAC: Bah… vai logo. Acabamos de descobrir uma espécie nova e você quer ir para casa, você não merece mesmo ficar aqui.

LANDROF: Oi?

CLAC: Você deve ter muitas dúvidas. Por onde eu começo?

LOC: Tchau!

CLAC: Loc!

LOC: Tchaaau!

CLAC: Você acredita nisso? Ele não era assim antes de acasalar…

LANDROF: Minhas memórias… elas estão…

CLAC: Ficando confusas, né? Antes de te desligar do suporte eu recuperei as primeiras simulações antes de começar a dar defeito. Seu cérebro deve estar reorganizando tudo agora.

LEANDRO: Meu nome… Leandro.

CLAC: Isso é o que diz na ficha. Ok… bem vindo ao… futuro. Você passou… deixa eu ver… sete milhões de anos em suspensão. Uau…

LEANDRO: Argh! O que está acontecendo? Você é… verde!

CLAC: Efeito colateral. Sua tolerância ao estranho está diminuindo rapidamente agora que suas memórias não são mais um monte de bugs do computador que te mantinha vivo. Imagino as loucuras que um sistema desses rodando por tanto tempo deve ter criado.

LEANDRO: Você… você é um médico?

CLAC: Na verdade… eu trabalho limpando estações abandonadas.

LEANDRO: O jaleco?

CLAC: Ah, nós encontramos perto da entrada. Faz frio aqui.

LEANDRO: A prancheta?

CLAC: Anotando os itens encontrados.

LEANDRO: Onde eu estou?

CLAC: Numa estação abandonada dos cinzas orbitando a quarta lua de Posilion Sete. Você deve ter sido capturado por eles no passado e trazido para cá. Afinal, os safados faziam isso com todas as espécies que encontravam… ainda bem que eles não vão incomodar mais ninguém… Ah, o seu tubo estava escondido atrás de uma parede desabada, milagrosamente ainda ligada no reator central.

LEANDRO: Eu lembro de estar numa estrada… na Terra.

CLAC: Cuidado, tenta não ficar lembrando de muita coisa agora, pode sobrecarregar seu cérebro.

LEANDRO: Eu lembro de uma luz… ARGH!

Com uma forte pontada na cabeça, a consciência de Landrof cede mais uma vez. Passados alguns segundos, seus olhos se abrem lentamente.

TARZAN: Você está bem, cara?

FIM

Para dizer que nem drogas explicam mais essas coisas que eu escrevo, para dizer que detesta esperar mongol atravessar rua, ou mesmo para dizer que não duvida que eu fiz tudo só pela piada anterior: somir@desfavor.com

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