Direito de luxo.

A Justiça Argentina concedeu habeas-corpus para um orangotango. Nossos hermanos julgaram procedente o argumento que um animal tão parecido com o ser humano tem sim alguns direitos análogos aos humanos. O animal vai ser ‘solto’ do zoológico e pode ser enviado para uma reserva ambiental brasileira. A notícia me deixou contente, mas provavelmente não pelos motivos que vocês estão pensando.

Já que estamos falando de animais, que mencionemos o elefante na sala: bicho não é gente. As pessoas tendem a humanizar demais os animais pelos quais tem simpatia (o mundo acaba antes de existir uma entidade protetora das baratas…) e isso gera tremendos absurdos como a Peta e similares. Gastam-se bilhões com animais de estimação e boa parte da humanidade ainda passa fome.

Não acho saudável alimentar essa fantasia de que animais tem exatamente os mesmos direitos que os seres humanos, tem muito maluco por aí que quer soltar todos os animais do mundo e forçar a humanidade a se tornar vegetariana. Gente que mataria por esse ideal! O desejável é que esses doentes tenham o mínimo de apoio possível e uma notícia dessas me faz temer pelo incentivo que pode gerar.

Mas eu só queria passar por esse ponto, na verdade o que me alegra com uma notícia dessas não é a suposta liberdade do bicho (muito embora eu seja contra zoológicos), mas o ‘luxo’ que é chegarmos num ponto da nossa história onde dá para pensar até mesmo num grau de direitos mais abrangente para nossos primos primatas.

Claro que ainda existem questões mais urgentes ainda sem resposta nesse mundo, mas nosso desenvolvimento nunca foi lá muito simétrico. Vamos avançando a discussão sobre alguns temas enquanto outros continuam abandonados. Os direitos que conquistamos sempre foram luxos de alguma sociedade mais ou menos estabilizada que finalmente teve tempo de resolver o problema.

Falamos de um orangotango agora, mas já se tratou os direitos das mulheres da mesma forma. Sempre foi um problema tratá-las como objetos e não como seres humanos, em algumas partes do mundo ainda é (favor diferenciar escravidão de cantada de mau gosto na rua como duas categorias BEM distintas de sofrimento). No século passado, finalmente a humanidade teve a disposição para mexer a bunda e começar a corrigir seus erros históricos.

Cuidado para não achar que eu estou comparando o caso do orangotango com o das mulheres na amplitude dos direitos que merecem, e sim em como em ambos os casos era impensável levá-los em consideração até finalmente acontecer. Ainda bem que pelo menos respeitamos a ordem devida das coisas e começamos a lidar com os direitos delas antes!

Avanços no entendimento de quem merece direitos acontecem em momentos favoráveis da história humana. Sociedades com menos problemas urgentes acabam gerando as discussões necessárias para colocar nosso senso de justiça em prática. Como justiça é uma fabricação humana sem obrigação alguma de ser repetida na ordem natural das coisas, depende de nós fazê-la funcionar.

Na natureza, o animal mais forte faz o que bem entender com o mais fraco. O direito natural de fazer orangotangos de gato e sapato nós temos desde que nos tornamos a espécie dominante (pelo menos na escala macroscópica). O grau de poder que temos sobre os outros animais deste planeta é incrível. Nenhuma outra espécie fará frente à humana.

Os animais são o espólio de nossa guerra evolutiva. Um até merecido prêmio pela capacidade incrível de adaptação e desenvolvimento. No processo de ganhar esse mundo, não tivemos muito tempo para pensar em algo além dos benefícios gerados por chegar ao topo da cadeia alimentar. A vida continuava sendo muito difícil.

Com o avanço da sociedade humana, fomos nos tornando cada vez menos brutalizados. A capacidade de pensamento abstrato acurada que temos atualmente não se encontrava inclusive em antepassados recentes. Estamos ficando mais… moles. Mas isso é uma coisa boa! Isso é resultado da excelência em controlar o mundo. Estamos tão adaptados que a vida humana nunca foi tão fácil.

Segurança, alimentação, transporte, comunicação, entretenimento… tudo mais fácil do que nunca. Acertamos uma logística de vida extremamente favorável à nossa espécie. Não é à toa que vivemos numa era onde se pleiteia direitos de todos os tipos e parece que todo mundo ficou muito mais frágil emocionalmente: a vida cotidiana do século XXI gera muito menos calos.

Estamos nos dando o luxo de pensar no impensável: será que o orangotango fica triste se estiver preso num zoológico? E se ficar, ele tem o direito de ser feliz? Muita gente se diverte vendo o bicho enjaulado, muita gente ganha o seu sustento através disso… mas será que devemos abrir mão do nosso direito natural de exploração?

Como o animal não vai nos contar de uma forma inequívoca o que pensa do assunto, não podemos nem ter certeza se ele quer mesmo sair do zoológico. Talvez o que consideremos depressão pelo encarceramento seja um ser sem ter muito o que fazer e aceitando isso. Como definir um orangotango feliz?

O que eu acho: presumo que o animal esteja ‘programado’ para viver uma vida específica e seja melhor para ele deixar que se aproxime o máximo desse objetivo, afinal, ele não tem muito mais o que fazer da vida senão seguir seus instintos. Mas, também, não é como se ele tivesse a complexidade necessária para entender encarceramento como punição. Eu soltaria o orangotango por achar zoológicos uma babaquice desnecessária, e só por isso. Jamais soltaria uma vaca, por exemplo.

Primatas do tipo são realmente muito parecidos com o ser humano. É possível até que suas mentes sejam ‘humilhantemente’ parecidas com as de nossas crianças. Aconteceu uma corrida pela evolução, e a nossa subdivisão ganhou. Razoável que nos consideremos superiores, mas igualdade genética dessa magnitude não pode ser ignorada. São animais próximos, muito próximos.

Acho fascinante a discussão. Uma bobagem, um luxo completo, mas interessante mesmo assim. Eventualmente nossa tecnologia substituirá a natureza de forma a tornar os outros animais obsoletos para o ser humano. Um dia vamos abdicar do direito natural de espécie dominante, mas esse dia está longe.

Enquanto isso, eu defendo que orangotangos não tenham direitos parecidos com os humanos, por mais que eles nos sejam simpáticos. Temos vários outros ‘luxos’ para cuidar nesse meio tempo.

Para dizer que ainda não entendeu porque eu gostei da notícia, para dizer que o ser humano não é racional, ou mesmo para dizer que notícia de direito na argentina tinha que ser analisada pela Sally: somir@desfavor.com

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Comments (5)

  • Direito argentino era postagem pra Sally. #Somostodosanimais
    Que tal começar a fazer leis a favor dos cachorros, das vacas, das piranhas, das lesmas e principalmente dos burros e das amebas!

  • Na questão de grau de direitos mais abrangente para os animais, fico pensando que, mesmo que isso ocorra por aqui, ainda assim sofreriam logro.

    Lembro que uma conhecida, mulher riquíssima mas sem qualquer herdeiros, determinou em seu testamento que sua mansão em uma região hipervalorizada da cidade fosse destinada exclusivamente para as dezenas de seus cachorros e, para sustentá-los, separou parte de seus bens em uma fundação para que o rendimento fosse destinado ao sustento deles.

    Pois bem, o rendimento era muito, muito mais do que suficiente para cuidar decentemente desses cachorros, e a ricaça não deixou por escrito a quantidade exata, raça nem nome desses animais. Assim, a pessoa incumbida de cuidá-los jogou os vira-latas na rua e diminuiu a quantidade deles pela metade, para aplicar o restante do rendimento para tornar a casa habitável para si. Manteve apenas os cachorros de raça, afinal, caso um morresse, seria fácil trocá-lo por outro da mesma espécie para manter o logro.

    E, até onde sei, permanece nesse esquema há umas duas décadas, tempo em que, acredito, todos os cachorros originais já teriam morrido.

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