O Estado do Rio sancionou nesta quarta-feira (10) lei que proíbe a veiculação de propaganda “misógina (que represente aversão à mulher), sexista ou estimuladora de agressão e violência sexual”. (…) O projeto não determina que tipo de propaganda se enquadraria nestes casos, mas, na justificativa apresentada aos deputados, os autores dizem que a figura feminina é usada de forma submissa na publicidade. LINK


É uma piada com o atual estado calamitoso do estado, é uma piada pela subjetividade. Mas não dá pra rir, é o desfavor da semana.

SALLY

Você já ouviu falar da Pirâmide de Maslow? É um classificação das necessidades humanas básicas criada por um psicólogo de mesmo nome: para que se possa pensar no degrau seguinte da pirâmide, as necessidades primordiais que estão abaixo (na base da pirâmide) devem ser supridas. Em um resumo muito grosseiro, na base da pirâmide estão as necessidades fisiológicas como fome, sono e exceção. Em um segundo nível coisas como segurança, saúde. Em um terceiro nível, amizade e família. No topo da pirâmide estão respeito, autoestima e moralidade. Simples e sensato: quem não tem o básico, não tem condições de desenvolver o resto.

Não sei o grau de informação que vocês têm do Rio de Janeiro, por isso me permito um breve parágrafo descrevendo por alto o que vem acontecendo por aqui. Não há saúde pública, simplesmente não existe. Quem depende de hospital público morre. Não há segurança pública, não existe bairro ou local seguro, o risco de vida está em todos os lugares e todos os horários. O Rio tem uma média de dez estupros por dia ( apenas entre os reportados, o número real é muito maior). Não há moradia para todos, com um dos maiores déficits habitacionais do país, pessoas se aglomeram em morros, viadutos ou qualquer buraco. Temos uma favela com mais de cem mil habitantes. Não tem escola para todos, boa parte da população não tem água potável ou sistema de esgoto. E isso é apenas um resumo muito rápido e incompleto da atual situação do Rio de Janeiro, que também não tem dinheiro em caixa para mudar essa realidade. A cidade está falida.

O que se espera de representantes do povo que se comandam uma cidade nesse estado? Se houvesse um pingo de vergonha na cara ou bom senso, que tentem reverter em primeiro lugar o que está na base da Pirâmide de Maslow: que todos tenham o que comer, que todos tenham um teto para dormir, que todos tenha água potável para beber, que todos possam sair nas ruas sem serem assassinados ou estuprados. E, vamos combinar, mesmo para quem está muito bem de vida, não é jogo manter uma cidade assim: amanhã pode ser seu filho a ser assassinado ou sua filha a ser estuprada, mesmo que eles estejam no topo da pirâmide. Hoje ninguém está seguro do Rio, mesmo com seguranças, mesmo em bairro nobre. Nesse cenário, me parece que as prioridades estão bem claras: garantir a sobrevivência de todos.

Aparentemente, o legislador carioca discorda da gente. Eles acharam que, neste contexto de pessoas morrendo por falta de remédio, por falta de atendimento médico, por falta de comida, por água contaminada, por bala perdida, a prioridade é se preocupar em regulamentar publicidade. Na quarta-feira passada, sancionaram uma lei que proíbe propaganda “misógina, sexista ou estimuladora de agressão e violência sexual”, estipulando multas que podem passar de um milhão de reais para quem o fizer. Ou seja, o principal agente nocivo do Rio hoje, é o publicitário. Ao que tudo indica, é com ele que temos que nos preocupar.

Segundo a lei, fica proibida a “exposição, divulgação ou estímulo ao estupro e à violência contra as mulheres”, e, ainda mais interessante, o “fomento à misoginia e ao sexismo”, em todos os meios, como outdoor, folheto, cartaz, rádio, televisão ou rede social. Nem sei por onde começar.

Batemos na mesma tecla desde 2009: não adianta criar leis (sobretudo punitivas) com caráter subjetivo. O que é “fomento à misoginia” para você? E fomentar sexismo? Isso transforma o Judiciário em uma grande roleta russa, uma vez que cada juiz vai entender de uma forma diferente, gerando uma baita insegurança social. Isso sendo otimista, pois na versão pessimista (e muito mais realista), quem paga um suborninho ou tem um contatinho se safa, quem não paga é punido. Subjetividade em terras corruptas é uma porta aberta para a injustiça.

Além de dar atenção para uma questão que deveria ser menos urgente, ainda se cria uma lei imbecil que não só não vai coibir o problema, como também vai fomentar a injustiça e corrupção. A cereja no sundae é que ainda vai gastar uma generosa fatia dos recursos de um Rio de Janeiro que já está falido: após a denúncia, feita por qualquer pessoa do povo (e o que não falta é gente ofendida e louca por atenção), será criada uma Comissão de 13 pessoas, para avaliar a denúncia em até 60 dias. Esta Comissão contará com membros da Defensoria Pública e da Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, entre outros.

Você já precisou dos serviços da Defensoria Pública? Tomara que não, mas se já precisou, sabe qual é o tamanho da fila de espera. A Defensoria atende pessoas que precisam de uma autorização judicial para um procedimento cirúrgico que, se não for realizado no mesmo dia, implica no óbito do paciente. Casos onde o Estado se recusa a fornecer remédios que, se não forem ministrados habitualmente, a pessoa falece. Estes profissionais, já abarrotados de ações, vão ter que parar para avaliar se um comercial de chinelos ofende ou não ofende as mulheres. Parece razoável isso?

E, se as partes não ficarem satisfeitas com o desfecho, adivinha se a coisa não vai parar no Judiciário? Recursos, mais recursos, não apenas atravancando o Judiciário, como também implicando em uma despesa violenta, custeada pelo povo. Não dá. A atual realidade do Rio de Janeiro não permite esse “luxo” (sim, quando não há comida, casa, saúde e segurança, empoderamento feminino é luxo).

Percebam que eu nem estou entrando no mérito da censura. Não pretendo aqui dizer se esta medida é necessária ou contraproducente para a causa feminina. Tem uma questão preliminar tão forte, que me permito nem entrar nesse debate: pularam para o último degrau da Pirâmide de Malsow, ignorando por completo que necessidades muito mais básicas e essenciais não são atendidas. Eu sei que o sonho do brasileiro é ter problema de primeiro mundo, mas assim já é demais, é simplesmente ridículo.

A sociedade tem que se autorregular: se houver uma publicidade bosta, as pessoas que boicotem o produto. Que tenham cérebro para olhar, fazer um juízo de valor, dizer “isso não é legal, não vou comprar nem prestigiar essa marca” e ponto final. Enquanto houver esse Estado intervencionista e paternalista a sociedade nunca vai amadurecer e todos vamos continuar pagando caro por uma pseudoproteção que nem eficiente é.

O mundo não é seu bairro, seu condomínio, sua causa. Por mais importante que sua causa seja e por mais que ela afete sua vida, tem gente sem casa, sem comida, sem remédio, sem água potável. Se ainda assim você acha que sua causa é prioridade, você é idiota. E se acha que dá para resolver todas as causas, é deficiente mental. Um Estado que permite que dez mulheres sejam estupradas todos os dias não tem a menor moral para punir publicidade que não respeita mulher, preocupem-se antes em evitar esses estupros.

Obs: Certeza, certeza certa, certeza absoluta que vai aparecer débil mental querendo insinuar que a culpa desses estupros é da publicidade. No aguardo.

Para dizer que a Pirâmide de Maslow atual tem em sua base o lacre, para dizer que mais uma vez as pessoas acreditaram que se resolve fazendo lei ou ainda para dizer que esta porra de iniciativa nefasta vai se espalhar por todo o Brasil: sally@desfavor.com

SOMIR

Mesmo trabalhando na área, eu não sou necessariamente contra alguns limites para a publicidade. Seja para quem se mostra a publicidade (como as limitações para o público infantil), seja a honestidade dela (não prometa o impossível e não ignore malefícios), ou até mesmo sobre a prevalência desse material na vida das pessoas (leis no estilo ‘cidade limpa’, evitando que propagandas tomem todo o espaço visual numa cidade). O mundo da publicidade pode viver com algumas limitações, muitas vezes até fomenta a criatividade no setor e evita estagnação.

Mas, é importante que os limites sejam claros. Senão, como obedecê-los? Ou, pior, como evitar que eles sejam abusados? Vocês já devem ter ouvido falar do CONAR, uma entidade formada por profissionais das áreas de propaganda e mídia cujo objetivo é analisar e julgar denúncias nesse mesmo setor. Embora o CONAR não tenha poder de lei, ficar contra ele custa tão caro para os infratores que as agências de propaganda acatam suas decisões na imensa maioria das vezes. As regras do CONAR pregam uma espécie de bom-senso politicamente correto que é razoavelmente compreensível por quem está nessa área, até porque as pessoas que julgam isso tem bagagem e conhecimento técnico para entender o que existe nas peças analisadas.

De forma alguma o CONAR é um sistema perfeito, eu mesmo já escrevi mais de um texto achando babacas algumas decisões da entidade. Mas pelo menos as motivações políticas e financeiras dos membros julgadores é suficientemente clara. Como todo mundo lá dentro está no mercado, não dá para simplesmente atacar uma agência ou uma empresa sem atacar o mercado junto. No fundo, o CONAR existe para evitar que o governo faça algo parecido e a parte da análise caia nas mãos de malucos, corruptos e semianalfabetos que costumam ocupar cargos do legislativo.

Mas agora a porteira está aberta. Pessoas cujo objetivo é gerar vantagens pessoais e se reeleger terão poder para analisar propagandas. O Rio não é o país, mas está conectado com todo o resto: como estamos vivendo uma “moda” de defesa aos direitos das mulheres e uma onda de conservadorismo moralista ao mesmo tempo (vide Bolsonaro e sua popularidade), é lucrativo passar uma lei como essa no momento. Dizer que está combatendo a exploração da mulher ao mesmo tempo que diz que está atacando as propagandas que erotizam sua imagem acerta dois coelhos com a mesma pedra. Mesmo que essa pedra esteja basicamente sendo jogada ao esmo.

E o perigo está nessa aliança maluca entre liberais e conservadores, num limbo ideológico explorável por quem quer fazer pose de correto para ganhar votos, mas que é suficientemente irreconciliável para que não gere resultados positivos na sociedade. O único ponto onde tudo isso se encontra é na ideia bizarra que a sexualidade feminina deve ser tolhida em busca de um mundo melhor. Lacradoras e reacionários tem horror de mulheres atraentes tendo a liberdade de se mostrar como quiserem. Se quer que uma feminazi de cabelo vermelho e um defensor da ditadura se encontrem no mesmo ponto, é que ambos tem a mesma visão mental de baixaria ligada a uma mulher muito atraente. Ela por inadequação pessoal por padrões de beleza, ele por ver excesso de poder nas mãos de uma mulher. O simples fato de misturar erotização da mulher com misoginia entrega quem são os imbecis por trás de tudo isso.

E evidente que temos todo o problema de políticos se aproveitando disso para atacar concorrentes e defender amigos. Vão mandar analisar peças de empresas que não pagam propina, vão ignorar quaisquer problemas no material publicado por seus parceiros. A única forma de se afastar totalmente da corrupção inerente ao sistema público de análise vai ser não dar qualquer chance de ser denunciado: começar a retirar mulheres sexualmente atraentes das artes e não fazer menções a sexualidade feminina em nenhum lugar. O que empobrece a criatividade de quem não tem nada contra mulheres e até diminui oportunidades para várias delas. Estamos querendo o quê? Um mundo onde só homens podem usar a aparência para ganharem a vida? Igualdade bacana essa aí.

E eu estou focado nesse ponto de sexualidade porque os outros pontos são ridículos: quem faz propaganda glorificando violência contra mulher? Mesmo no tempo onde não tinha proteção nenhuma na publicidade e falar sobre bater em mulher não tinha um décimo da conotação negativa atual, não tínhamos essas propagandas. Não precisa de lei para punir quem faça algo efetivamente misógino em publicidade: a agência a e empresa anunciante vão apanhar tanto que provavelmente vão sair do mercado em desgraça eterna. O próprio CONAR vai garantir que ninguém veicule essa propaganda. O problema da publicidade fazendo algum mal a mulher que não seja essencialmente sobre auto imagem e exposição da sua sexualidade simplesmente não existe no mundo moderno.

Uma lei dessas serve para quê então? É sobre erotização, é sobre peitos e bundas que incomodam gente babaca e insegura. E é sobre gerar algo tão subjetivo que pode e vai ser utilizado para pedir suborno para empresas, além de bônus financeiros para as comissões formadas. E, pra variar, no fundo isso é só mais um foda-se para as mulheres. Cidadãs de segunda classe que tem que ser vestidas numa placa por não saberem melhor. Crianças que não sabem o que querem e precisam do papai para decidir por elas. Seja o papai uma feminista histérica ou um político corrupto pagando de moralista cristão…

Para me chamar de machista, para dizer que se colocarem mais um anúncio com gorda vai denunciar, ou mesmo para dizer que está com medo por ter percebido esse campo comum entre histéricas e histéricos: somir@desfavor.com

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Comments (13)

  • Um país que todo ano tem uma ameaça de criminalizar o aborto, onde há centenas de meninas e mulheres vulneráveis a abusos e que vivem extremamente afastadas de qualquer suporte, se prostituindo pra comer, agora me vem com essa de “queremos proteger as mulheres”?
    AH TÁ

  • É por coisas como essas que eu já desisti desse país e tô juntando meu dinheiro pra sumir. Já sonhei em ver as coisas mudarem, já tentei “fazer a minha parte”, mas parecia que quanto mais empenho eu colocava, mais o sistema me massacrava. Me sentia trouxa tentando mudar a realidade e ver as pessoas à minha volta se dando bem com o errado e/ou se preocupando apenas consigo mesmas. Isso aqui faliu, as prioridades estão totalmente invertidas e sim, Sally, essa onda atingirá o resto da nação. Fujam todos enquanto há tempo, antes que esse barco furado afunde de vez…

  • Mais uma vez estamos diante de:
    1) parlamentares semianalfabetos que acham que canetar uma caralhada de novas leis resolve alguma coisa;
    2) uma lei subjetiva, muito da mal arquitetada, que além de não resolver porra nenhuma, vai na contramão de qualquer noção de prioridades.

    Mais uma vez ficamos com a sensação de que deveria haver pré-requisitos mínimos de competência para concorrer a uma vaga no legislativo

  • Pra quê uma mulher que vive em uma favela sem comida, sem água, sem saúde e ainda correndo o risco de ser violentada vai precisar se preocupar com todos esses problemas? O importante agora é que ela vai poder respirar tranquilamente por não precisar mais ver propagandas de cerveja com mulheres de biquíni. Quanto “avansso nus direito das muié”!

    Mas se for uma propaganda com a Anitta (ou ~Anira~) esfregando a bunda na cara de um homem, vão deixar passar de boas. Afinal, é “impoderamentu das muié” e ela é a queridinha da lacrolândia.

    “Obs: Certeza, certeza certa, certeza absoluta que vai aparecer débil mental querendo insinuar que a culpa desses estupros é da publicidade. No aguardo.”

    O mesmo que culpa a publicidade pelo estupro das mulheres é o mesmo mongolão(a) que escreve que “huurr duurr piadas matam mimimi mómómó”.

    “Lacradoras e reacionários tem horror de mulheres atraentes tendo a liberdade de se mostrar como quiserem. Se quer que uma feminazi de cabelo vermelho e um defensor da ditadura se encontrem no mesmo ponto, é que ambos tem a mesma visão mental de baixaria ligada a uma mulher muito atraente.”

    Sim, taí o exemplo da Globeleza milagrosamente sambando vestida na vinheta de Carnaval do ano passado. Feminazis (principalmente as do movimento negro) e reacionários comemoraram o fato (cada um com seus motivos). Foi algo estranho e ao mesmo tempo interessante de ver.

    “O mundo não é seu bairro, seu condomínio, sua causa. Por mais importante que sua causa seja e por mais que ela afete sua vida, tem gente sem casa, sem comida, sem remédio, sem água potável. Se ainda assim você acha que sua causa é prioridade, você é idiota. E se acha que dá para resolver todas as causas, é deficiente mental.”

    Vontade de imprimir essa citação e botar num Outdoor gigantesco.

    PS: Não sei se vocês viram, mas saiu nesta semana uma matéria com a Catherine Deneuve assinando um manifesto com outras mulheres se opondo a essa onda de “denúncias de assédio”. Obviamente eu não sou a favor dos caras mexerem com as mulheres à vontade e saírem impunes. Mas banalizaram tanto o conceito de “assédio” que hoje eu não sei mais o que isso significa. E esse assunto tomou um rumo tão desproporcional que vai chegar uma hora que nem as próprias mulheres vão aguentar mais (que homem vai ter coragem de chegar perto de uma mulher hoje?).

    • Elas não estão aguentando tanto “respeito”. Também, pudera: revolução nos costumes para, depois, ser “protegida” em excesso e tratada como diferente dos homens?

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