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Nobel de Medicina 2018

Nobel de Medicina 2018

| Sally | | 24 comentários em Nobel de Medicina 2018

Que tal uma boa notícia no meio dessa tsunami de merda que está nos sufocando na semana que antecede as eleições? Na última segunda-feira foram anunciados os vencedores do Prêmio Nobel e uma grata surpresa (ao menos para mim, talvez por não ser da área) veio com o Nobel de Medicina: um tratamento revolucionário para a cura do câncer. Senhoras e Senhores, estamos assistindo à história acontecer diante dos nossos olhos.

Dois cientistas dividiram o prêmio, o americano James P. Allison e o japonês Tasuku Honjo. O curioso é que eles não trabalharam juntos, mas suas pesquisas permitiram um belo avanço na direção da cura do câncer, gerando contribuições igualmente valiosas e até complementares.

Mas antes de entrar no mérito das descobertas, vamos conversar um pouquinho sobre câncer, pois é crucial compreender o funcionamento desta doença para, só então ter uma noção do avanço conquistado.

Seres humanos são frutos de muito séculos de evolução. Só sobreviveram os mais aptos, ou seja, aqueles com organismo mais forte, com um sistema imunológico capaz de combater as mais variadas doenças. Porém, falhamos miseravelmente contra o câncer, tanto é que se torna cada vez mais comum conhecer alguém que está com esta doença.

Isso acontece porque o câncer não é gerado por algum organismo externo, não estamos falando de um vírus ou uma bactéria. É o nosso corpo que comete um “erro” e esse “erro” se espalha. Simplificando de forma até ofensiva, é como se o câncer fosse um erro de digitação no nosso DNA, copiado e colado inúmeras vezes, até cagar pro completo todo o texto. Uma célula sofre uma mutação, que a torna disfuncional, começa a se multiplicar desenfreadamente e nosso corpo não consegue conter o dano.

Todos nós estamos aparelhados com estruturas para lidar com células defeituosas (papo técnico: Linfócitos T). Novamente, simplificando além do aceitável, os Linfócitos T detectam células defeituosas por algumas substâncias que elas soltam, eles reconhecem esse “cheiro no ar” (na verdade, se ligam a pequenos fragmentos de proteínas liberadas por células defeituosas) e vão atrás da fonte, para eliminá-la.

Quando uma célula defeituosa/cancerosa começa a se reproduzir loucamente, ela também libera essas proteínas suspeitas, então, em tese, isto deveria bastar para que nossos Linfócitos T fossem atrás das células encrenqueiras e as eliminassem.

Porém, o grande problema quando falamos em câncer é que a célula cancerosa tem a capacidade de liberar proteínas reguladoras (papo nem tão técnico assim: checkpoints), que impedem os Linfócitos T de atacar, pois mesmo sabendo que tem algo errado ali, as proteínas reguladoras barram o ataque.

Podemos usar várias analogias para entender como isso funciona, a mais simples é que esses checkpoints paralisam nosso sistema imunológico e ele, mesmo sabendo que tem algo errado, não consegue atacar. É como um cão preso em uma coleira que não consegue alcançar o assaltante que entrou no jardim. O cão sabe que tem algo errado, ele fareja um intruso, mas está impedido fisicamente de atacá-lo.

Pois muito bem, os ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina conseguiram um jeito de soltar o cachorro da coleira e permitir que os Linfócitos T ataquem as células cancerosas.

James Allison acompanhava estudos que buscavam fazer exatamente oposto: colocar uma coleira ainda mais curta no cachorro. O objetivo era impedir que os Linfócitos T ataquem o corpo, na busca por um tratamento contra doenças auto-imunes, que acontecem quando seu sistema imunológico surta e ataca o próprio corpo.

As mentes criativas mudam o mundo. Basta um insight, basta que por um segundo a pessoa consiga sair da caixinha e ver um novo ponto de vista. Ele pensou “Porque não usar essa estratégia ao contrário? Também pode ser útil” Se é possível mexer no tamanho da coleira do cachorro, é possível encurtá-la ou alongá-la. E foi daí que veio inspiração para pesquisar justamente o contrário: como encorajar os Linfócitos T a atacar o que tem que ser atacado.

Se o grande problema que os impede de atacar as células cancerosas são as proteínas reguladoras que elas produzem, os checkpoints, seria necessário criar um jeito de deixar os Linfócitos T imunes a essa proteína que os paralisa.

Dito e feito: ambos os cientistas, cada um no seu canto, desenvolveram uma espécie de “tampa” (papo técnico: a do americano se chama CTLA-4 e a do japonês PD-1) que se “acopla” aos Linfócitos T no lugar onde esta proteína deveria aderir, impedindo que ela cole em sua estrutura e passe o comando errado. Sim, é quase que uma camisinha para Linfócitos T, para que eles não sejam contaminados com a coisa errada.

Essas “tampas” são colocadas no organismo na forma de remédios, mas, na verdade, não é o remédio que te cura, o remédio apenas permite que seu próprio corpo possa te curar.

Não funciona com todo mundo, ainda não se sabe bem o motivo, mas funciona com muita gente, inclusive com casos gravíssimos. E é algo maior do que se imagina, um avanço a ser muito celebrado, que não está recebendo a devida comemoração no Brasil.

No imaginário popular se esperava “A Cura do Câncer” como um evento definitivo, um remédio único, universal que fizesse com que todas as células cancerosas desapareçam. Ao que tudo indica, não vai ser esse o caminho. Mas não por isso tem menos valor.

A tendência é que se “eduque” nosso sistema imunológico para que ele aprenda que sim, pode e deve atacar aquelas células. Para isso, será preciso muito estudo, para criar muitas “tampas”. Porém, a noção de que é possível criar “tampas” e que este mecanismo funciona, é um grande pulo do gato que merece sim um Nobel, muitos aplausos e comemorações.

Além de salvar vidas, estes estudos colocaram nosso sistema imunológico sob uma nova perspectiva: não é que nosso corpo não tenha capacidade para combater o câncer, nosso sistema imunológico espanca o câncer se você remover essa “trava”, essa proteína que permite que as células cancerosas fujam do ataque.

Tanto é que casos de câncer em estágio muito avançado foram completamente revertidos apenas com o poder do corpo da pessoa. Pacientes com casos severos de câncer metastático, ou seja, quando o câncer se espalha pelo organismo, algo que normalmente é considerado incurável, foram completamente curados apenas com seus organismos.

Apesar dos cientistas terem desenvolvido essas “tampas” em separado, os melhores resultados estão sendo alcançados em tratamentos que envolvem ambos os remédios. Este gênero de tratamento vem sendo chamado de “Imunoterapia Inibidora de Checkpoints”. Estas drogas já estão à venda no Brasil (uma que bloqueia o CTLA-4 e cinco que bloqueiam o PD-1), mas só eram utilizadas em pacientes que não respondiam a mais nenhum tratamento.

As possibilidades são muitas: combinar este tratamento com tratamentos convencionais como quimioterapia, radioterapia, cirurgia etc, implementar este tratamento como primeira tentativa, para poupar os pacientes do sofrimento quimioterápico e, principalmente, estimular pesquisadores do mundo todo a procurar por mais “tampas”. Quanto mais conseguirmos educar nosso sistema imunológico para atacar células cancerosas, mais perto da vitória sobre a doença estamos.

Nas palavras de Klas Karre, membro do comitê do Nobel: “Nós podemos curar o câncer com isso”.

Então, celebremos. Há uma tendência a celebrar pouco nesses tempos polarizados e bélicos. A celebração é uma parte importante da vida, ela nos dá forças para perseguir novas etapas, nos dá ânimo para inovar, persistir e tentar chegar onde mais ninguém chegou. Eu sei, a vida de todos nós está longe do ideal, mas porra, deixo o convite mesmo assim: celebremos, uma coisa muito boa acaba de acontecer.

Para perguntar se eu estou tomando Prozac, para dizer que eu não sei escrever texto nerd por colocar muito sentimento nele ou ainda para dizer que vai celebrar: sally@desfavor.com


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