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Fantasia de justiça.

Fantasia de justiça.

| Somir | | 28 comentários em Fantasia de justiça.

A pessoa que apareceu numa foto fantasiada de goleiro Bruno segurando um saco de lixo escrito Eliza foi identificada e demitida do lugar onde trabalhava, um estúdio de tatuagem em Manaus. Era apenas questão de tempo hoje em dia. Como já dissemos em outras postagens, concordando ou não, existem consequências para o que se faz nesse mundo de conexões instantâneas pela internet. Mas, será que elas servem para alguma coisa?

Meu senso de humor é podre, eu ri da fantasia e não vou negar. Ri porque é uma piada de extremo mau gosto e uma completa falta de noção. Não há nenhuma graça no triste fim da mulher em questão, mas humor não é algo que lide diretamente com um fato, e sim com a subversão da reação emocional das pessoas a ele. Salvo alguma exceção psicopática, ninguém está rindo do assassinato da mulher, e sim da “criatividade” da pessoa em fazer dessa tragédia uma fantasia de Halloween.

Agora, ao mesmo tempo que eu sei reconhecer uma piada de mau gosto como uma piada e nada mais, eu também sei reconhecer que a pessoa aceitou o risco de sofrer retaliações pela sua escolha de fantasia. Ninguém colocou uma arma na cabeça dele e mandou usar aquela roupa. E duvido que alguém hoje em dia não tenha noção de como pode acabar na internet a qualquer momento e ganhar fama (ou infâmia) instantânea a cada ação.

Então, embora eu não acredite que seja motivo para destruir a vida de uma pessoa, entendo claramente que não é assim que a banda toca, especialmente num país de gente de baixo Q.I. médio como o Brasil: humor exige um pouco de nuance para ser entendido, o que não combina muito bem com a literalidade de gente sem acesso à cultura e educação em geral. Você pode fazer suas piadas, mas tem que entender que a maioria que te cerca provavelmente não vai entender contexto. Especialmente enquanto está na moda fazer inquisição virtual.

Bater no erro do outro ajuda gente com baixa autoestima a se sentir menos pior por alguns momentos. E, até voltando na questão do baixo Q.I., gente burra pode até não saber porque se sente inferior, mas se sente. É importante saber que tirando pessoas próximas que gostam de você ou que tem um pouco mais de refinamento, você está lidando com uma turba enfurecida que adora um linchamento para se sentir melhor. Se você cometer um erro público o suficiente, vai sofrer essa consequência.

É meio como o meu argumento sobre como mulheres tem o direito de sair de casa usando a roupa que quiserem sem sofrerem com abusos, mas que o direito não é uma proteção mágica contra abusadores. Algumas roupas podem incitar ações de pessoas podres, e é importante que a mulher tenha plena noção disso. O mundo ideal é apenas isso, ideal. Na prática a gente tem sempre que ter conhecimento dos riscos que corremos e, na medida do possível, tentar evita-los. Eu não quero que as mulheres tenham que usar burcas e aceitar a “vitória” dos piores tipos de homens, mas também não quero que alguma delas tenha a falsa impressão de que o simples fato de algo ser errado impeça alguém de fazê-lo.

Na questão do humor “politicamente incorreto”, vou pelo mesmo caminho: eu quero viver num mundo onde uma piada é só uma piada, e ninguém sofra esse tipo de linchamento virtual; mas ao mesmo tempo não quero que ninguém se iluda com a ideia de que o direito de expressão signifique ausência de consequências. Tem gente que vai te julgar e tentar te fazer muito mal caso escute ou leia uma piada que você fez. Vão tentar igualar uma expressão a uma ação: “se a pessoa fez uma piada sobre um assassinato de mulher, é porque acha que não tem problema assassinar mulher.”

E disso provavelmente nunca vamos escapar. A consequência individual é incontrolável, porque o indivíduo é imprevisível. Alguém pode até mesmo entender errado o que você disse e ter certeza que você merece a morte por aquilo. Discutimos liberdade de expressão fingindo que pessoas malucas e mal-intencionadas não existem, mas é óbvio que existem. E digo mais, quem sou eu pra discutir onde aperta o calo do outro? Se a mãe de Eliza ficou furiosa com a fantasia do cidadão de Manaus, ela tem todo o direito. Se existem mecanismos legais para ela gerar uma consequência negativa para a pessoa que fez isso, ela está no direito dela.

Não adianta tapar o sol com a peneira e ir morar no seu mundinho ideal quando algo não funciona do jeito que você queria. Eu acho que na soma geral liberdade de expressão irrestrita ajuda a humanidade a crescer emocionalmente, mesmo que cause sofrimentos pontuais. Mas o acordo social não é esse: pessoas querem ter uma forma de punir quem diz algo que não gostam de ouvir, impacte isso diretamente na sua vida ou não. Enquanto não mudarem as pessoas, não vai mudar a lei.

E a lei é só uma pequena parte do processo punitivo do século XXI: a reação negativa nas redes sociais existe como complemento de um caso legal, ou mesmo como ação justiceira da população. Se o policial não acha que foi crime, o povão amarra no poste e começa a linchar. No caso de uma piada na internet, não é como se fossem espancar a pessoa, mas já está bem definido o padrão da punição: retirar o emprego da pessoa.

Fez piada que eu não gostei? Vou fazer você perder sua fonte de renda! É a vingança da internet contra a pessoa que considera ruim. É a forma encontrada de dar aquele chutão na cabeça do bandido caído, mas à distância. Eu escrevo até aqui partindo do princípio que sei que a piada do cidadão usando a fantasia de Bruno é de mau gosto, mas que é uma piada e que no máximo merecia um puxão de orelhas; mas por motivos de argumentação, eu vou entrar na cabeça de quem considera uma verdadeira apologia ao assassinato de mulheres.

Vamos entrar nesse fascinante mundinho onde o cidadão, sabendo ou não, está fazendo apologia ao crime. Pega seu senso de humor, coloca numa gaveta e vem comigo:

Se eu realmente acho que essa pessoa deve sofrer consequências pelo ato, eu devo decidir qual o objetivo da punição: fazer a pessoa sofrer como compensação pelo ato ruim ou fazer a pessoa sofrer para evitar que ela repita o comportamento. De um lado, você considera que o sofrimento é o fim, afinal, a pessoa vai ter uma relação negativa entre aquele comportamento e suas consequências. É dar um tapa no cachorro que te mordeu. A natureza diz que isso tem sua função: qualquer bicho que percebe a relação entre uma ação e sofrimento aprende a evitar aquele comportamento no futuro. Alguns mais rápido, outros nem tanto.

Mas existe outra forma de lidar com a situação: gerar um ambiente de “cura” para o comportamento ruim. Em tese, é por isso que abandonamos punições físicas como execuções, amputações e tortura em prol de um sistema prisional, que afasta o criminoso da sociedade por um tempo para tentar fazê-lo voltar melhor. Não é uma troca direta entre anos de vida e perdão, presume-se que esse tempo sirva para corrigir o comportamento da pessoa.

Funciona na prática? Não em países atrasados como o Brasil, mas quando o entorno funciona como em alguns países mais desenvolvidos, o nível de reincidência é baixíssimo. A pessoa sai da cadeia menos propensa a cometer crimes. Ela não deixou de ser punida, teve sua liberdade restringida e qualidade de vida reduzida, mas foi punida numa medida que ainda a permite viver em sociedade.

Num dos sistemas, a punição é tudo, em outro, ela é uma parte. Traçando um paralelo com as punições virtuais de pessoas como o cidadão que se fantasiou de Bruno, qual parece ser o modo de justiça aplicado? Ele é demitido para não contaminar a imagem da sua empresa, vira um pária social até a internet esquecer dele… e acabou. Se a pessoa vai sair dessa experiência melhor ou não? Ninguém sabe, e considerando como a maioria delas nunca mais é notícia depois de ser “cancelada”, presumo que ninguém se importa em saber.

Está me parecendo o modelo de justiça da punição pela punição: a internet passa pela vida da pessoa, faz o máximo de danos que pode e depois some, na busca da próxima vítima. O “criminoso” não importa mais depois disso. Pode parecer natural num país com números absurdos de linchamentos todos os anos, mas o pior é que não é o povão fazendo isso.

A pessoa que mata a pancadas um acusado na rua sem saber se a pessoa cometeu um crime ou não dificilmente é a mesma pessoa pedindo cancelamento na internet. A “turma da lacração” tem ideias que sequer passam pela cabeça do brasileiro médio. A falta de senso humor denota um desenvolvimento intelectual baixo, mas não é no nível de total ausência de pensamentos abstratos como encontramos pelas ruas do país.

Era de se presumir que o povo que exige a demissão de alguém que fez uma piada ofensiva estivesse mais alinhado com o sistema de justiça baseado em ressocialização. Pune, mas pune com um objetivo: recuperar a pessoa para voltar para a sociedade. Agora, alguém aqui acha que as pessoas que foram pedir a demissão dele para seu empregador estão interessadas em influenciar positivamente o pensamento do bandido da vez?

Não, na verdade é para desencorajar outros de fazerem a mesma coisa. E eu não estou pulando em conclusões, é o que sai da boca e dos perfis da imensa maioria dos defensores da prática de “cancelamento”. É para dissuadir outras pessoas. Nesse caso, para dizer que “feminicídio não é piada”. É para dizer que esse comportamento não pode mais acontecer, e se você fizer, vai ser punido com a perda do emprego. O punido da vez é o exemplo para os outros. Viu como esse sofreu? Não faça essa piada se não quiser sofrer o mesmo!

Peraí… onde é que tem um argumento bem parecido com esse? Ah, já sei, na pena de morte! Se o bandido potencial vir que outro bandido morreu depois de cometer um crime, segundo os defensores da pena de morte, ele não vai mais querer cometer o crime. A punição tem que ser dura e inescapável, porque só assim vai passar a mensagem desejada. Claro, os países que aplicam pena de morte não têm índices de criminalidade menores que os equivalentes que apostam em ressocialização, mas os defensores da pena de morte quase sempre estão pouco se lixando para diminuir a criminalidade, querem mesmo é eliminar o bandido da existência. Querem ver alguém sofrendo por fazer algo errado.

Curiosamente, não só o número de piadas não diminuiu desde que se começou com essa mania de cancelamento, como muita gente decidiu levar a sério os discursos ditos como proibidos. Cada cancelado é uma pessoa que vai se ressentir para sempre dos mais liberais pelo linchamento, ou um novo membro do grupo dos conservadores, que vão imediatamente oferecer apoio na hora mais difícil dessa pessoa.

Pena de morte não diminui criminalidade, só deixa os bandidos mais dispostos a matar para não deixar testemunhas. Cancelamento não diminui “pensamentos errados”, só os esconde ou pior, os torna mais resilientes por causa do apoio de pessoas que pensam parecido. Radicalização nunca melhorou esse mundo, e nunca vai melhorar. Radicalização gera radicalização.

Claro que você pode achar a fantasia horrível e querer que a pessoa sofra muito por causa disso, mas por favor, pare de se dizer liberal porque está fingindo que se importa com as mulheres. Você quer ver punição porque isso te faz bem de alguma forma, está pouco se lixando se a pessoa vai melhorar ou não, quer ver ela caída e seguir seu caminho. Direito seu se estiver dentro dos limites legais, mas quando um bolsominion vier dizendo que tem que matar bandido, é bom você ficar quietinho, porque a sua lógica é a mesma dele.

Custa caro ter um alinhamento ideológico, nem sempre você vai pensar ou fazer só o que te parece mais agradável instintivamente. Se não quiser ter um, sinta-se livre, mas por favor, pare de inventar novos para se adequar à sua conveniência. Esquerda, direita, conservadorismo e liberalismo praticamente não têm mais significado na sociedade atual… e isso é a receita da confusão que vivemos atualmente.

Para dizer que também riu da fantasia, para dizer que tem que prender todo mundo que se fantasiou de padre, ou mesmo para dizer que seu alinhamento político é foda-se: somir@desfavor.com


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