A dor venceu.

A Rússia afirmou que dez pessoas morreram depois que um jato executivo caiu perto de Moscou nesta quarta-feira (23). O líder do Grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, estava no voo, segundo a agência russa de aviação, a Rosaviatsia. A bordo, estavam sete passageiros e três membros da tripulação. A Rosaviatsia publicou os nomes e disse que todos estavam no voo “de acordo com a companhia aérea”. LINK


De novo esse assunto? De novo esse assunto. É assustador como todo mundo levou essa história numa boa. Desfavor da semana.

SALLY

Desde o dia que o Prigozhin morreu eu estou buzinando no ouvido do Somir que quero que esse seja o Desfavor da Semana. Não se sabe quase nada sobre o assunto, mas o pouco que se sabe já basta para que eu esteja afrontada.

Não me espanta que Putin mande matar quem o enfrente, inclusive porque ele mesmo afirma que o faz. Não me espanta que o Lula aplauda, defenda e ajude (inclusive financeiramente) um ditador que manda matar gente, pois não é a primeira e não será a última vez que o faz. Meu foco hoje é o povo brasileiro.

Um povo que adora ostentar virtude em redes sociais e onde mais possa ser escutado, que adora militar, que adora lacrar, que briga por causa de um pronome errado, está fazendo vista grossa para algo que é notório e de conhecimento mundial. Algo que vai de encontro com todo o discurso de amor, de crítica ao Bolsonaro, de defesa dos direitos humanos.

Eu sei e sempre soube que o brasileiro é um hipócrita, mas não sabia que era um povo tão burro. Até para ser hipócrita precisa de competência nessa vida. Precisa conseguir raciocinar e pensar “Ok, eu passo o dia todo defendendo X, portanto, por coerência, tenho que me posicionar contra Y”. Nem isso eles fazem. E nem isso lhes é cobrado pelo entorno.

E, que fique claro: não estou lamentando a morte do Prigozhin. Mercenário, matador de aluguel, torturador, estuprador, criminoso, já vai tarde. O ângulo é outro: não é saudável, não é aceitável, não é bom para o mundo que um ditador possa assassinar de forma pública e notória quem apresentou alguma resistência a ele. Isso não deve ser aceito, nem tolerado, nem varrido para debaixo do tapete. Isso não pode ficar sem consequências, não por causa do Prigozhin, mas por nós, humanidade.

Depois de ver a grande massa que berra, barraqueia e até agride por muito menos caladinha diante de um assassinato descarado eu me sinto no direito de nunca mais tolerar ouvir reclamação, militância ou qualquer outro desfile de virtude vindo dessas pessoas.

Tá achando ruim que errou o pronome? Curioso, não falou nada sobre um assassinato. Tá achando ruim que não tem banheiro unissex? Curioso, não falou nada sobre um assassinato. Tá achando ruim que uma minoria foi agredida? Curioso, não falou nada sobre um assassinato. Tá achando ruim que uma minoria foi morta? Curioso, não falou nada sobre um assassinato.

Eu não tolero ouvir mais nada de quem reage histericamente a tudo, tem sempre uma opinião para dar e faz questão de se manifestar até sobre campeonato de cuspe à distância e fica calado diante de um assassinato. Esse tipo de pessoa não só perdeu a credibilidade, perdeu o direito de me dirigir a palavra.

E vai ter (juro que vai ter) quem venha aqui nos comentários me “informar” sobre tudo de ruim que era Prigozhin. Eu sei, todo mundo sabe. Como eu disse, não lamento a ausência dele no mundo, provavelmente o mundo ficou um lugar melhor sem ele. O que me afronta, me enoja e me chateia é viver em um mundo no qual uma pessoa em posição de poder pode assassinar sem qualquer pudor outra pessoa para todo mundo ver – e pior, todo mundo ficar calado.

É essa a porra de mundo na qual as pessoas querem viver? Perderam a humanidade a ponto de relativizar isso? Se a pessoa é uma filha da puta, bem, para esses casos existe a lei. Tolerar que se assassine quem você não gosta é ser tão bárbaro e escroto quando aqueles a quem se condena. Não tem que ser admissível uma merda dessas, não importa se era o Papa, o Chuck Norris ou o Demônio. Não tem que ser admissível assassinar uma pessoa, isso tem que ter consequências, nem que seja a reprovação social.

E as consequências disso deveriam ser altas, ruidosas, expressivas. Mas não. O brazuca vai continuar no seu mantra pau no cu “pelo menos não é o Bolsonaro”, dando apoio ou não criticando um Presidente vergonhoso que apoia, passa pano e envia dólares para um lunático com armas nucleares que assassina todo aquele que de alguma forma o afronta.

Pessoas caindo pela janela? Normal, pois quem mata é alguém ideologicamente alinhado comigo. Pessoas sendo envenenadas? Tá tudo bem, quem mata é alguém ideologicamente alinhado comigo. Avião sendo derrubado? Tá tudo bem, quem mata é ideologicamente alinhado comigo. O brasileiro não é contra assassinato, violência e tortura, ele é contra que seu opositor possa fazê-lo.

Não percam a humanidade. Não percam o bom-senso. Não percam o referencial. O que aconteceu é bizarro, grotesco, aviltante. Eu não quero viver em um mundo no qual um ditador manda matar um monte de gente de forma escancarada e nada acontece, ninguém reprova e o Presidente do país passa pano. Você quer?

“Mas Sally, o que eu posso fazer?”. SER GENTE. Ter uma reação de pessoa normal, ética e mentalmente sã. Reprovar esse tipo de barbárie. Só isso. Só isso já ajuda muito.

Se quiser dar um passo além, seria de bom tom compreender que se você curte um político que passa pano para isso, é hora de deixar de gostar dele, pois fica claro que é um projeto de ditador, um bosta autoritário camuflado de “amor venceu”, um lixo de pessoa que um dia, se precisar, vai fazer o mesmo.

Imagina, só imagina se fosse exatamente o mesmo evento, mas o Trump mandando matar esquerdista a torto e a direito e o Bolsonaro apoiando, defendendo e mandando dinheiro para ele. Só imagina o que a esquerda diria dele. É um ótimo exercício sempre imaginar a situação oposta e pensar em como os militantes se comportariam.

Ou você é contra a barbárie ou não é. Se você a tolera em algumas situações, você não é contra a barbárie, você é contra o seu opositor cometê-la. E esse parece ser o caso da maior parte dos brasileiros. O povo realmente tem os políticos que merece. O amor venceu pra caralho, hein?

Para dizer que pelo menos não é o Bolsonaro, para dizer que quando morre rico pode ou ainda para dizer que quando dois não querem um avião não cai: sally@desfavor.com

SOMIR

O que mais me chamou a atenção sobre essa situação é como Putin saiu melhor dela do que entrou. Não só na questão da política interna, como na imagem que projeta para o mundo. Saiu mais forte, mais assustador, estilo vilão de filme.

Existe um limiar de maldade onde a maioria das pessoas parece virar uma chave entre desgosto e admiração. Podem continuar até torcendo para que percam tudo ou morram de forma horrível, mas tem algo na base de como se percebe essa pessoa que muda, e isso é um problema antigo da humanidade.

É sutil na hora de colocar em palavras, mas é bem óbvio se você prestar atenção no que sente sobre uma pessoa como Putin, por exemplo. Antes de mandar matar Prigozhin, Putin estava com uma imagem de pessoa ruim, mas pessoa ruim enfraquecida por confusões internas. Quando cai o avião e o mundo inteiro tem certeza de que foi ele que mandou matar o desafeto, a imagem continua como de pessoa ruim, mas… pessoa ruim que é eficiente no que faz.

O pior medo de qualquer déspota é parecer fraco. Porque é isso que a massa não tolera. O líder cruel que parece estar no controle e colocando medo nos adversários gera uma curiosa sensação de estabilidade. Muitos povos vivem debaixo de ditadores sanguinários porque existe um ganho secundário em saber quem manda e acreditar que não tem o que fazer de diferente.

O que não tem remédio, remediado está. Esse dito popular antigo tem daquelas doses de sabedoria ancestral que explicam muito sobre a humanidade: o medo de não saber o que vai acontecer pode ser muito maior do que o medo de ser esmagado por uma pessoa poderosa. Às vezes só queremos saber que a confusão está resolvida e tem alguém mandando.

Se o líder da vez parece ter regras claras sobre o que pode ou não pode fazer, muita gente fica mais calma, algumas até começam a nutrir sentimentos positivos por ditadores se acreditarem que estão do “lado certo”. Não é à toa que absolutismo funcionou por tantos milênios. As pessoas querem se acomodar, e quem oferece essa via tende a ter muito suporte popular.

Putin ganhou pontos ao encomendar covardemente a morte de mais um de seus desafetos. Pior, ainda o fez sorrindo, dizendo que perdoava e dando declarações “carinhosas” sobre Prigozhin ao confirmar sua morte em pronunciamento oficial. Se fosse uma pessoa qualquer armando o assassinato de outro com esse grau de frieza e dissimulação, provavelmente trataríamos como um pária. Mas como foi um líder usando isso para demonstrar seu poder e controle sobre o país, passa uma imagem de força.

Se você não está interessado em fazer amigos, respeito pelo amor ou pela dor dão no mesmo. A triste realização deste texto é que funciona fazer as coisas desse jeito escroto, provavelmente porque a maioria das pessoas não tem essa análise interna e só conseguem enxergar acúmulo de poder de um ditador como se fosse ele sendo bom no que faz.

O ser humano tem esse bug de fábrica de admirar até gente que faz coisas muito ruins, desde que pareçam fazer muito bem. Quanto mais poderoso o opressor, maior a chance das pessoas se submeterem e até começarem a ver coisas positivas. Isso mexe com um senso de controle sobre a realidade, por incrível que pareça, o cidadão parece se sentir empoderado quando seu ditador é poderoso também.

Claro, isso termina de forma terrível assim que esse ditador se volta contra você ou seu grupo, mas infelizmente essa lição é uma das mais difíceis de entender. Direita e esquerda modernas adoram flertar com autoritarismo, buscando líderes poderosos que moldem a realidade de acordo com suas crenças. Não importa que sempre acabem decepcionados com as decisões tomadas por esses líderes, continuam achando que o caminho tem que ser forçar os outros a pensarem como eles, e aceitam pagar com sua liberdade por essa ilusão de controle.

Putin existe porque o mundo permite que ele exista, e muitas vezes, até celebra suas ações horríveis. Como Sally bem disse, nada de valor foi perdido com a morte de Prigozhin e Utkin, mas isso não torna a atitude de Putin menos reprovável. Isso não faz o suporte nojento de Lula e Bolsonaro a esse ditador sanguinário menos nojento.

Faz tempo que eu digo que o compasso político pode estar para direita ou para a esquerda, desde que estejamos combatendo o autoritarismo. Não precisa virar libertário/anarquista, é só entender que temos um ponto fraco em relação a autocratas (Bolsonaro era o presidente da “liberdade”, Lula é o presidente da “democracia”), e um ponto cego em relação às barbáries que eles fazem para consolidar seu poder.

É horrível que Putin tenha saído mais forte dessa história, e é horrível admirar sua capacidade de eliminar dissidentes. Eu entendo o apelo, metade do texto foi sobre como isso traz uma noção de estabilidade para as pessoas, mas é um preço que não deveríamos querer pagar. Não podemos fazer vistas grossas para assassinatos covardes e repressão violenta só porque bate um sentimento de “ordem” quando vemos isso. Uma hora ou outra o ditador pode virar sua atenção para você, e aí é tarde demais para se arrepender das palmas que bateu para ele.

Para dizer que a saga do Bolsonaro era mais tema, para dizer que é só matar muita gente que as pessoas gostam, ou mesmo para dizer que estamos chorando pela morte de um mercenário mafioso (use o cérebro): somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • A Sally tirou as palavras da minha boca. Só a título de exemplo: na época da facada no Bolsonaro, teve um colega de trabalho do meu pai, esquerdista radical, com cargo em sindicato e tudo, que nos disse sem pudor nenhum que tinha comprado fogos e iria dar uma “churrascada épica” se o “Mito” morresse.

    • Aproveitando esse gancho, repito novamente um trecho de um comentário da época da facada no Bolsonaro, que foi “pescado” por mim, pasmem, nas redes sociais (!) e que eu acho que, de certa forma, também se aplica aqui: “Não importa se você é de direita ou esquerda. Se você comemora a tentativa de assassinato de um homem, seu caráter me assusta!”. A diferença é que, desa vez, o assassinato não ficou só na tentativa. E, assim como o UABO, eu também concordo com a Sally.

    • Pois é, aqui tentaram mais que avisar sobre horrores de qualquer homicídio e eu mesmo já fui breve “prevendo que viria estagnismo” sem sequer ter relacionado com uma tal “estima por acompanhar true crimes” que BMs “sofá ou cadeira” mantém tanto como está, alegorias à parte…

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