Comendo bicho.

Quem vive na cidade não tem muita ideia disso, mas ainda é muito comum nesse mundo que pessoas abatam e consumam animais que criaram por conta própria. Sally e Somir não tem nada contra o consumo de carne, mas entram em choque quando essa carne tinha um nome. Os impopulares devoram a questão.

Tema de hoje: é desumano comer um animal que você criou, deu nome, cuidou e estabeleceu uma relação?

SOMIR

Não. Isso é, se o animal em questão não for um ser humano. Existem diferenças pronunciadas entre a nossa espécie e as outras com as quais dividimos este planeta, e são diferenças suficientes para não mexer com a humanidade da pessoa que abate e consome a carne de um animal que criou, mesmo que tenha criado uma relação.

Eu já fui mais insensível sobre o tema, mas ainda mantenho que relações entre humanos e outros animais são altamente desproporcionais. Pessoas pensam de forma muito abstrata, vamos muito mais longe que qualquer outra forma de vida presente no planeta. Evidente que os outros animais podem formar laços conosco, mas muito cuidado com a ideia de achar que é algo igualitário.

Gostamos de animais de formas diferentes das quais eles gostam da gente. Por mais que consigamos enxergar alguns paralelos entre nossos sentimentos e suas expressões e atitudes, são mundos diferentes. Falta neurônio e refinamento, mesmo em espécies consideradas muito inteligentes.

Animais gostam da gente no limite das suas faculdades mentais. É algo mais utilitário, não porque eles sejam ruins, mas porque é até onde vai sua capacidade de abstração. A fidelidade de um cachorro vai longe, bem mais longe que a imensa maioria dos seres humanos, mas é algo baseado em seus instintos de vida em grupo. É algo parecido com um bebê humano, um ser que ainda não consegue entender exatamente o que está fazendo, mas é programado para gerar relações.

Parecido, mas não é igual, que fique muito claro. O ser humano vai refinando sua capacidade de formar laços com o passar dos anos, animais irracionais chegam num certo limite e não vão passar disso. O que acontece depois dessa linha limite do ser irracional é projeção humana. A gente é capaz de preencher as lacunas deixadas pelo bicho com a nossa mente. A relação entre humano e animal é fundamentalmente diferente da relação entre humano e humano.

Por isso que eu acredito que mesmo que uma pessoa tenha criado e tratado um animal como se fosse de estimação, não chega a ser desumano abater e consumir o bicho. É importante separar esse tipo de comportamento de coisas como tortura e execução aleatória, gente que maltrata animais normalmente está muito próxima de maltratar seres humanos. Estamos falando aqui de abater o animal com o explícito propósito de transformá-lo em comida, sem nenhuma sensação de prazer no ato de matar.

Mesmo que eu não me ache capaz de fazer isso, não é uma linha de humanidade sendo cruzada. Você tem todo o direito de não querer fazer isso, ou mesmo de ficar horrorizado(a) com alguém fazendo, ninguém é obrigado a gostar, mas daí a presumir que a pessoa fazendo uma coisa que se faz há milênios é sinônimo de desumanidade? Aí é passar do ponto.

Gostar de animais é diferente de achar que eles são humanos. O grau de complexidade mental deles é muito menor, eles não deveriam gerar respostas de neurônios-espelho parecidas com outros seres humanos. Ter empatia é uma coisa, misturar animais e humanos é outra completamente diferente. Não existe desumanidade ao matar um animal por fins utilitários, como no caso de consumir sua carne. Não é um humano.

Desde que seres humanos começaram a criar animais, isso acontece. Gente que cresce em ambientes onde animais são abatidos para virar comida se acostuma com isso e não vira serial killer por matar um porco. Gente que sempre viveu em cidades e só vê carne em açougue e prateleira de mercado tende a se impressionar com a ideia de transformas animais em comida, mas é só questão de costume.

O diferente assusta, parece bizarro. Mas é só isso, diferente. Se matar animais para consumo fosse sinal de desumanidade, a sociedade jamais teria saído da idade da pedra. O ser humano seria um completo sociopata, incapaz de se organizar e manter paz suficiente para desenvolver a sociedade que temos atualmente.

E digo mais, a mesma pessoa que abate um frango para comer pode ter um cachorro que jamais machucaria. Aliás, é o caso na maioria das fazendas desse mundo. Não tem nada quebrado na cabeça dessa pessoa, ela pode escolher como vai agir caso a caso, e nada sugere que pessoas que criam animais para consumo se tornam mais propensas a matar outros seres humanos.

É só um fato da vida, que pode ser incômodo, é claro, mas que não muda nada definitivamente na alma da pessoa. Animais são animais. Tudo o que projetamos neles além do que são capazes de pensar, sentir e expressar é coisa nossa. A humanidade está no que vai além desses animais, e não é um absurdo tratar o animal nesse limite. Nunca vai ser uma pessoa. O que define sua humanidade é forma como você enxerga outros seres humanos.

Atos que podem ser transferidos para outros seres humanos podem ser usados nesse caso, repetindo o exemplo da tortura: quem tortura animais claramente tem algo torto na cabeça, mas não por causa do animal, por causa do processo mental dela de fazer isso. Violência e crueldade sem funções utilitárias são sinais claros de problemas mentais.

Abater um animal criado por sua carne por milênios é completamente diferente disso. Não te torna menos humano. Não precisa querer fazer isso para entender que abater animais para carne não é desumano, é só cair na real. Não é uma pessoa, não é uma relação que se tem com uma pessoa, então obviamente não pode ser parâmetro de humanidade.

Para me chamar de caipira bronco, para dizer que seu pet é seu filho, ou mesmo para dizer que só é ruim quando o animal é bonito: somir@desfavor.com

SALLY

É desumano comer um animal que você criou, deu nome, cuidou e estabeleceu uma relação?

Sim.

Antes de mais nada, vamos estabelecer uma coisa: não estou dizendo que comer animais seja desumano. Sei que existem pessoas que pensam assim, mas eu não penso. Eu como animais. Animais são deliciosos. O que é desumano é comer um animal que você criou, deu nome, cuidou e estabeleceu uma relação.

Que tipo de pessoa fica de boa estabelecendo uma relação, um vínculo, um elo com um animal e depois o mata e o come?

Eu sei que é relativamente comum, principalmente nos interiores de qualquer país, mas isso não quer dizer que seja aceitável. Também acontece de pessoas fazerem sexo com animais no interior e isso está longe do aceitável. Então, guarde o argumento do “acontece”, que aconteça não quer dizer que não seja desumano.

Provavelmente quem o faz nem não o faça por maldade, acredito que quem cria um vínculo com um animal e depois o mata tem um grau baixo de consciência, é uma pessoa incapaz de aprofundar sentimentos e relações a ponto de se importar. Tá tudo certo, não estou dizendo que essas pessoas tenham que ser punidas nem nada, estou dizendo que eu acho desumano.

No meu entender, uma pessoa com um grau mínimo de consciência, empatia e disponibilidade emocional não consegue criar um animal, dar nome, cuidar, estabelecer uma relação e depois matar e comer como se nada. Existe uma trava emocional em pessoas menos brutas que te impede disso e eu acredito que seja um ato desumano por parte das pessoas que não possuem essa trava.

Não que as pessoas necessariamente sejam desumanas, o ato é desumano. Talvez sejam bons pais, boas mães, bons maridos, boas esposas, bons filhos… mas esse ato específico de devorar o bichinho com o qual tinham uma relação é desumano. Algo falhou no caminho, algo quebrou, algo deu errado e não foi possível concluir um vínculo de amor, carinho e compaixão com o animal.

Estabelecer um relacionamento com um animal não é uma mão de via única, é uma mão de via dupla: você dá e recebe e o animal dá e recebe. Animais como vacas, porcos e outros animais “comestíveis” são totalmente capazes de criar um laço de afeto com humanos: respondem pelo nome, retribuem carinho, demonstram sentimentos. Ficar indiferente a isso me parece bastante desumano.

Qualquer pessoa madura e adulta sabe que sentimentos não são controláveis no campo do racional. O “escolho não me envolver” é uma das ilusões de controle mais infantis que existem. Quem cultiva uma relação na qual há reciprocidade com um bichinho e depois o mata e o come está em um grau de anestesia que certamente não é voluntário, é praticamente uma deficiência emocional.

Assim como existem pessoas deficientes físicas, que possuem alguma limitação (andar, ver, ouvir) existem pessoas com deficiências emocionais, que possuem limitações no campo emocional e afetivo. Não se fala muito sobre isso pois o brasileiro é, em sua maioria, um povo muito tosco, então, quando quase todo mundo é deficiente, essa passa a ser a normalidade. Mas sim, existem pessoas que não são completamente capazes de certas emoções ou de aprofundar certas emoções pelos mais diferentes motivos.

Existem pessoas incapazes de amar, existem pessoas incapazes de sentir compaixão, existem pessoas incapazes de se colocar no lugar dos outros. E não necessariamente isso está associado a maldade. Acredito que esteja mais relacionado ao que essas pessoas receberam em matéria de emoções quando crianças, o que lhes foi dado, o que lhes foi ensinado.

Então, sim, é possível que uma pessoa seja boa, de bom coração, mas seja rudimentar o suficiente para cometer uma tosquice como essa. Novamente, não é sobre maldade, o ato é desumano, a pessoa não.

Vejamos por outro ângulo. Sabe aquele pai que pega uma aranha e joga dentro da blusa do filho que tem fobia a aranha “para ele perder o medo”? É mais ou menos o mesmo princípio: o que a pessoa faz é escroto, é contraproducente, é desumano, mas ela não faz por maldade e sim por tosquice, por falta de consciência, por ser retardada emocional.

Eu sei que o que está em alta na atualidade é sacanear quem projeta muitos sentimentos em bicho, ridicularizar mãe de pet e querer se distanciar desse pessoal que, sinceramente, também não bate muito bem das ideias. Mas estamos falando de outra coisa aqui. Você acha normal matar e comer um animal com o qual você construiu uma relação?

Não é sobre botar roupinha e chamar de filho. Não é sobre beijar a boca de bicho. É matar e comer, sabe? É o último patamar de descaso. Não é só matar, é comer também. Não é sobre um peixe ou um animal inerte que não interage, a pergunta diz claramente que é um animal com qual se “estabeleceu uma relação”, ou seja, se há uma relação, há uma troca, existe algo bilateral.

Então, são lados opostos da mesma moeda: está em desquilíbrio quem trata pet como filho e está em desequilíbrio quem cria uma relação com um animal e depois o mata e o come. Criar uma relação pressupõe um mínimo de envolvimento, afeto e cuidado. Se a pessoa não é capaz disso, tem algo quebrado dentro dela.

Sim, existe uma diferença enorme entre um porco que eu nunca conheci e um porco que eu criei desde pequeno, brinquei, dei nome, fiz carinho, convivi diariamente. Quem não consegue perceber isso está com um bloqueio muito claro no campo das emoções.

Assim como ninguém se sente confortável para fazer sexo com o irmão/irmã, apesar de ser um ser humano exatamente igual a outro qualquer, por uma trava social, o mesmo deveria valer para ingerir seres vivos com os quais criamos um relacionamento. Se essa trava não disparou, me desculpe, mas quem comeu o bichinho cometeu um ato desumano.

Todos nós cometemos atos desumanos eventualmente, se não nessa escolha, em outras. Somos humanos, somos imperfeitos. Não é sobre recriminar ou punir e sim sobre reconhecer que uma trava sentimental falhou quando a pessoa é capaz de matar e comer um animal com o qual tinha uma relação.

Para dizer que você está horrorizado só de pensar que alguém faça isso, para dizer que você está horrorizado só de pensar que alguém não faça isso ou para dizer que concorda com ambos mesmo quando nossas teses são excludentes: sally@desfavor.com

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Comments (20)

  • Wellington Alves

    Quando eu tinha 05 anos, minha mãe apareceu com uma galinha em casa e criava solta no quintal. Eu achava o máximo ficar brincando com ela. Dava milho, corria atrás dela… me lembro quando um belo dia descobri um ninho de ovos escondido no meio do mato. Nossa, foi como encontrar um tesouro! Levei Para minha mãe ver e ela fez para nós comermos. Até aí tudo bem. porém, infelizmente eu não sabia que ela tinha segundas intenções para com a galinha e um belo dia, quando acordei, fui procurar a galinha e não encontrei. Fui falar pra minha mãe que a galinha tinha fugido e ela disse que tinha levado pra vizinha matar e fazer um ensopado. Eu não acreditei muito, até que na hora do almoço estava lá a tigela com um suculento ensopado de galinha bem no centro da mesa. Fiquei muito triste, chorando, e obviamente não comi minha amiguinha.

    • Onde entra sentimento, sai racionalidade. Quando nos apegamos a um ser vivo, não adianta todo o discurso possível para justificar a sua ausência: ela será sentida. Quero dizer, por pessoas que não estão mortas por dentro, é claro.

  • “O que acontece depois dessa linha limite do ser irracional é projeção humana.”
    Você poderia aprofundar essa ideia?
    E aproveitando o ensejo, qual a sua visão do famoso “teste do espelho”?

  • Não consigo sequer imaginar a possibilidade de cuidar de um animar, me apegar a ele e depois comê-lo, acho muito cruel. Já li histórias de famílias que cozinhavam animais de estimação dos filhos e os obrigavam a comer depois, a maioria ficava traumatizada e costumavam ser famílias bem abusivas. Minha mãe também ficou horrorizada na época em que comentei dessas histórias com ela, e ela detesta animais no geral.

    Vou concordar com a Sally. Não tenho nada contra comer animais, consumo em meu dia a dia e acho até que conseguiria matar e comer algum se precisasse. Mas nunca conseguiria sequer pensar nisso se tivesse formado um vínculo.

    • Também já soube de histórias assim, Paula. Realmente, é um absurdo fazerem essas monstruosidades. E eu concordo tanto com você quanto com a Sally.

  • Tenho duas tias que passaram fome no Japão no pós-guerra. Enchem a gente de comida em qualquer visita e nas festas (e nos fazem levar tudo que sobrou pra casa), assim como deixam seus cães gordos de tanto comer, por trauma de não poder se dar ao luxo de poder manter animais de estimação vivos naquela época, sobretudo os porquinhos da roça onde moravam (ou morreriam de inanição tomando só sopa da água do arroz cozido, destinado preferencialmente para os bebês). Como dizia outro tio meu, veterano de guerra, só gosta mesmo de guerra quem nunca lutou numa.

    • Nesse caso eu entendo perfeitamente: não julgo seres humanos que estão passando fome, nem mesmo quando comem outros seres humanos, como foi o caso dos sobreviventes do acidente nos Andes.

    • “Só gosta mesmo de guerra quem nunca lutou uma”. Exatamente… aqui muitos adolescentes e jovens adultos estão tomando um choque de realidade brutal com a guerra da Ucrânia. Garotada que saiu de ônibus-trem-carona para “lutar pela democracia” achando que era videogame e está voltando em sacos plásticos (quando acham o corpo) ou com traumas indeléveis (trauma de guerra fica para sempre). Muito, mas muito triste. Deviam ter passado “Vá e veja” em todas as escolas e cinemas no começo do ano passado…

  • Tem 2 formas de criar, o meu cachorro e meu gato são meus pets. Se eu tiver tipo uma galinha, porco etc vai ser criação pra comer. A minha avó tinha uma galinha de estimação, então essa não era pra comer. Tem diferença. O que não dá é pra comer o animal que a pessoa tem como pet.

    • Eu concordo totalmente com você. Existem essas duas possibilidades.
      E na nossa pergunta nós estamos falando de animais com os quais se construiu uma relação. Me parece bizarro comer animais com os quais se construiu uma relação.

    • Concordo com vocês dois.
      Tenho essa experiência do “pet vs criação”, e nunca tive problema em matar aves, peixes, anfíbios e outros para fins alimentares. Mas comigo existe um limite onde essa distinção não funciona, onde eu não consigo mais fazer o abate, e o meu limite são mamíferos. Eu como sem nenhum problema se outra pessoa fizer o abate, ou se vier “do açougue”. Mas eu não consigo olhar para um carneiro/cavalo/cabra/coelho/etc mesmo que seja “de criação” e não sentir um tipo de identificação que não tenho com os outros grupos. Para os outros, o meu limite é o “abate ético”, e eu não costumo comprar produtos animais sem saber a origem.

  • É desumano comer um animal que você criou, deu nome, cuidou e estabeleceu uma relação?

    Na minha opinião não, só quero perto de mim os animais que possam ir para uma panela, de resto podem ficar nos seus habitats.

  • Quase 100 anos atrás, meu já falecido avô, que passou a infância literalmente “na roça”, tanto no sentido geográfico quanto no financeiro, passou por uma situação que o traumatizou pro resto da vida. Depois de ver um galináceo sendo abatido, ele nunca mais conseguiu sequer olhar pra frango, nem em supermercados ou restaurantes.

  • Eu comi e foi no sentido literal. Odeio esse sentimentalismo excessivo da molecada metida a defensora dos catioros e dos gatineos dando moral para gente como a ex-marmitinha do Dallevo.

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