Se meu pet falasse…

É comum falar com animais de estimação, o problema é quando eles respondem. Mas no tema de hoje, Sally e Somir não falam sobre transtornos mentais, e sim sobre uma hipotética situação em que isso pode acontecer. Os impopulares falam.

Tema de hoje: você gostaria que seu pet pudesse falar?

SOMIR

Sim. Eu apoio formas mais eficientes de comunicação. Não é que eu esteja muito curioso sobre o que pensa um animal com o cérebro do tamanho de uma azeitona, mas a vida me ensinou que quanto mais nos comunicamos, menos problemas temos.

Aqui a gente tem que separar dois cenários: no primeiro, o animal é capaz de falar, mas mantém a sua cognição mais ou menos onde já está; no segundo, ele evolui ao mesmo tempo uma capacidade de abstração e profundidade compatível com seres humanos. Nos dois casos eu acredito que tenhamos vantagens.

Um animal capaz de falar mas que não subiu demais suas faculdades mentais provavelmente vai apenas comunicar seus desejos instintivos com mais precisão. Vai continuar uma relação totalmente desigual no campo cerebral, mas com menos confusão. Mesmo que a Sally jure que saiba interpretar tudo o que seus bichos demonstram, eu sou bem mais cético: eles são tão menos inteligentes que nossas estruturas lógicas não se cruzam.

É uma versão hardcore da mulher pensando se o homem está chateado com algo que ela disse e ele na verdade estar incomodado porque o time dele perdeu o jogo. É inevitável que contaminemos nossa percepção da realidade pelo nível de sofisticação que temos. Mulheres tem uma “resolução sentimental” mais alta que homens, então tendem a enxergar mais nuances e detalhes em algo que para nós é bem mais direto.

Argumento que isso acontece com animais também. Pessoas presumem coisas sobre os bichos que são simplesmente complexas demais para eles. Quantas vezes você já não ouviu alguém dizer que seu cachorro sabe reconhecer pessoas boas? É uma baboseira óbvia. Seria muito mais educativo que o cachorro dissesse “cheiro de bacon” ao chegar com o rabo abanando perto de alguém. O bicho simplesmente não tem profundidade para mais do que isso.

Mesmo que você não tenha essa retardadice de achar que bicho precisa de psicólogo e que guarda pensamentos profundos dentro de sua caixa craniana, ainda sim o risco de complicarmos o que é simples vai sempre existir. Animais falantes com cérebro compatível com o formato atual diriam apenas algumas coisas como “fome”, “medo”, “frio”… não quebraria a relação ancestral que temos com eles. Só seria algo mais eficiente no dia a dia. Não existe cérebro ali para desenvolver frases complexas, não existe nem memória suficiente para manter uma conversa de mais que alguns segundos.

Seria o mundo ideal: bicho ainda sendo bicho, mas extremamente eficiente na comunicação. Nos dois sentidos, inclusive. Porque quem sabe falar “fome” vai entender “comida”. Você pode mandar o bicho para outro cômodo, pedir para ele ficar quieto… se ele não obedecer, até mesmo a punição vai ser mais lógica, porque você vai poder dizer a palavra-chave. Aponta para o cocô no chão e diz “não”. Seria ótimo.

Segundo cenário: o animal ganha capacidade elevada de compreensão, abstração e consegue conversar. Bom, aí eu até cedo o ponto que nossa relação com os animais mudaria, porque eles chegariam perigosamente perto de crianças. Não estou apostando em animais muito inteligentes, até porque considerando a capacidade média do ser humano, nem mesmo com cérebro avantajado é comum.

Num nível razoável de uma criança pequena, o animal ainda teria muito do carisma que tem, porque ainda vão nos ver como pais/líderes, e ainda vão ter sentimentos bem simples de compreender. Concedo o ponto que poderiam falar muita besteira como crianças falam, mas já lidamos com crianças falando todo tipo de coisa socialmente reprovável sem estragar a vida em sociedade.

Cachorros, gatos e afins teriam o mesmo passe livre para falar coisas erradas. E daria para colocar na conta da inocência infantil do mesmo jeito. Não sei se eu preferiria isso ao cenário original de apenas algumas palavras, mas acho que seria melhor do que a versão atual de comunicação, baseada em chutes (alguns mais bem informados que outros).

Crianças podem ser irritantes, é claro, mas tem uma certa graça uma conversa bem simples com alguém que não tem muita capacidade de mentir e disfarçar sentimentos. Seu cachorro poderia até tentar mentir que não mastigou seu sapato, mas ia ser uma mentira tão tosca que até teria graça. E como acontece com crianças, a índole dela seria diretamente relacionada aos seus criadores. Gente merda criaria pets que falam coisas merdas, gente razoável criaria pets razoáveis.

Pode ser cansativo falar com seu gato sobre como ele quase pegou o passarinho pela centésima vez, mas pelo menos ele seria fácil de distrair também. Quase tudo o que funciona com criança funcionaria com bicho, tirando o tablet, porque polegares opositores fazem muita falta. Se você é capaz de conviver com uma criança que criou, é capaz de conviver com um animal falante.

E eu nem vou considerar o caso de um animal realmente inteligente, tipo o Brian do Family Guy, nesse nível de cognição seria tudo muito estranho. Mas aí eu acho que sai demais da lógica desta conversa e não seria muito diferente de ter um anão morando na sua casa. Uma outra pessoa adulta com todos os problemas de pessoa adulta, mas que não alcança as prateleiras.

Dentro de uma lógica razoável de inteligência animal, não vejo a gente perdendo muita coisa com os bichos falando, mas vejo um ganho considerável de qualidade de vida das duas espécies ao poder se comunicar de forma eficiente.

Para dizer que não quer mais falação na sua vida, para dizer que seu sonho é um(a) parceiro(a) mudo(a), ou mesmo para dizer que a humanidade ia acabar em duas gerações porque todo mundo ia preferir pet a filhos: somir@desfavor.com

SALLY

Você gostaria que seu pet pudesse falar?

Claro que não! Vocês estão malucos? Vocês perderam o juízo? Um pet que fala se transforma em um filho, a demanda aumenta 500%.

Qualquer bom tutor sabe reconhecer o que seu pet está sentindo pela linguagem corporal, pelos sons, pelo olhar e por uma série de outros sinais e comportamentos. Se você tem uma boa conexão com seu pet e uma relação de confiança e amor, não precisa que ele fale para compreendê-lo ou para que ele compreenda a você.

Portanto, não vejo nenhum benefício em que animais de estimação falem. Fala é algo humano, se o pet fala, ele deixa de ser um pet e se aproxima mais do ser humano, ou seja, ele piora.

Para começo de conversa, vai se perder essa dinâmica maravilhosa e tão necessária de olhar para o outro. Ao não falar, existe a demanda que você observe seu pet, que esteja atento a ele, que realmente preste toda sua atenção para saber se ele está bem ou entender o que ele quer. E isso, hoje em dia, é um exercício muito valioso.

Quem investe em observação, em troca de olhares, em leitura de expressão se não precisar efetivamente fazê-lo? “A pessoa que fale o que quer, eu não vou ficar adivinhando”. Só que às vezes nem a própria pessoa sabe, entende ou consegue expressar o que quer (principalmente se for uma criança ou um idoso), tornando necessária a observação e a expertise em reconhecer sinais não verbais.

Se o seu cachorro o seu gato pudesse te dizer “estou com medo”, você certamente o observaria menos, pois saberia que quando ele sentisse medo ele iria até você e te demandaria verbalmente. Acontece com humanos, aconteceria com pets: no minuto em que conseguem se expressar com fala, passam a receber menos atenção.

Além disso, um pet que fala seria muito mais ruidoso. Animais equilibrados só vocalizam em situações muito pontuais, pois conseguem se comunicar, se fazer entender, serem olhados e atendidos de outras formas. No momento em que a verbalização virar a fonte primária de comunicação, ela será muito mais frequente. Não, obrigada, eu prefiro uma casa mais silenciosa. Estar atenta ao outro não me incomoda, gente falando no meu ouvido o tempo todo sim.

A dinâmica entre humanos e pets dura muitos, mas muitos anos e funciona bem como está. Seria pedir demais para não estragarmos isso também? Uma verdade inconveniente: muita gente só tem animal de estimação pois acredita que eles são sinônimo de aceitação e amor incondicional. Um pet não te contraria, não te critica, não discorda de você… por não ter ferramentas para fazê-lo.

A partir do momento em que animais de estimação começassem a falar e, consequentemente, discordar ou criticar seus tutores, muita gente desistiria deles por se sentir traída, magoada ou enganada. Acho até que veríamos muitos animais abandonados por aí. Gente que rompe relações com a própria família por causa de política não hesitaria em jogar um pet na rua por se sentir ofendida ou decepcionada.

Outro ponto relevante é: se animais conseguem falar, eles também conseguirão entender o que nós humanos estamos dizendo e, francamente, animais não merecem seres expostos ao chorume que é o discurso médio de um ser humano. Contaminaríamos (mais) os coitados com nossas neuroses, medos e egocentrismo. Melhor que continuem sem entender, assim ficam protegidos da toxicidade e do desrespeito do ser humano.

Mais um ponto que talvez vocês ainda não tenham pensado: você quer mesmo que um ser que vê absolutamente tudo que se passa na sua casa, na sua vida e às vezes até no seu banheiro possa falar para contar? Pois é, foi o que eu pensei.

Tem ainda o grande trabalho que daria explicar aos pets falantes as regras do mundo. Não dá para sair falando tudo que você pensa (para isso você tem que criar um blog chamado “Desfavor” hahaha). Imagina ter que explicar para um ser que acabou de aprender a falar e que tem o cérebro de uma criança de cinco anos, que certas coisas não podem ser ditas? Provavelmente, pela cognição deles, não conseguiríamos moldá-los de acordo com as complexas regras humanas de aceitação social.

Isso significa que, a menos que a pessoa fosse muito correta e honesta, ninguém com cachorro ou gato em casa poderia receber vistas: “ela disse que você é um arrombado” e outras fases piores poderiam escapar da boca dos nossos sincericidas pets.

Para piorar, um pet que fala seria sugado por demandas sociais humanas, um verdadeiro inferno. Presenciou um crime? Teria que prestar depoimento, ser testemunha em juízo, etc. Eu amo muito os animais para arrastá-los para essa sociedade escrota, burocrática e doentia. Deixa eles quietinhos, vivendo sua vida simples.

A verdade é que não seria bom para nós, humanos, nem para eles, pets. Acho até que seria pior para eles, pois teriam que lidar com toda a disfuncionalidade, neurose e problemas humanos, coitados.

Animais nos ajudam a cultivar essa sutileza do não dito, a exercitar o olhar ao outro, a aprimorar uma comunicação silenciosa que, apesar de ser muito desvalorizada atualmente, é extremamente importante. No que depender de mim, continuam sem falar.

Para dizer que se pet falasse metade das casas estariam brigadas com seus pets, para dizer que nunca tinha pensado em nada disso ou ainda para dizer que não queria nem que a sua família fale: sally@desfavor.com

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