Domesticando.

O ser humano compartilha o mundo com incontáveis espécies de seres vivos, e apesar de muitos sucessos, a imensa maioria delas não pode ser considerada domesticada. Sally e Somir discutem sobre qual delas poderia ser mais eficiente se colocada sob nosso controle. Os impopulares ficam livres.

Tema de hoje: se você pudesse domesticar uma espécie para o benefício da humanidade, qual escolheria?

SOMIR

Chimpanzés. E não, chimpanzés não estão nem perto de estarem domesticados. Cachorros, gatos, vacas, porcos… esses sim foram imensamente modificados para melhor suprir nossas necessidades. Chimpanzés ainda são animais selvagens, mesmo quando são criados por humanos desde pequenos. O chimpanzé na natureza é basicamente o mesmo animal criado em cativeiro.

Consideramos domesticados animais que vivem em função do ser humano; claro, muitos conseguem se virar sem a gente, mas vão se tornando versões mais selvagens a cada geração que ficam longe de nós. Minha ideia de domesticar os chimpanzés é muito baseada na capacidade física e especialmente intelectual do animal: se tiramos o que tiramos do cão, imagina só de um “primo” tão próximo como esse grande primata?

Na escala evolutiva, esses animais bateram na trave para desenvolver as características que nós, humanos, temos. Eles têm um cérebro grande, são onívoros, tem imensa destreza e até mesmo polegares opositores para utilizar ferramentas complexas. E se não bastasse, ainda tem o conceito de sociedade nos seus instintos.

Evidente que existem diferenças fundamentais no limite da sua capacidade intelectual, não dá para esperar que eles simplesmente entendam coisas como linguagem avançada ou mesmo senso de justiça, mas para funções mais básicas da nossa vida em sociedade, eu vejo tremendo potencial na adoção de uma espécie de “irmão menor” da humanidade.

Irmão menor em altura e inteligência, porque em força e destreza geral, eles são bem melhores que a gente. Já viu um chimpanzé depilado? Fica parecendo que colocaram um albino num concurso de fisiculturismo. E um com grandes chances de ganhar. Debaixo dos pelos, é músculo puro. Tanto que é considerado um animal muito perigoso de ter como de estimação porque qualquer surto pode matar ou incapacitar até mesmo um humano adulto, dos fortes.

Domesticar o chimpanzé seria retirar a maior parte da agressividade dele, tornando-o no mínimo tão dócil e submisso como um cachorro (saudável, não aquelas aberrações genéticas como cão de madame e pit-bull). Ainda teria todo o risco de viver ao lado de um bicho que pode te matar em segundos, mas se a imensa maioria for muito confiável, provavelmente teremos mais “seleção natural” de gente sofrendo com animais que criou errado do que surtos aleatórios. As pessoas podem colocar um cão gigante do lado de uma criança, o chimpanzé não seria tão fora do padrão assim.

Imagine um chimpanzé bem manso. Um que inclusive vem de fábrica com um desespero por aprovação do líder como um cão, por exemplo. O número de truques que poderíamos ensinar para eles é exponencialmente maior que qualquer outro animal. Ele consegue se locomover tranquilamente por nossos ambientes, consegue alcançar vários lugares a mais pela capacidade de escalada, e ainda tem polegares opositores numa mão grande e forte para segurar e carregar quase tudo o que uma pessoa consegue.

E tem mais: existem muitos experimentos demonstrando que a memória de curto prazo do chimpanzé é anos-luz melhor que a nossa. Se você conseguir fazer ele se concentrar numa tarefa, ele não se confunde e esquece o que estava fazendo. Claro, temos que considerar que assim como uma criança, ele não vai ter foco de longo prazo e vai precisar de pausas e recompensas constantes. É muito possível tratar um chimpanzé como algo parecido com uma criança sem abusar do seu trabalho.

Muitas tarefas difíceis para nós seriam triviais para um chimpanzé, guardar coisas num lugar alto, coletar frutas, ir e buscar objetos. Se um influencer pode fazer, um chimpanzé pode! E eu quero deixar claro que não é meu objetivo criar uma espécie de escravos, bicho não é gente, mas nós somos: tratamento humanitário parte do ser humano.

Eu penso em algo como um cão mesmo, um animal que fica na sua propriedade e serve tanto como companhia como para outras funções simples. Não é visto como trabalho cruel deixar o cão vigiar sua casa, não seria trabalho cruel ter um chimpanzé manso para te dar duas (eventualmente até quatro) mãos em pequenas tarefas.

Com o tempo, eles poderiam virar uma força de trabalho, meio como robôs guiados por um humano. Salvo implantes cerebrais, eles estão há centenas de milhares de anos de pensamento abstrato complexo, claro que seriam trabalhos bem braçais, e claro que deveríamos pensar em muitas regulações para evitar abusos, mas nenhum outro animal neste planeta tem tanto potencial de trabalhar em conjunto com a gente como o ser geneticamente mais próximo do humano na atualidade.

Quando eu penso em domesticar uma espécie, eu penso em ganhos de longo prazo, não em soluções pontuais. O chimpanzé pode ser treinado de formas cada vez mais complexas até realmente começarmos a nos perguntar quanta autonomia eles deveriam ter. Outras soluções, por mais interessantes que sejam, batem numa parede de limitação intelectual extrema: o bicho que não tem potencial de evoluir para algo próximo de nós sempre vai ser loteria. Qualquer distração e eles começam a fazer coisas que não somos capazes de prever.

Por isso eu aposto em manter as coisas em família.

Para dizer que pior que brasileiro não pode ser, para dizer que bicho inteligente fica longe da gente, ou mesmo para dizer que eu não vi Planeta dos Macacos para saber como isso termina: somir@desfavor.com

SALLY

Se você tivesse o poder de domesticar apenas uma espécie de animal para que toda a raça humana possa usufruir dessa relação, qual seria?

Mosquitos.

“Mosquitos, Sally?”. Sim, mosquitos. Com um pouco de boa vontade, minha explicação vai fazer sentido para você.

Eu acho extremamente escrota a ideia de pegar qualquer outra espécie e botar para executar as nossas tarefas. Seria uma forma de escravidão, não gosto da ideia. Cada espécie que resolva seus problemas e cumpra suas funções. Não colocaria nenhum animal para trabalhar em fábricas, fazer tarefas domésticas ou cuidar de qualquer responsabilidade que seja inerente ao ser humano.

Exemplo: eu posso andar? Posso. Eu posso me deslocar de outras formas, com transporte? Posso. Por qual motivo vou montar em um cavalo? Por lazer? Não, obrigada. Acho sacanagem. Não é natural do cavalo andar com alguém no lombo.

Quando falamos de animais já domesticados que apenas exercem uma atividade natural e rotineira, não vejo problema. Exemplo: cães farejadores em aeroportos. Farejar é algo que cães gostam de fazer e fazem naturalmente.

Mesmo os que não são treinados devem ter o faro estimulado por brincadeiras (esconder um brinquedo para que o cão o encontre pelo olfato, por exemplo). Nesse caso, não vejo nenhum problema, já que é algo que o animal faz naturalmente e que é recomendado que faça.

Então, estabelecida de forma clara esta diferença, eu jamais usaria qualquer animal para fazer o que é meu dever fazer. E, quando se parte dessa premissa, não sobra muito para pedir a eles em matéria de execução de tarefas.

Então, levando em conta essa ressalva, qual seria o interesse em domesticar qualquer animal? Tentar prevenir doenças. Se fosse possível treinar mosquitos para não picarem seres humanos, evitaríamos uma infinidade de doenças (para as quais nem sempre existe cura ou tratamento). Não quero força de trabalho animal, me contento com que eles não nos matem.

Quando pensamos em animais letais automaticamente pensamos em carnívoros: tubarões, leões, jacarés. Mas o animal que mais mata seres humano é o mosquito, através da transmissão de doenças. São quase um milhão de mortes por ano graças a esse bichinho. Então, se é para pedir colaboração e domesticar um animal, que tal ser o que mais nos mata?

Não falo apenas de doenças tropicais com as quais você provavelmente nunca vai entrar em contato, como a Malária. Falo de doenças que estão no seu cotidiano.

A segunda doença em matéria de letalidade transmitida por mosquitos é a dengue. Estima-se que quase 4 bilhões de pessoas corram o risco de contrair dengue no mundo e vocês, brasileiros, que poderiam estar com uma vacina no braço, mas não estão pois Lula é a mesma merda que Bolsonaro, podem morrer em decorrência da doença.

E mesmo quando o mosquito não nos mata, ele pode gerar sequelas e problemas para a vida humana. Um exemplo é a microcefalia causada by Zika vírus. Ou afetam outros seres que amamos, como nossos pets, que podem ter várias doenças graves e letais geradas por mosquitos.

“Mas Sally, se o mosquito não te picar ele morre de fome”. Não é bem assim. Mosquitos não vivem de sangue humano. Como regra, apenas as fêmeas picam e não para “comer” e sim para conseguir proteínas que existem no sangue para produzir ovos. Então, ninguém vai morrer de fome. E mesmo os mosquitos que de alguma forma precisem de sangue, não dependem de sangue humano, podem picar outros animais.

Mosquito é um bicho que está presente em praticamente o mundo todo. Existem mais de 3000 espécies e a maioria se reproduz muito rápido. Por uma confluência de fatores (inclusive sorte), as doenças que eles transmitem podem ser de alguma forma controladas sem que causem uma enorme quantidade de mortes rápidas, mas… até quando?

Pode acontecer de alguma doença letal aparecer e ser disseminada por mosquitos. Eu ficaria bem mais tranquila se eles pudessem ser treinados para não picar humanos. E mesmo sem uma doença letal que dizime milhões, a vida seria muito mais confortável sem mosquitos nos atormentando.

Para causar um extremo incômodo um mosquito não precisa transmitir uma doença letal. Quem já teve um mosquito zumbindo na orelha à noite ou quem já foi massivamente picado e passou dias se coçando sabe disso. Dependendo do país e do clima, mosquitos podem importunar o ano todo, atrapalhar o sono.

Se eliminássemos da equação o risco de doenças provocadas por mosquitos, além do benefício em saúde, certamente também teríamos um benefício indireto de não ter que usar tanta química: repelente, inseticida e simulares. Não apenas para o planeta, mas para nós, humanos, que esfregaríamos menos química em nossas peles e em nossas casas.

São muitos benefícios e não escrotizariamos nenhum animal nem geraríamos um desequilibro no ecossistema. Como brinde, traríamos um tiquinho mais de igualdade para esse mundo, ajudando aqueles menos favorecidos que não tem tantos recursos para se proteger de mosquitos como nós.

Para fazer um longo discurso defendendo montar a cavalo (se poupe), para dizer que deveriam redomesticar os gatos pois eles só fazem o que querem ou ainda para dizer que o ideal mesmo seria domesticar o ser humano: sally@desfavor.com

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