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Colunas

Débito antigo.

Já que tanto se fala em olhar para o passado e desfazer nossos erros históricos, Sally e Somir resolveram olhar para a questão por outro ângulo e procurar outras situações menos discutidas. Os impopulares pedem sua reparação.

Tema de hoje: que “reparação histórica” você implementaria se pudesse?

SOMIR

Igrejas pagarem todos os impostos devidos. Essa história de tratar organizações religiosas como isentas de pagamento de impostos tem um motivo teórico e um realista. O teórico é que igrejas e afins prestam um serviço para a sociedade que corrobora com os objetivos do Estado; o realista é que sacerdotes sempre estiveram enfiados no meio do poder e conseguiram arrancar essa vantagem das nações em troca de manterem o povo mais manso.

O que eu argumento que é estelionato em ambos os casos.

Sim, existem ações realizadas por grupos de origem religiosa que trazem resultados positivos para a sociedade. Muitos hospitais são mantidos por igrejas, vários projetos sociais são tocados por fiéis, e nesses casos não tem muito o que discutir: isenção de impostos faz sentido. Se você está trabalhando com os mesmos objetivos do Estado e sendo minimamente eficiente, faz sentido não ter que pagar impostos como uma empresa normal.

Porém, a isenção não é focada nessas ações. Não é o hospital mantido pela igreja que deixa de pagar impostos, é a igreja que mantém o hospital. E isso faz muita diferença. Religiões organizadas tem vários custos extras relacionados com a captação e manutenção de fiéis, seja na construção de igrejas, seja no pagamento de funcionários especializados em pregar os ensinamentos dela. E isso não é terceirizar função do Estado.

Estado que é laico. Ou seja, não tem religião. Não é parte da Constituição brasileira fazer com que o cidadão acredite em Jesus, Buda ou Exu. Não faz sentido que o ato de colocar na cabeça do cidadão médio essa crença seja considerado elemento não tributável. Quer ajudar com saúde ou assistência social? Excelente, abençoados sejam aqueles que praticam sua religião ajudando ao próximo. Quer aumentar sua operação de expandir a popularidade da sua religião? Aí você está advogando em causa própria.

Todo mundo que trabalha por conta própria ou em prol de uma organização que não é ou acompanha os objetivos do Estado tem que pagar imposto. Simples assim. Essa liberação geral de pagamento de impostos já seria bizarra numa entidade centralizada como a Igreja Católica, onde em tese você pode ver para onde vai o dinheiro, imagina só para a fábrica de franquias que é a vertente evangélica do cristianismo?

O pastor compra carrão com dízimo de miserável, e não precisa pagar imposto se souber usar o abençoado CNPJ de entidade religiosa. Todo o dinheiro que não vai diretamente para desenvolvimento e manutenção de projetos efetivamente relacionados com serviço público definido pela Constituição deve ser taxado de acordo. Estão devendo bilhões, aliás… trilhões de dólares ao redor do mundo. Junte todas as religiões que se beneficiam dessa evasão fiscal sagrada e temos dinheiro para melhorar, e muito, os serviços prestados à população.

Dinheiro que foi usado para aumentar o poder de pessoas usando religião para subir na vida. Há um claro desvio de propósito se a isenção de impostos tinha por objetivo incentivar ações de apoio ao Estado. O que me leva ao segundo ponto: nem com a análise mais cínica sobre a função de controle populacional da fé pode-se defender o valor agregado pela religião.

Nem nos tempos em que a Igreja Católica basicamente mandava na Europa tínhamos serviços bem prestados. Reis eram depostos do mesmo jeito. E podemos ver no Brasil como religiosos são usados como massa de manobra para eleger corruptos e pressionar governantes para defender interesses muito pessoais dos líderes das religiões. O governo Bolsonaro abriu as pernas para os evangélicos, perdoou dívidas e até aumentou as isenções… o povão foi lá e votou no Lula do mesmo jeito.

Fica claro que as organizações religiosas nem para vender influência servem direito, pudera, estão mais interessadas em se defender e aumentar arrecadação. Mesmo que comprar votos com padres e pastores fosse legal, não é garantia nenhuma de sucesso. Até para o que deveria ser crime, as igrejas não entregam o prometido. Se bem que… esperar o que para quem te vende a ideia de que “vai te pagar de volta depois que você morrer”? Quando a coisa já começa errada, fica difícil mudar os rumos.

Religiões organizadas foram um ralo de recursos durante nossa história, como eu já disse, tem sim partes delas que merecem ser isentas, mas não o todo. O todo existe como uma empresa tradicional com um projeto social aqui e acolá. Imagina tirar todos os impostos da Vale ou do Itaú, por exemplo, por causa de projetos sociais pontuais? Bacana que façam isso, mas não é a função da organização, é apenas projeto paralelo.

Espero que algum dia a humanidade avance o bastante para que possamos cobrar de volta a imensa riqueza desperdiçada financiando o crescimento da religião organizada. Não é para derreter o Vaticano e proibir que a religião exista, é só fazer as contas e cobrar deles a porcentagem correta baseada na percepção que sua função base não é uma extensão do papel do Estado. Paguem impostos como todos os outros.

E não é papo de ateu que detesta religião, é até uma boa para as próprias religiões organizadas: quando ela deixar de ter essa isenção fiscal maluca, ou as coisas se organizam de forma mais profissional ou perdem o incentivo financeiro, fazendo com que sobrem apenas aqueles que estão dispostos a fazer as coisas direito. Menos corrupção, menos desvio de função, menos gente podre infiltrada naquilo que você considera sagrado. Os sacerdotes não querem que suas ovelhas saibam que a religião vai continuar numa boa pagando impostos, porque se você estiver nisso pela fé e não pelo dinheiro, não impede nenhuma das atividades realizadas pelas igrejas.

Quem é contra igreja pagar imposto ou vai perder dinheiro pessoal com isso, ou foi enganado por quem vai perder dinheiro pessoal com isso. A Igreja como entidade não tem nada a temer. Os parasitas que usam ela para enriquecer sim.

Eu só quero de volta o dinheiro que foi desviado da função original da religião. O resto, embora ache que mal utilizado para manter visões extremamente atrasadas sobre sociedade, ciência e moralidade, é de vocês e vocês jogam fora como quiserem.

Nunca vi feminista pedindo alistamento obrigatório no exército e nunca vi religioso pedindo para pagar imposto. Fica difícil levar a sério assim…

Para me chamar de demônio por mexer no seu bolso, para dizer que a função do Estado é deixar as pessoas estúpidas, ou mesmo para dizer que só queria de volta as vidas perdidas por intolerância religiosa: somir@desfavor.com

SALLY

Que “reparação histórica” você implementaria se pudesse?

Indenização a todas as mulheres que tiveram qualquer modalidade de esterilização negada.

Vamos ser bem sinceros? Se apenas as mulheres que realmente quisessem, planejassem e desejassem filhos procriassem, será que teríamos 8 bilhões de pessoas no mundo? Olhe à sua volta: amigos, família, conhecidos. Certamente você verá pessoas que nasceram por acidente, por falha de algum método anticoncepcional.

Métodos anticoncepcionais não são 100% seguros, principalmente quando exigem manutenção diária. Será que é exigível que alguém lembre de tomar um comprimido todos os dias, sempre na mesma hora? Será que tem algum ser humano que consiga ser perfeito meses e meses, anos e anos? 100% seguro é cortar o tubinho que dá acesso ao útero. Não que todas as mulheres que não querem ter filhos tenham que fazê-lo, mas ao menos deveriam ter o direito.

E no Brasil, a coisa é tão bizarra que além de não fazerem em mulher que não preenche os requisitos que os doutores acham que são os corretos (como, por exemplo, ter filhos), ainda se exigiu (salvo engano, até o ano passado), a autorização do marido para realizar esse procedimento. É simplesmente inacreditável.

Sim, eu acho que todas as mulheres que formalmente pleitearam esterilização e lhes foi negado por qualquer motivo que não um real risco à sua saúde merecem algum tipo de reparação. Essas mulheres tiveram diversos prejuízos, desde filhos não desejados até serem obrigadas a gastar dinheiro e sujeitar seus corpos a hormônios (o único método razoavelmente seguro).

E não é apenas sobre o dano causado, é sobre a mentalidade. As razões para essa negativa nunca são objetivas, nunca são pensando no melhor interesse da paciente, nunca tratam a paciente como uma pessoa adulta, capaz, apta para decidir sobre sua vida. Isso é aviltante. Isso merece uma reparação.

“Não vou fazer, pois você vai se arrepender”, eles disseram. Mais de uma vez. Mais de um médico. Meus queridos, E DAÍ? Se eu me arrepender, o problema é meu. O que tem de gente fazendo plástica no nariz até ele ficar parecendo dois buraquinhos de tomada (e certamente se arrependendo) não dá nem para mensurar, nem por isso impedem pessoas de fazer o procedimento.

Tem bola de cristal, filho da puta, para saber se eu vou me arrepender? Ou seria essa sua crença idiota, antiquada e pequena que te induz a pensar que toda mulher vai querer ter filhos? 45 e firme e forte na certeza de que não quero. Sempre soube. Basicamente é possível se arrepender de qualquer procedimento eletivo e a maior parte deles não é reversível. Então, por qual motivo todos os demais continuam sendo realizados e a esterilização não?

Provavelmente por motivos religioso, o que é uma vergonha em um Estado Laico. Provavelmente por machismo de pensar que sem filhos a mulher não poderá ser feliz. Provavelmente por infantilizar a mulher, achando que ela não sabe o que quer e vai se arrepender. Provavelmente por uma série de motivos errados, degradantes e ofensivos. E graças a esse amontoado de imbecilidades, causaram um prejuízo individual a incontáveis mulheres e também um prejuízo coletivo.

Sim, também há um dano difuso, causado à humanidade. Não é apenas a mulher que teve que passar os 20 anos seguintes da sua vida gastando rios de dinheiro e uma infinidade de tempo cuidando de outro ser humano, é um mundo superlotado que está depredando recursos naturais.

Não é apenas sobre prejuízo à saúde da mulher, aumentando os riscos de doenças, muitas vezes doenças sérias como câncer. É o sofrimento de todos aqueles que ficaram sem mães, sem filhas, sem irmãs, sem esposas, sem amigas, que foram obrigadas a se entupir de hormônios para não engravidar e acabaram com câncer de mama.

Muitas vezes não é só a mulher quem tem a vida modificada por um filho não desejado ou não planejado, o homem que está com ela vai junto. Apesar de que, como regra, na sociedade atual um filho não impacta um homem com a mesma força que impacta uma mulher, existem honrosas exceções. Então, seja com pensão, seja com tempo, um filho quase sempre acaba impactando.

Para piorar a babaquice generalizada, no Brasil não é permitido o aborto. Isto é: você não pode ter acesso a um método anticoncepcional 100% eficaz, sendo obrigada a usar métodos falhos e, se ele falhar, a mulher será obrigada a ter o filho. Infelizmente isso está tão normalizado que poucas pessoas conseguem perceber a violência que essa dinâmica envolve.

“Filho é sempre uma bênção”, um idiota dirá. O mundo não é o seu umbigo, o mundo não é a sua bolha. Para muitas pessoas ter um filho significa um decréscimo na sua qualidade de vida. Se essa ideia de que você “se acostuma” e inevitavelmente amará seu filho fosse verdade, não tinha tanta criança sendo morta, espancada, torturada e estuprada no Brasil. E, puta que pariu, ô país para tratar mal criança como o Brasil, viu? Falam tanto, mas tratam mal para um caralho, mesmo aqueles que acham que tratam bem (e deixam o dia todo o filho com o nariz na tela do celular, comendo comida congelada ou largado com terceiros enquanto trabalham).

O que me leva a outro ponto, ainda mais polêmico: é ruim para uma criança nascer sendo indesejada, ser criada por pessoas que não a queriam, crescer em um meio sem os recursos psicológicos, sociais e materiais mínimos para ter dignidade. Sim, eu acredito que seja melhor não nascer. “Ain se sua mãe pensasse assim você gostaria de não existir”. SIM, duplo sim, minha mãe pensava assim e sim, se fosse para viver na merda eu preferia não nascer.

Curioso que os tão preocupados em preservar a esterilidade da mulher se recusando a fazer uma laqueadura também são contra o aborto. Hoje, uma das maiores causas de esterilidade em mulheres brasileiras são sequelas de abortos malfeitos, irregulares, precários. Nessa hora não tem preocupação da mulher nunca mais poder ter filhos, né? Vão bem tomar no cu, viu?

Historicamente, a humanidade oscilou na forma como trata procriação, de acordo com suas necessidades. Pouca gente e muita terra? Vamos incentivar filhos e povoar a porra toda! Vai lá, igreja, diz que usar contraceptivo deixa Deus triste, bora fabricar humanos!

Porém atualmente a humanidade está dando um tiro no pé: criminalizar aborto, dificultar esterilização e tantas outras medidas que geram mais seres humanos em um mundo abarrotado é caminhar a passos largos para a extinção da espécie.

Ou seja, além de canalhas, são burros.

Pelo meu histórico familiar e por condições de saúde pessoais, não é recomendado que eu tome hormônios, pois isso pode me gerar uma série de doenças graves. Eu tomo hormônios faz mais de 20 anos para não engravidar. Se eu adoecer e morrer, vocês já sabem com quem reclamar.

Para dizer que um novo ódio foi desbloqueado, para dizer que esses mesmos obrigam a amante a fazer aborto clandestino quando ela engravida ou ainda para dizer que se homem engravidasse laqueadura seria feita em carrocinha de cachorro-quente: sally@desfavor.com

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direitos, história, religião, reparações, sexualidade

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