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Leitura sagrada?

Leitura sagrada?

| Desfavor | | 30 comentários em Leitura sagrada?

A Bíblia, escritura sagrada do cristianismo, é provavelmente o livro mais popular da história. Sally e Somir não negam o impacto da obra na humanidade, mas não tem a mesma fé sobre a utilidade do livro em si. Os impopulares divulgam suas crenças.

Tema de hoje: vale a pena ler a Bíblia?

SOMIR

Não. Spoiler: o mocinho morre no final.

Longe de mim querer cagar regra sobre o que você pode ou não consumir de conteúdo. Se você quer ler a Bíblia, leia a Bíblia, não é nem um papo sobre ser algo positivo ou negativo. A questão aqui é se vale a pena ou não. E com base no meu conhecimento sobre o livro em si, eu não recomendaria para ninguém. Não tem nada lá que seja tão único assim, e dado seu inegável legado na cultura ocidental, todos seus temas já foram muito mais bem desenvolvidos em outros lugares.

Primeiro, vamos remover o elefante da sala: não existe nenhuma evidência razoável da existência de deuses e seres mágicos do tipo no mundo real. E vamos concordar que o deus cristão é a base da coisa toda. Se você acredita no deus cristão ou no mínimo está inclinado a acreditar em um poder consciente sobre o universo, eu já não consigo mais te alcançar. É a sua fé e contra a fé não há argumentos.

Agora, sem a crença irracional no “papai do céu”, temos que analisar o material por seus próprios méritos. E por mais que eu não tenha nada contra gostar de ficção, eu mesmo adoro uma história fantástica sobre naves espaciais e robôs, não é um tema interessante que faz um livro ser bom. Precisa desenvolver.

E aqui a Bíblia começa a falhar. Todo mundo se amarra num mito de criação, o ser humano é naturalmente curioso sobre começos e fins. O livro já começa numa preguiça enorme: Deus criou o mundo em alguns dias, fez umas coisas aleatórias, e de repente estava tudo pronto. Não te dá nenhuma informação útil mesmo que você acredite em mágica. Se você perguntar para uma criança como o mundo começou, provavelmente vai ouvir algo parecido.

Parece chatice minha, mas é um ponto importante: para os padrões de 2023, a criatividade e a habilidade de contar histórias do povo do tempo em que a Bíblia foi escrita são… limitadas. Mais de um milênio de cultura compartilhada realmente impacta a qualidade da escrita ficcional. Naquele tempo, mitos simplórios divertiam a maioria das pessoas. E dá para perceber claramente como a qualidade da narrativa na escritura sagrada não bate mais com os padrões atuais.

Não ajuda nada a presunção de livro mágico que se questionado pode te mandar para uma eternidade de tortura no inferno: as pessoas realmente não estavam muito dispostas a questionar a qualidade técnica do material. Sim, eu sei que a Bíblia moderna provavelmente foi modificada muitas vezes nas inúmeras traduções e manipulações realizadas por religiões institucionalizadas como a Igreja Católica, mas nenhuma delas melhorou a narrativa, só adicionou “fatos” mais convenientes para quem estava no poder a cada momento.

Harry Potter é um livro sobre mágica muito mais bem escrito. O Senhor dos Anéis conta uma história grandiosa de forma bem mais interessante. Se você não tem a ilusão de veracidade sobre o que está na Bíblia, é um livrinho de ficção muito mal escrito. E eu já devo ter dito isso antes, mal escrito e plagiado: são os mitos do Zoroatrismo com nomes diferentes. A história de Jesus, o diferencial cristão sobre o Judaísmo (que compartilha boa parte do Velho Testamento), também é uma cópia de dezenas de outros mitos de filhos nascidos de mães virgens de religiões anteriores.

Se a graça é ver a primeira vez que escreveram sobre um mito religioso, a Bíblia é a cópia da cópia da cópia. Como é de se esperar, os livros que se formaram para gerar a Bíblia são baseados na tradição oral de povos antigos da região.

O que nos leva ao possível valor histórico da Bíblia: sim, tem sua graça ler sobre o que pessoas de milhares de anos atrás pensavam sobre o mundo e as histórias que passaram de geração em geração até chegar neles. Mas mesmo assim… já ouviu falar dos arqueólogos? Então, eles estão caçando registros históricos há muitos e muitos anos, e achando as fontes das coisas que a Bíblia copiou. E melhor: sem explicações mágicas estapafúrdias.

Religiões são fascinantes sim, mas você não precisa ler o livro mágico dela e rezar para aprender sobre sua história: existem livros de pessoas que estudam sobre isso, existem documentários, séries… tem um monte de coisa muito mais bem feita para te informar sobre as crenças e costumes da antiguidade. Você consegue estudar e aprender muito sobre as mesmas histórias que são contadas na Bíblia sem enrolação e sem desvios óbvios para defender uma tese religiosa. Como… Jesus, por exemplo. Ele provavelmente foi inventado ou é um compilado de diversas pessoas com o mesmo mito de criação em diversas outras religiões.

Complicado aprender sobre história com uma personagem fictícia bem no centro de tudo, né? Imagina estudar a história do Brasil considerando que a Cuca do Sítio do Pica-Pau Amarelo foi a rainha por vinte anos? Perdemos muita objetividade e não dá mais para saber o que faz sentido ou não. Quer aprender história? Estude História. Quer aprender sobre povos antigos? Estude Arqueologia. Quer aprender sobre o que aconteceu antes do ser humano existir? Física, Química, Biologia, Geologia…

Tudo o que tem na Bíblia está mais bem descrito em ciências de verdade. E se você quiser analisar o material em busca de ensinamentos sobre ética, moralidade e até mesmo espiritualidade, até auto-ajuda é mais eficiente: porque não coloca tudo condicionado à existência de um ser mágico que te julga a cada ação e que concede desejos feito um Gênio da Lâmpada. Tem uma lição valiosa na Bíblia: trate o outro como quer ser tratado. Jesus falou basicamente isso, e foi solenemente ignorado por mais de dois mil anos pelas pessoas que acreditam nele.

O que mostra como nem pra isso o livro serviu. A Bíblia tinha UM trabalho, e não deu conta dele. O resto que tem lá já foi feito muito melhor em outros materiais, e sem querer te mandar para o inferno por comer bacon.

Para dizer que todos os cristão concordam comigo porque ninguém lê a Bíblia, para dizer que o importante é fingir que leu, ou mesmo para dizer que tudo aquilo é verdade (ok, mas você VAI para o inferno, é impossível não ir se você acreditar na Bíblia de verdade): somir@desfavor.com

SALLY

É válido ler a bíblia?

Sim, acho interessante como relato histórico e cultura geral, desde que se tenha a consciência de tratar como o que é: uma obra de ficção, graças às inúmeras imprecisões de tradução e informações inventadas e distorcidas.

Gostemos ou não, concordemos ou não, é o livro mais vendido da história. Tem algo aí. Misticismo e religião não sustentam sozinhos todo impacto que a Bíblia tem na história e na cultura humana. Tem algo nela que ressoa com as pessoas, muito além das alegorias bobas que revestem suas histórias. É de uma magnitude suficiente para que eu acredite que merece uma leitura.

Nunca li a Bíblia, mas um dia pretendo fazê-lo, por uma questão de cultura mesmo. O livro mais vendido da história da humanidade, que mais inspirou músicas quando comparado com qualquer outro livro, o mais falado, o mais comentado. Eu acho válido ler sim, até mesmo para poder criticar, para expressar uma opinião pessoal precisa, sem precisar me basear no que outros dizem ou em trechos tirados de contexto.

Não quero dizer que por ser muito vendido seja necessariamente um bom livro, quero dizer que qualquer coisa que atraia muitas pessoas por muitos séculos vai me despertar minha curiosidade e eu vou querer conhecer, nem que seja para não gostar e para criticar.

Eu não consigo ter a arrogância de pensar que um livro que foi adquirido e lido por pessoas de diferentes regiões do planeta por séculos não tenha, no meio de suas muitas páginas, ao menos uma informação, um insight, uma história que, de alguma forma me beneficie, abra minha mente, me ofereça um novo ponto de vista sobre algo. Deve ter algo de bom ali.

Lembram do nosso texto sobre não culpar objetos inanimados? Então. A Bíblia não é boa nem má, é uma ferramenta que pode ou não ser útil. Como descobrimos? Lendo. O fato dela ter perdurado por tanto tempo, o fato de ter interessado a tantas pessoas me leva a crer que são grandes as chances de ter algo verdadeiramente útil ali. “Mas Sally, antigamente as pessoas eram obrigadas a ler a Bíblia”. A Bíblia é um dos livros mais baixados no Kindle, então, acho que o interesse continua.

Também acho importante a leitura para desmistificar. Tem tanta gente falando sobre a Bíblia (e provavelmente falando bosta), que não dá para simplesmente aderir à opinião alheia. Inclusive, os propagadores oficiais da Bíblia são religiosos e certamente fazem uma leitura tendenciosa. O único meio de formar uma opinião não-tendenciosa é lendo o livro. E a única forma de dar uma utilidade para ele é conhecer as ferramentas que ele disponibiliza e tentando entender se alguma serve para mim.

O fato de a Bíblia ser uma compilação de diferentes autores também me incentiva a ler: não acho possível que tudo seja ruim e imprestável. Algum dos fulanos que escreveu alguma das histórias deve ser bom, não é mesmo? Quais são as chances de que o livro mais vendido da humanidade, que é lido por centenas e centenas de anos, só tenha autores ruins?

Outro ponto interessante: na Bíblia Deus não é esse arquétipo bonzinho de amor, é muito bacana, mas tornaria uma história de ficção meio tediosa. Deus mata gente pacarai, a história parece animada. Inclusive, salvo engano, Deus inclusive permite que Satanás mate uma galera com parte de uma aposta.

Pior dos mundos, você ganha algumas histórias de ficção divertidas. Acredito que eu já deva ter lido coisa muito pior, inútil e mal escrita do que a Bíblia. Pelo que escuto falar, tem muita ação, muito sangue, muita morte. Parece divertido. E a suposta conotação religiosa parece ser mais interpretação das pessoas do que qualquer outra coisa.

E, para ser justa, eu tenho curiosidade de ler todos os livros que são base para religiões estabelecidas, pois todos eles parecem ter perdurado no tempo, todos eles tiveram força para criar algo grandioso. Se as pessoas distorceram e cagaram tudo, bem, não é culpa do livro. Se um maluco criar uma seita e sair fazendo merda em nome do Desfavor, será culpa do blog?

Você pode depreender qualquer coisa de qualquer livro. Eu te garanto que se eu destinar um tempo da minha vida para isso eu leio a Bíblia e te provo por A + B, com argumentos plausíveis, que Rafael Pilha é a reencarnação de Cristo. Então, o fato de ter maluco interpretando o livro de forma torta não me faz ter vontade de desistir, muito pelo contrário.

Sem contar o tanto de gente que eu poderia calar a boca, quando viessem com citação errada da Bíblia. De tempos em tempos aparecem uns malucos aqui tentando argumentar com a Bíblia e eu nunca sei o que responder. Deve ser bem gostoso, mesmo no mundo real, dar uma invertida em cidadão de bem que se escora em religião.

Tudo que está na Bíblia pode ser encontrado em outros livros? Provavelmente (não tenho como afirmar, afinal, não li). Mas, por algum motivo, da forma como foi apresentado nesse livro específico, atraiu multidões e sobrevive até hoje. Então, acho saudável a curiosidade de ver o que se passa nesta popular obra de ficção.

A Bíblia é livro que, apesar da aura sagrada que ganhou no imaginário popular, contém humor, trocadilhos, sarcasmo e ironia. A quantidade de vinganças, mortes violentas e situações politicamente incorretas me atrai. Não é todo dia que vemos um livro que tem passagens seriamente incorretas sendo aplaudido e chamado de sagrado. Isso é genial!

Desculpa, mas eu tenho a curiosidade de ler um livro no qual Deus envia dois ursos para matar 42 crianças que haviam caçoado de um homem careca. Me julguem.

Para dizer que deveríamos fazer uma coluna comentando os melhores momentos da Bíblia, para dizer que este texto entristeceu Jesus ou ainda para dizer que agora você também tem curiosidade de ler a Bíblia: sally@desfavor.com


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