Ilusão de Transparência.

É uma tendência natural do ser humano presumir. É um mecanismo que usamos diariamente sem perceber e quem uma grande utilidade evolutiva: poupar energia para o nosso cérebro. Se você escuta gotas caindo do céu, você não precisa sair, esticar as mãos, colher o líquido, cheirar e constatar se de fato é água, você simplesmente presume que está chovendo. Mas, se por um lado este mecanismo é muito útil, por outro ele pode acabar nos prejudicando se não soubermos dosá-lo. Por isso hoje queremos conversar sobre a Ilusão da transparência.

“Ilusão de transparência” é o nome de um efeito psicológico que consiste em superestimar quão claro é o nosso mundo interior para as pessoas que vivem à nossa volta. Presumimos que nossos pensamentos, emoções, sentimentos e muitos outros elementos do nosso mundo interior estão perfeitamente claros para quem convive conosco pelos sinais que damos sobre eles, mas isso quase nunca é verdadeiro.

“Mas não é óbvio que eu fiquei chateada?”. “Mas não é evidente que isso é irritante?”. “Mas não ficou claro que eu não estava bem?”. “Mas não era perceptível que eu não estava gostando?”. A resposta para essas perguntas e para muitas outras no estilo é: não. Na maior parte das vezes achamos que damos sinais suficientes, mas a verdade é que não damos.

Pensamos que o que estamos sentindo é óbvio, pois vemos o mundo com a nossa lente de percepção e medimos o mundo com a nossa régua. Presumimos que o que nós sentimos, fazemos e externamos é o padrão, mas… não é. O que está dentro da nossa cabeça, o que é subjetivo, o que é interno, é muito difícil de perceber se não for claramente dito. A maior parte das pessoas não percebe.

E isso não necessariamente é sinal de egoísmo, de não gostar do outro, de não se importar com o outro. Ilusão de Transparência é um viés cognitivo, ou seja, um julgamento equivocado que acontece de forma recorrente com todo ser humano: nós temos a certeza de que aquilo que sentimos está na nossa cara, está claro, está explícito, por isso nosso cérebro nem sequer cogita precisar verbalizar. Muitas pessoas até criam uma trava em verbalizar, por achar que estarão sendo chatas, redundantes ou até pressionando o interlocutor.

E, quanto mais intenso é o que sentimos, maior é a Ilusão de Controle, ou seja, mais acreditamos que estamos dando sinais claríssimos dos nossos sentimentos, quando, na verdade, não está compreensível para quem vê de fora. Isso significa que nas questões que mais no abalam é quando mais presumimos que o outro está lendo nossa mente e mais chateados ficamos quando a pessoa não percebe como estamos nos sentindo.

E aí nascem inúmeras, incontáveis, infinitas falhas de comunicação, especialmente com aquelas pessoas que são do nosso convívio diário. Não, não é o outro que é idiota, burro e sem consideração, somos nós que, por diversas questões, damos menos informações do que os outros precisam para interpretar como nos sentimos. Quando a comunicação não é clara, não é explícita, não é suficiente, toda sorte de mal-entendido acontece.

A Ilusão de Transparência sempre existiu, é uma tendência humana acreditar que estamos deixando transparecer mais do que realmente deixamos. Por exemplo, é muito comum ver pessoas performando muito bem em público e depois ouvi-las dizendo que estavam muito nervosas e que achavam que todo mundo tinha percebido, quando, na verdade ninguém se deu conta.

Porém, a coisa fica ainda mais acentuada na atualidade, quando todo mundo divide sua atenção com inúmeros estímulos do mundo moderno: notificação de rede social, mensagem de WhatsApp, e-mail recebido, pedido do chefe, demanda do filho, tarefas, afazeres, privação de sono, efeito rebote daquele copo de café… Existem centenas de eventos que reduzem ainda mais a atenção, capacidade de concentração e percepção dos interlocutores, o que torna ainda mais difícil perceber como o outro se sente.

Então, por mais óbvio que algo pareça, lembre-se de que existe uma coisa chamada “Ilusão da Transparência”, uma tendência humana a superestimar o quanto estamos demonstrando sentimentos, pensamentos e emoções. Se isso recebeu um nome, é sinal de que acontece com bastante frequência, não?

Logo, para uma boa comunicação e para evitar muitos problemas, o ideal é que externemos como nos sentimos mesmo quando parecer óbvio que isso é perceptível, pois claramente erramos o julgamento do quanto os outros estão conseguindo decifrar. Esperar que o outro entenda sozinho, deduza ou descubra é uma receita para um relacionamento truncado.

“Mas Sally, é um saco ter que ficar falando tudo”. E não é um saco um monte de mal-entendido, briga, mágoa, confusão e problemas que poderiam ser evitados? Avalia o que é menos chato para você e abraça a estratégia que te leve por esse caminho. “Se ele me _______, perceberia” (substitua por “amasse”, “se importasse” ou a palavra de sua predileção). Não, amor não confere poderes mediúnicos a ninguém, meu anjo.

Além de atrapalhar demais a comunicação, a Ilusão de Transparência também cria outros problemas secundários: quando temos a certeza de que todas as pessoas estão percebendo exatamente o que se passa em nosso interior, essa “falta de privacidade” pode gerar sérios problemas de ansiedade e é comum que surja o chamado “Efeito Holofote”.

O Efeito Holofote ocorre quando supervalorizamos o julgamento que os outros farão a nosso respeito, ou seja, quando achamos que está todo mundo nos olhando, todo mundo comentando a nosso respeito, todo mundo falando mal ou nos condenando de alguma forma. É aquele clássico caso de “você não é assim tão importante”.

Assim, nosso cérebro começa a procurar sinais para confirmar que de fato está todo mundo olhando para você, todo mundo rindo de você, todo mundo te criticando. Não é que o cérebro percebe estes sinais, ele parte em busca deles, o que induz a diversos erros de interpretação.

Por exemplo, uma pessoa que está rindo de uma piada que contaram é vista como uma pessoa que está rindo de você. Uma pessoa que está olhando para você por ter gostado da sua roupa e estar tentando descobrir a marca para comprar uma igual é interpretada como uma pessoa que está te julgando. O cérebro procura, até encontrar algo que confirme o que ele já acreditava.

Por consequência, podemos afirmar duas coisas: não somos tão bons em externar o que sentimos e não somos nada bons em mensurar a reação do outro a um evento que nos envolva. Repense duas vezes se você acha que deixou transparecer uma emoção de forma clara (provavelmente não foi entendido) e repense três vezes se você acha que passou uma grande vergonha (provavelmente ninguém percebeu ou se importou muito).

Se você tem algum sentimento que, de alguma forma, impacta outra pessoa ou se você quer que ela tome conhecimento dele, FALE. Fale de forma clara, de forma direta, de forma didática. Só porque o sentimento está forte dentro de você, está alto, está ensurdecedor, não quer dizer que esteja claro para o resto do mundo.

E quando eu peço para falar de forma clara, é para falar detalhando a situação. Não precisa ser prolixo, pois gente prolixa desperta ímpetos homicidas em pessoas normais, o que quero dizer é que você não “pule” partes da explicação por presumir que é óbvio de onde você tirou esse raciocínio. Este conselho te pareceu abstrato demais? Não tem problema, aqui trabalhamos com exemplos.

Vamos pensar em um exemplo rotineiro, entrando na cabeça de duas pessoas diferentes e vendo o que se passa lá dentro, para depois entender o que é um falar de forma clara e o que é um falar de forma não clara:

CABEÇA DO CHEFE: “Fulano é um ótimo funcionário e eu ando tão ocupado que nem tenho dado atenção a ele, me sinto mal por isso. Preciso demonstrar interesse por aquilo que ele faz, para que ele se sinta valorizado. Vou acompanhar o que ele está fazendo para que ele saiba que eu me importo com ele”

Daí o chefe vai e para atrás do funcionário e fica observando enquanto ele trabalha no computador.

CABEÇA DO FULANO: “Esse filho da puta veio aqui fiscalizar meu trabalho? Ele acha o que? Que eu estou de bate papo em redes sociais? Que depois de tantos anos eu não sei fazer meu trabalho direito? Nunca dei motivos para ele desconfiar de mim, que escroto!”

Nesta situação existe a possibilidade de não diálogo, na qual o Chefe acha que fez um bem e o funcionário fica putíssimo, o que certamente vai gerar problemas no futuro, existe a possibilidade de falar de forma não clara e falar de forma clara.

FALAR DE FORMA CLARA PARA O CHEFE: “Oi Fulano, percebi que não estou te dando atenção suficiente, pois apareceram muitos problemas, por isso vim aqui acompanhar o seu trabalho, para que você veja que você é importante para mim. No que você está trabalhando? Como posso colaborar?”

FALAR DE FORMA NÃO CLARA PARA O CHEFE: “Queria ver o que você está fazendo”. (presumindo que a pessoa vai se sentir valorizada)

FALAR DE FORMA CLARA PARA FULANO: “Chefe, queria entender a razão pela qual você ficou parado atrás de mim. Me fez sentir que você não confia em mim, quando você faz isso eu me sinto desconfortável, pois sou um bom funcionário e faço um bom trabalho. Você está insatisfeito comigo?”

FALAR DE FORMA NÃO CLARA PARA FULANO: “É evidente que você não confia em mim, lamento muito por você que é um péssimo gestor de pessoas”. (presumindo desconfiança do chefe).

Então, fale de forma clara, não deixe pistas para o outro seguir. Muita gente faz isso como uma espécie de “teste”, para ver “se eu sou suficientemente importante para o outro a ponto dele se dar ao trabalho de observar e decifrar”. Não faça isso. O outro, coitado, não está entendendo nada – e você, no lugar do outro, provavelmente também não entenderia.

Fale de forma clara. Seus sinais provavelmente serão insuficientes e indiretas, joguinhos e insinuações não ajudam, apenas atrapalham, gerando mal-entendido e confusão.

Não atribua o não perceber a não gostar, não se importar ou qualquer outra questão pessoal com você, a Ilusão de Transparência é uma realidade. Fale. Fale. Fale. Não jogue a responsabilidade da comunicação para o receptor, ela é sempre do emissor. Se um aluno não entende o que está sendo explicado a responsabilidade é do professor. Se o seu parceiro, sua família ou seu chefe não entende o que você está sentindo, a responsabilidade é sua.

O que nos leva a outro problema: muitas pessoas não são capazes de entender o que estão sentindo. Sentem um desconforto difuso, muitas vezes, se forem pessoas mais rudimentares, o sentimento é convertido em raiva ou irritação por ser a coisa mais próxima conhecida, mas não sabem compreender que sentimento é, de onde veio e muito menos verbalizar e explicar para terceiros.

Nesse caso a única solução é conversar sobre o assunto. Falando, se escutando e escutando as impressões do outro algumas peças podem ir se encaixando e a pessoa acaba se entendendo melhor. Isso é algo que mulheres, principalmente se forem amigas, costumam fazer com naturalidade: conversar com alguém de sua confiança para tentar se entender melhor. Homens nem tanto, uma pena, já que é uma ferramenta valiosa.

E aqui uma dica que acredito ser útil para todos: observe suas emoções e entenda de onde elas vêm. Normalmente as pessoas reconhecem 4 ou 5 emoções básicas e não entendem quando outras se apresentam. O ser humano é muito mais do que raiva, amor, desejo sexual, ciúme e cansaço. Tem muitos outros sentimentos como admiração, adoração, apreciação estética, diversão, ansiedade, temor, estranheza, tédio, calma, confusão, desejo, nojo, dor empática, encantamento, inveja, excitação, medo, horror, interesse, alegria, nostalgia, romance, tristeza, satisfação, simpatia, êxtase, constrangimento, triunfo e outros.

Você sabe o que cada uma significa? Se não, tem boas definições de cada uma online. Você sabe o que desperta cada uma delas em você? Observe. É preciso se conhecer para conseguir se explicar para os outros, para que assim, os outros te conheçam. É preciso saber dizer o que te desperta sentimentos negativos e explicar os motivos, para que o outra saiba como não te chatear. “Não é óbvio?”. Não, nem sempre é óbvio. Fale.

Sim, é seu papel guiar o outro para que ele te conheça, as pessoas não sabem ler mentes. Pense em você como um professor que precisa ensinar sobre você mesmo: se não conhecer a matéria, não será compreendido. E se você não souber ensinar, a expectativa de que o outro te conheça, tente te agradar, tente não te desagradar, vira ilusão.

E, da mesma forma que você tem que falar como se sente, o outro também. Então, não presuma que o que o outro sente é o que você sentiria. O ideal é que o outro fale, mas nem sempre a pessoa tem essa consciência, então, se a pessoa for importante para você, não presuma, pergunte.

“Mas Sally, se eu falar realmente o que penso, quero ou sinto, a pessoa não fica ao meu lado”. Então que vá. Quem não quer ficar com você pelo que você é, mais cedo ou mais tarde vai embora. Melhor que seja mais cedo, assim ninguém perde muito tempo.

E, por fim, não vale usar este texto para justificar canalhice do outro. Seu filho morreu e seu parceiro está te demandando sexo depois do velório? Escroto. O a morte de um filho não é algo interno, é bem externo e visível e é notório que abala qualquer pessoa. Seu chefe te demitiu por considerar frescura você estar na UTI cuidando do seu filho? Escroto. É consenso social que mães com o filho entre a vida e a morte não terão condições emocionais de trabalhar.

Então, como saber quando é Ilusão de Transparência e quando é apenas uma pessoa escrota que não leva seus sentimentos em consideração? É fácil: estamos falando de algo interno ou externo?

Um filho morto ou um filho na UTI é algo externo, não é segredo para ninguém, e é de conhecimento público que isso transtorna de forma profunda os pais. Seu chefe passou a mão na sua bunda? É algo externo e inclusive proibido por lei, portanto, todo mundo tem a obrigação de saber que não é bem-vindo. São coisas externas, objetivas, não dão margem para dúvida. Quando forem coisas subjetivas, internas, aí sim é indispensável falar.

Está na dúvida se o seu caso é interno, externo, objetivo ou subjetivo? Fale, na dúvida sempre fale – e fale de forma clara. Se contarmos que o outro vai perceber sem nossa expressa verbalização vamos viver em um mundo de decepções e mal-entendidos.

Para dizer que não precisa falar pois as pessoas sabem muito bem o que fazem (boa sorte na vida), para dizer que eu acabei de inventar tudo isso (isso realmente existe) ou para pedir um texto explicando as principais emoções humanas: sally@desfavor.com

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Comments (10)

  • Sobre o silêncio dos homens… Acho bizarro, mesmo com a sociedade supostamente evoluída em certos aspectos, mesmo com valores e tabus aparentemente ultrapassados, parece residir ainda, entre os homens (especificamente heteros, pq eu tendo a notar que gay tem mais abertura pra se comunicar) essa espécie de silêncio, de lei que impera, de dont ask, dont tell.

    Curioso que isso vale tanto pra coisas envolvendo sentimentos, como pra outros assuntos dignos de serem pessoais. Eu nunca vejo, por exemplo, homens conversando sobre depilação, ou qual melhor barbeador ou creme de barbeador, coisas envolvendo cuidados pessoais, qual melhor preservativo e porque, qual melhor shampu, ou qualquer coisa do tipo. Enquanto mulher tem altos “papos calcinha”, homem continua tendo esse silêncio entre eles, como se fosse algo vergonhoso a ser perguntado, ou mesmo subjugado de antemão só de pensar em tocar no assunto. Fica aquela impressão também de que tu já sabe aquilo, implicitamente, e tá tudo bem, não se toca no assunto. Bizarro…

  • Achei bacana o texto, Sally! Me lembrou a leitura do livro comunicação não violenta, do Marshall Rosenberg. Parece um daqueles livros clichês de psicologia batata pra vender, mas até que seu conteúdo faz algum seguido. Bem resumidamente, o autor comenta que, ao invés de se comunicar com alguém de forma violenta, dando patadas, sendo irônico e ríspido (já que isso machuca silenciosamente), o melhor mesmo seria se comunicar de forma clara, objetiva e sincera, pautando em quatro pilares: observar a situação, identificar um sentimento que é gerado, identificar uma necessidade e fazer um pedido.

    Exemplo na prática: ao invés de dizer, “ah mas aquele sujeito é um incompetente, não entrega nada no prazo!”, melhor seria dizer, “fulano, eu observo que vc tem dificuldades em entregar suas tarefas a tempo (observação), isso me gera certa ansiedade e irritação (sentimento), e eu tenho necessidade de fazer as coisas com tranquilidade no meu ofício, que depende em partes do seu (necessidade). Você poderia se organizar melhor pra poder entregar suas tarefas a tempo? (pedido).

    Da pra aplicar pra outras coisas e situaçãoes também, acho válido em certo sentido. Pelo menos está sendo claro e objetivo, evitando mais briga.

    • Seria o ideal, mas infelizmente existem pessoas (principalmente no mercado de trabalho) que se não levam um baita esporro não fazem o que tem que fazer. Então, em vez de demitir, as empresas fazem a manutenção desses funcionários (pois trabalham por um salário muito baixo, o que convém para a empresa) e acabam adotando o esporro como modo de trato padrão.

  • Ai, que vontade de sair distribuindo panfletos com esse texto! Excelente e muito necessário!
    É engraçado o quanto tentamos fugir quando precisamos reconhecer nossos sentimentos, não é? Mas também poupamos muito tempo e muitos aborrecimentos quando nos comunicamos de forma clara. Às vezes, passamos até noites em claro por problemas que nem sequer existiam…

    • Sim, o que não é dito cresce dentro da nossa cabeça e pode tomar proporções bizarras. É como uma bola de neve: se você resolve quando começa é bem mas simples. Mas a mente humana pode ser cruel, tendemos a criar/adiantar problemas: “não vou falar isso se não ela vai falar aquilo”, “não vou falar isso pq não quero brigar”, etc. Gente, não falar só adia e aumenta a briga. Fala, sempre fala, e se tiver muita briga simplesmente se afasta da pessoa.

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