Violência por omissão.

Nos últimos meses fizemos vários textos falando sobre violência da mulher sob um ponto de vista, digamos, mais “popular”. Bater, xingar, gritar e outras formas mais descaradas de agressão. Mas, como temos leitores muito acima da média, hoje me permito de falar sobre uma forma de violência contra mulher muito mais sofisticada, incompreensível para a maior parte da população. Vamos chamá-la de “violência por omissão”, mas, atenção, este termo não existe, eu acabei de inventá-lo, então não saia repetindo por aí.

Antes de entrar no tema em si, um rápido esclarecimento: eu julgo ser um tipo de violência, mas não para militar, para cobrar providências judiciais ou para apontar o dedo para alguém. Cada um de nós, inclusive mulheres, somos responsáveis nossa própria felicidade e por quem escolhemos manter em nossas vidas.

Portanto, não é sobre vitimização (fica quem quer com um parceiro que faz isso), é sobre “ei, talvez você esteja fazendo isso sem perceber e gerando uma dinâmica um pouco ruim para a relação”. É meramente para reflexão. Pensem, reflitam, e se acharem que tem que mudar, mudem. Se não, passa amanhã tem que tem outro texto bem mais legal.

Normalmente quem cuida é a mulher e quem descuida é o homem. Óbvio que é uma generalização, óbvio que existem exceções, mas é uma tendência real. Normalmente quem se descuida da sua saúde ou segurança, quem se coloca em risco ou quem negligencia qualquer coisa que precise ser feita é o homem.

E é óbvio que não é só exclusividade de um dos sexos, ambos praticam esse tipo de violência e ambos estão igualmente errados. Porém eu julgo ser mais comum que isso seja feito contra mulheres, por isso esse será o foco do texto, mas totalmente ciente de que pode ser algo de mão dupla.

Vamos lá. O que eu resolvi chamar de “violência por omissão” consiste no não fazer alguma coisa que precisa ou deve ser feita (de acordo com regras universais de bom-senso), coisas que impactam de forma negativa a vida da mulher que está com você (mãe, irmã, filha, parceira… tanto faz), colocando-a numa posição de angústia, preocupação e sofrimento que levam a uma constante cobrança de algo que a pessoa deveria fazer sem que ninguém peça, por ser algo inerente à vida adulta.

É sempre mais fácil entender por exemplos, então, vamos aos exemplos. Se uma lâmpada da sua casa queima e você decide trocá-la, é esperado que alguns cuidados mínimos sejam tomados. Eu sei, a casa é sua, o corpo é seu, mas se você morrer ou se machucar, isso vai gerar um impacto negativo enorme em quem mora com você. Então, por consideração, não se espera que um adulto normal resolva trocar a lâmpada subindo molhado e descalço em uma cadeira de escritório com rodinhas.

“Mas Sally, isso é um exemplo extremo”. Sim, mas acredite, coisas extremas acontecem. Não é à toa que toda rede social tem algum perfil chamado “é por isso que homens vivem menos”, com marmanjos correndo voluntariamente todo tipo de risco desnecessário.

De qualquer forma, existem diversos tons de intensidade nessa omissão: desde não fazer um checkup anual para saber como está sua saúde até dirigir sem cinto de segurança para não amassar a camisa. São coisas que contrariam e lei, o bom-senso, a higiene, a medicina e a ciência. Uma forma muito sutil de desrespeito, provavelmente perpetrada para (de forma inconsciente) confirmar se o outro realmente gosta e se importa com você ou para conseguir atenção, se autossabotar ou fazer birra por vias truncadas.

Provavelmente uma das causas que impede o autor de dar uma trava desse tipo de comportamento é um mix de burrice com limitação mental, um pensamento de “se eu morrer é problema meu”. Não é. Ao morrer causamos um enorme sofrimento em todas as pessoas que nos amam e podemos até deixar algumas delas, que precisavam do nosso suporte, desamparadas. Morrer não é um problema só seu.

Além disso, morrer não é a única opção. Se você ficar tetraplégico em uma cadeira de rodas, a menos que sua família seja muito rica, é sua mãe, esposa ou filha quem vai trocar sua fralda todo dia e limpar a sua bunda. Se você ficar com qualquer incapacidade, vai onerar absurdamente sua família, tanto em matéria de tempo quanto de dinheiro.

“Mas Sally eu posso estar tomand…” sim, eu sei, a falácia do tomando banho, cair no chuveiro e se machucar. Seus pais são primos? Só isso explicaria você pensar que a probabilidade de se machucar ou adoecer agindo de forma irresponsável é a mesma de se machucar tomando um banho. Sugiro que veja a estatísticas, por exemplo, de lesões em quem dirige sem cinto e de lesões em pessoas que tomam banho.

Conviver com os outros pressupõe algum tipo de consideração para tentar não chatear, magoar, preocupar ou dar trabalho. Se você não tem essa preocupação/responsabilidade, desculpa te informar, você está sendo muito egoísta. Vale uma reflexão para melhorar.

E a covardia é ainda maior quando se faz isso contra uma pessoa que não pode ir embora. Uma esposa pode se divorciar de você, mas uma mãe… o custo de virar as costas para um filho deve ser altíssimo. Isso é promover um sequestro emocional, contando que a pessoa não vá desistir, o autor desta violência se porta de forma autodestrutiva sem se importar com o sofrimento que provoca.

Quem leva a vida sem essa responsabilidade de poupar as pessoas que ama acaba colocando estas pessoas em uma situação muito ruim: de ter que relembrar, pedir, cobrar, implorar para que medidas mínimas de segurança e saúde sejam adotadas. Eventualmente, em algum momento, todos vão se cansar e se afastar (ou simplesmente cagar e andar), mas todo o grau de estresse, desgosto e tristeza gerados até então, configuram sim uma violência.

Sujeitar uma pessoa que te ama a te ver correndo um risco desnecessário é uma forma de violência, não um direito seu. Sujeitar uma pessoa que te ama a assistir a você se fazendo mal, é uma violência, não um direito seu. Não fazer a sua parte para ser um adulto funcional é uma violência, não um direito seu. Seja usar drogas, seja não cuidar da saúde, seja beber de forma nociva, seja ser relapso com cuidados que impactam a todos, seja lá o que for, é uma violência, não é um direito seu.

É uma violência por sujeitar quem te ama a um sofrimento. É uma violência pelo tanto que se deixa a pessoa na mão fazendo isso (vai desde sobrecarga nas tarefas diárias até criar um filho sem pai). É uma violência pelo egoísmo de se recusar a se comportar como um adultinho funcional e obrigar todos os que estão à sua volta a vivenciar essa situação disfuncional.

Enquanto a pessoa não consegue abandonar quem se comporta dessa forma, o medo, o desespero, o próprio amor que sente torna impossível não cobrar que o outro melhore, justamente por querer o seu bem. Não é exigível pedir que alguém assista calado enquanto uma pessoa amada não cuida de si mesma, se faz mal ou não faz o que deveria ser feito por qualquer adulto funcional para não onerar demais os outros.

Quando isso acontece, a pessoa que é cobrada tem dois caminhos a tomar: botar a mão na consciência e pensar “poxa, eu sou um merda, olha a preocupação que estou causando, olha o risco que estou gerando, olha a falta de consideração em não fazer tal coisa… vou fazer o que precisa ser feito” OU pensar que quem cobra é histérica, maluca, chata ou exagerada. Adivinha para qual caminho 99% das pessoas vai?

É muito mais fácil acreditar que a outra pessoa é histérica, maluca, chata ou exagerada. E é extremamente escroto menosprezar quem está tentando cuidar de você, da casa ou da sua família (se um pai morre, um filho fica sem pai). Isso gera um desgaste que pode ter inúmeros desdobramentos negativos para a pessoa que está ali lutando por algo que seria sua obrigação fazer.

Desde um cansaço extremo que pode até culminar em uma depressão, até um problema de autoestima que faz a pessoa que pede acreditar que ela é histérica, maluca, chata ou exagerada. Isso não se faz. Isso é uma forma de violência. Isso não é legal. Isso transtorna todos os moradores da casa e talvez a família toda.

Diga-se de passagem, um adultinho deveria, sozinho, saber muito bem o que precisa ser feito na vida adulta para cuidar de si mesmo, dos outros e de uma casa. Já é um enorme desaforo e motivo de vergonha profunda que alguém tenha que te apontar o descumprimento de algo que você deveria fazer por iniciativa própria. Responder a isso com descaso ou até menosprezando a pessoa? Desculpa, inaceitável.

E nem precisa ser algo grave de saúde ou segurança, pode ser simplesmente uma tarefa que precisa ser feita. Tem um saco de lixo pesado para levar para fora da casa: o que é mais razoável, que uma mulher de 50kg amamentando um bebê o faça ou que um marmanjo de 90kg que está assistindo televisão o faça? Pois é.

Se nós fizemos nosso trabalho direito e selecionamos nossos leitores para que todos tenham o QI maior do que o de uma ameba, ninguém vai discordar que o lixo precisa ser tirado de dentro de uma casa, certo? Seria, no mínimo, esperado, que uma tarefa envolvendo força seja executada por um homem.

Mas, certamente nesse Brasil de Meu Deus tem homem que não faz pois “está cansado e trabalhou o dia todo” e vai deixando o lixo acumular. E quando a mulher reclama, ele dá a entender (ou diz diretamente) que ela é chata, que ela não dá paz, que ele não tem sossego na própria casa (às vezes dando a entender que isso pode fazer com que ele abandone a casa), que ela que tudo no tempo dela (mesmo que o lixo esteja cercado por uma nuvem de moscas e fedendo), que ele não tem o direito de descansar cinco minutos e toda a ladainha que vocês, mulheres, já conhecem.

Não seja essa pessoa. Não protele demandas da vida adulta, obrigando que outras pessoas precisem ficar no papel de “chata”, “enchendo o seu saco” e cobrando de você. É exauriente para quem cobra, e é vergonhoso para quem é cobrado. Seja um adultinho funcional, proativo, e faça as coisas que a vida adulta demanda sem que ninguém precise ficar te cobrando.

A vida adulta já é difícil o bastante, não dificulte ainda mais a vida dos outros. Seja parceiro, seja rede de apoio, seja ajuda. Não seja peso, transtorno, mais uma obrigação. E tenha em mente que se as pessoas que estão te cobrando forem embora, o problema desaparece para elas. Você, por sua vez, está muito fodido com sua vida protelatória sozinho.

Então, se não por consideração aos outros, por inteligência mesmo, se organiza, faz um cronograma do que precisa ser feito e vai zerando ele aos poucos. Não dói não. Não é tão difícil. A maioria dos adultos faz, tenho fé que você consegue também.

E se não consegue, bem, procure ajuda. Tem algo dentro de você que precisa ser revisado e compreendido. Ser um adultinho não-funcional não deveria ser uma opção, pois além de transtornar a vida de todos à sua volta (repito: cedo ou tarde as pessoas cansam e vão embora), é ruim para você mesmo. E o primeiro passo é se desculpar com quem está à sua volta e verbalizar que não consegue, assim as pessoas não ficam pensando que é descaso, falta de consideração ou egoísmo. Ninguém tem bola de cristal para ler a sua mente.

Cumpra suas obrigações de uma vida adulta: cuide da sua saúde física, mental, da sua higiene, cumpra o combinado nas suas relações (familiares, amorosas e de trabalho), respeite a lei, não se coloque em risco de forma desnecessária e tenha um pingo de empatia pelas pessoas que te querem bem. Não deveria nem ser preciso pedir.

E a vocês, mulheres, que estão neste momento no papel da chata que tem que cobrar o óbvio, só um conselho: saia. Abandone quem quer que seja que te colocou nessa posição. Por mais legal que a pessoa seja, por mais sem querer que seja, por mais que o ame. Saia. Não é bom, não é saudável.

Uma pessoa que não consegue dar esse mínimo e ainda joga contra você quando isso é sinalizado é uma pessoa que ninguém tem que ter por perto. Saia. Se não puder sair agora, comece a se preparar para sair (arrume um trabalho, faça terapia, faça o que for), estipule um prazo e saia.

Para me chamar de histérica, maluca, chata ou exagerada, para dizer que vai proibir sua esposa de ler o Desfavor ou ainda para dizer que se ao menos um homem sentir vergonha de fazer isso daqui para frente o texto terá cumprido sua missão: comente.

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Comments (18)

  • Nessa última tarde fui dar um passeio aqui no Rio de Janeiro.

    Teve uma vacilona que foi querer usar meu nome pra levantar empréstimo no banco, mas ela se deu mal e virou assunto na mídia nacional.

    Pensa.

  • Eu espero do fundo do coração que cada rédipiu e miguitau leia essa texto ou um equivalente, especialmente os que dão piti por uma namorada/esposa tradicional.

    De nada adianta querer ter relacionamento e formar família se não fizer o básico. Convivência com outrem, sobretudo com dependentes, é sobre responsabilidade, não sobre ter um culto à sua personalidade.

    • Curioso isso, gente que quer ser red pill só nas vantagens (esposinha servil) mas na hora do ônus, como mimar e sustentar uma mulher, viram feministões. Não sabe nem trocar uma lâmpada? Tem dois caminhos: 1) aprende ou 2) fica bem rico e paga para alguém fazer tudo que você não sabe assim não sobrecarrega sua família.

      Já já os incell vem me xingar

  • Há pouco tempo, eu vi na rua uma situação idêntica à da imagem que ilustra a postagem de hoje: um cara sem capacete “dando grau” em uma moto mesmo já tendo na perna uma “gaiola” devido a, provavelmente, uma fratura bem grave causada justamente por uma imprudência semelhante cometida anteriormente. Acreditem, esse tipo de imbecilidade é mais comum do que a gente imagina. E a filha de uma amiga da minha mãe, que trabalha no SAMU, já presenciou muitas vezes mães, esposas e irmãs dando esporro em acidentados do tipo “eu canso de falar pra você tomar cuidado, mas você nunca me escuta!” Outra coisa que ela também já viu muito é a lamentação de caras que ficaram com sequelas incapacitantes e choramingam arrependidos, dizendo “ah, se eu tivesse sido mais cauteloso quando eu podia, mas agora é tarde…”.

    • É realmente uma pena essa mentalidade infantil e sem responsabilidade de “eu faço o que eu quero e é problema meu”

    • W.O.J. e Sally, sinto que essa negligência consigo mesmo acaba piorando com a idade. Meu pai passou cerca de dois anos com sintomas muito claros de diabetes tipo 2, todos ao redor dizendo que ele precisava ir ao médico e ele só foi porque foi obrigado. Até que cuida direitinho da diabetes, mas não aceita fazer mais nada pela própria saúde. Acho que todo mundo conhece algum idoso que só vai ao médico se for arrastado!

  • Traduzindo: Faça tudo ao contrário do que está escrito aqui e tenha a chance de faturar de lambuja um Darwin Awards ou ao menos o apelido de estorvo eterno por ser um merdeiro profissional.

  • A parte do lixo me lembrou um conceito em inglês chamado weaponized incompetence, que é quando uma pessoa propositalmente faz as tarefas com a bunda, ou nem faz, pra não receber mais tarefas pra fazer. O exemplo mais comum é um homem “não saber” limpar a casa ou cuidar do filho porque “a mulher faz melhor”, mas também acontece no trabalho e outros locais.
    Não sei o que leva algumas mulheres a aturar esses maridos tóxicos. Comodismo? Pobreza e necessidade de um provedor? Medo de virar mãe solteira mal falada?

    • Eu acho que o não poder contar com homem como premissa já é tão normalizado no Brasil que tem muita gente que sequer cogita que possa ser diferente. A pessoa acredita que isso é sinônimo de relacionamento.

      • Eu ouvia isso na escola, mas sempre achei que fosse um clichê dito pros alunos ruins se sentirem melhor (eu era beeem mediana, até nas matérias que gostava). Sally tem experiência como professora?

        • Já dei aula em faculdade, e foi traumático ver em que estado os alunos chegam. Emburrecidos, acovardados, desinteressados.
          O ensino brasileiro é uma máquina de moer criatividade e de criar gente que decora mas não compreende.

      • No meu caso eu acho que diz. Nunca fiz nada de especial na vida pra ser considerado mais inteligente que a média.

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