Discurso perigoso?

O ex-âncora da Fox News, Tucker Carlson, agora trabalhando solo pelas redes sociais, conseguiu uma entrevista exclusiva com Vladimir Putin. Faz pouco tempo que foi para o ar, mais de duas horas de conversa com o dit… presidente russo disponível livremente pelo X (vulgo Twitter). Tucker recebeu muitas críticas por dar voz ao agressor e basicamente permitir que ele fizesse sua propaganda para o mundo todo. Mas de todas as críticas que Tucker recebeu na sua carreira, essa parece a menos fundamentada.

Especialmente para quem conhece a mídia americana mais a fundo, Tucker Carlson não é uma pessoa querida pela parcela mais progressista da população americana, e por tabela, de quem espelha seus valores ao redor do mundo. Foi peça fundamental na máquina de propaganda trumpista e estrela-mór do canal de TV abertamente republicano Fox News. Quando Trump ficou com a imagem arranhada pela pecha de perdedor, e mau perdedor ainda por cima, a emissora aproveitou alguns escândalos de vazamento de mensagens pessoais dele e de outros funcionários para fazer uma limpa nos salários mais altos.

Tucker já foi mais popular, mas ainda goza de muito reconhecimento e até mesmo respeito pelos fãs de Trump (mesmo tendo dito que achava o homem laranja um imbecil em mensagem particular vazada). A entrevista que ele conseguiu com Putin conta, chama atenção e ainda vai gerar muito drama.

Chamamos Putin de bandido para baixo aqui, ele é o que Bolsonaro e Lula querem ser quando crescerem. Já deixamos muito claro que achamos aberrante sua invasão da Ucrânia e que ele deveria estar preso pelos seus crimes contra a humanidade. Dito isso, não deveria ser um problema ele ter plataforma para dar sua versão da história. Tucker Carlson fala muita bobagem e repercute muita maluquice conspiratória, mas neste caso está fazendo o que um jornalista deve fazer: ir à fonte e coletar informações.

Num desenvolvimento curioso da Era da Pós-verdade que acomete o mundo desde a massificação das redes sociais, parece que estamos dando valor demais para o que as pessoas falam. O mundo atolado de informações bizarras desconectadas da ciência e do bom sendo, e a nossa resposta é ter medo de divulgação de informação?

Putin tem que pagar pelos seus crimes, ser silenciado não é uma alternativa. Não dá para achar que é alguma forma de compensação manter ele escondido da mídia ocidental. Primeiro que fingir que não acontece nunca foi resposta para problemas, e segundo que tudo o que fica escondido acaba sendo presumido, ou pior, idealizado.

O bom jornalismo não se preocupa se está dando plataforma para alguém fazer discurso político, ele oferece a informação para que pessoas possam fazer seu juízo de valor. Quanto mais desinformação se espalha por aí, mais jornalistas começam a acreditar que sua função é moldar o conteúdo recebido pela sua plateia. E quanto mais jornalistas acreditam nesse desígnio divino de defensores da verdade objetiva, mais colocam suas próprias ideias no material de que divulgam.

Eu acho burrice conspiratória pensar que os jornalistas estão trabalhando em conjunto para empurrar uma narrativa ou outra, a humanidade não se organiza dessa forma, e até mesmo dentro da mesma redação existem conflitos que impediriam uma frente única do tipo. É cada um por si e a audiência contra todos.

Num mundo polarizado, é eficiente escolher um público fiel e contar sobre o mundo pela visão dele. Os americanos aperfeiçoaram a fórmula com seus canais de notícias 24h abertamente democratas ou republicanos. O foco de atenção do público apontou para radicalização e muitos se adaptaram. Tucker escolheu entrevistar Putin porque sabia que isso geraria nele uma imagem de inimigo do sistema que seus fãs de longa data adorariam ver.

Então, evidente que ele tem objetivos escusos ao escolher Putin para uma longa entrevista; mas isso não muda o fato que não tem nada inerentemente errado em fazer uma entrevista com uma pessoa capaz de tomar decisões que afetam o mundo todo.

Até argumento que no longo prazo isso pode ser mais perigoso para Putin do que simplesmente ficar com a imagem de ditador inalcançável sobre sua pilha de ogivas nucleares. O americano está tendendo para o Trump no momento muito porque Biden parece fraco diante da entidade que é Putin. Não é tão terrível assim que o presidente russo tenha alguma plataforma para aparecer como ser humano. Que ri, que fica incomodado, que escapa de assuntos incômodos… humanizar é uma faca de dois gumes: por um lado aumenta as chances de as pessoas empatizarem com ele, mas também desfaz o mito.

Jornalismo deve ser sobre jogar luz no que está escuro. E para fazer isso, ele tem que arriscar dar voz para gente perigosa também. O discurso de Putin pode ser perigoso num mundo que flerta cada vez mais com o autoritarismo como resposta aos problemas modernos, mas fingir que isso não existe não trata da questão. No Brexit, na eleição de Trump e até na de Bolsonaro, o desinteresse do jornalismo em dar plataforma para temas que não gostavam acabou escondendo da população que essa gente existia. Elas se informavam por vias alternativas controladas pelos agentes políticos interessados e não viam contrapartida no resto da mídia.

Deu no que deu. Pode não ser agradável, mas era a verdade. Por baixo dos panos jogados pelo jornalismo de massa criava-se um movimento reacionário poderoso. E agora temos que lidar com isso ou continuar vivendo num mundo de fantasia onde basta fingir que esse povo não existe ou que se existe não tem poder de alterar nosso cenário político.

É evidente que tem. É evidente que Putin tem plateia e que muita gente vai querer ouvir o lado dele, não para concordar, mas para saber o que acontece. A mídia deu voz para Zelensky, como deveria ter dado, mas acabamos com um lado humanizado, falho e às vezes até patético contra um supervilão sem voz, idealizado como alguém invencível e por tabela, como um desperdício de lutar contra.

Tucker está obviamente querendo dar suporte para a ideia não-intervencionista de Trump, que provavelmente vai abandonar a Ucrânia no minuto que for eleito presidente dizendo que não podem gastar dinheiro com uma guerra em solo estrangeiro enquanto o povo americano tem problemas. Mas depois que a informação está na rua, o jornalista perde o controle sobre ela.

É melhor ter uma chance de Putin perder a aura de invencível por uma mais humana do que continuar esse blecaute midiático criado por ideologia. Tucker não deve estar pensando assim, mas mesmo sem querer está fazendo jornalismo de qualidade. Ninguém é obrigado a falar o que não quer, e se Putin usa seu tempo para fazer propaganda, é a informação possível no momento. Mas pelo menos é propaganda vinda da boca dele, com todas as chances de erros, não é pronunciamento treinado e revisado, não é mídia comprada por ele para repetir os pontos exatos que ele quer repetir.

Por mais perigosa que seja a pessoa, o jornalismo não ganha escolhendo para quem dá ou não plataforma. Isso é válido em casos de escolhas trágicas como divulgar dados sobre atiradores em escolas, sabendo que eles queriam essa fama; mas no caso de um líder mundial que agrediu uma nação estrangeira, ter informações sobre ele faz parte de como o mundo vai tomar suas decisões. Se a função do jornalismo é informar, que informe.

Eu posso achar muito errado o que Putin faz sem achar que fingir que ele não existe é uma solução. Nunca foi, o que a mídia esconde continua fermentando, especialmente com a internet sendo tão popular quanto é. Quem bate em Tucker agora está defendendo jornalismo moldado para passar uma mensagem. Só que mesmo que você acredite nas boas intenções de todo mundo que quer fazer essa seleção prévia das informações divulgadas, eles ainda são humanos e falhos.

Jornalismo existe para gerar informações que ajudem na tomada de decisões, não para tomar as decisões. Vão tentar esconder essa entrevista o máximo que puderem, só o Elon Musk deu confirmação que não vai censurar. Eu acho que o bloqueio de divulgação só aumenta o mito de Putin e dá material para sua máquina de propaganda continuar semeando dúvidas no mundo ocidental. Por que querem esconder?

Eu nem acho que queiram esconder por um motivo nefasto, Putin não é alguém que eu gostaria que tivesse muita voz no mundo, só que estão errando na premissa básica do jornalismo ao achar que escolher lado é mais eficiente para informar a população. De boas intenções o inferno está cheio.

E a entrevista é bem chata, não tive surpresa nenhuma. Não estou sugerindo ver, só estou dizendo que é importante você saber que ela existe, que tem como ver se quiser. Informação não tem obrigação de ser agradável para você ou para ninguém, ela só precisa ser precisa. E se você quer saber como pensa Putin, dificilmente tem fonte melhor do que ele falando por duas horas com um jornalista que não tenta brigar com ele o tempo todo.

E se alguém se radicalizar depois de ver, você realmente acha que a pessoa não se radicalizaria com qualquer outra porcaria?

Para me chamar de defensor do Putin (ler é para os fracos), para dizer que não consegue odiar o Elão, ou mesmo para dizer que viu 5 minutos e dormiu (eu avisei que era chato): comente.

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Comments (4)

  • Caceta, a entrevista é interessantíssima. O texto do Somir mega relevante. Queria ver uma dessas com o Maduro. Pena que a América do Sul é insignificante.

  • Informação tem dever vista como o que é: informação. Não como emoção ou opinião.

    Falar que está chovendo lá fora não é se dizer a favor da chuva, e nem de que gosta da chuva.

  • Uma das coisas mais importantes para se lidar com alguém que representa ameaça ou é um inimigo é entender como funciona a mentalidade dessa pessoa. Essa falha foi fatal para as políticas de soft power da URSS durante a Guerra Fria, mas o Ocidente tem um histórico um pouquinho melhor. Impedir Putin de falar não faz o menor sentido. Mesmo ele tendo mentido muito durante a entrevista, ele também se expôs bastante. É quase impossível que uma pessoa se comunique sem algum grau de exposição. O fato das falas dele terem sido absurdamente chatas e prolixas acaba corroborando isso, porque o Kremlin sempre usou dessa estratégia para desviar a atenção das pessoas de coisas importantes. Se tem muita burocracia entre você e uma informação do governo, é mais provável você perder o interesse do que estar disposto a passar meses preenchendo formulários burocráticos.
    Uma entrevista não vai radicalizar ninguém que já não estivesse afundado em narrativas radicais.

  • Ótimo texto, Somir. Como de costume, eu já passei o link para um monte de pessoas que eu acho que precisam ler. Sua visão das coisas é parecida com a minha. Ultimamente, o que nós temos visto por aí é ideologia demais e informação de menos. Independentemente de lados, agir sob influência de discursos que se apoiam mais nos mitos da pós-verdade do que em fatos nunca foi uma boa ideia. E parece também que muita gente se esqueceu de como se faz e para o que é que serve o jornalismo, o verdadeiro jornalismo. Gostei especialmente desta sua frase: “Jornalismo existe para gerar informações que ajudem na tomada de decisões, não para tomar as decisões.” Concordo totalmente e ainda acrescento: “Jornalismo não é para se dizer só o que se quer, mas para dizer o que realmente precisa ser dito”.

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