Certa vez ouvi que o vírus da gripe era muito mais evoluído que o que causava o ebola. Parecia estranho que o menos poderoso fosse mais avançado, mas era justamente por isso: Não é uma boa estratégia de sobrevivência matar quem te mantém vivo.
E toda vez que eu traço esse paralelo, entendo melhor o que aconteceu com o mundo. Se tivessem gerado qualquer outro desequilíbrio mental, as coisas teriam desabado em pouco tempo. Perdoem-me a vagueza, escrita ainda não é uma arte que domino. Vou tentar contextualizar melhor:
Uma série de descobertas sobre o funcionamento do cérebro finalmente criou a mais poderosa ferramenta de controle já criada: O gás DOc, que acabamos apelidando de Gás Dócil com o passar do tempo. Os efeitos definitivamente corroboravam com o nome. Pessoas expostas à substância tinham seu humor controlado em questão de minutos. Para o bem e para o mal. A gama de emoções humana se resumia, quase que definitivamente, basicamente à apatia depois de poucas sessões de inalação.
E como ele funcionava diretamente no cérebro, raríssimos efeitos colaterais foram encontrados. Era difícil notar alguma sequela física, e até por isso passaram-se anos e anos antes da imprensa finalmente ter acesso ao que acontecera aos “terroristas” abandonados em porões de prisões de segurança máxima.
A opinião pública não pareceu satisfeita com isso. Os aplicadores foram acusados de aplicar uma pena irreversível em acusados ainda em julgamento. A comparação com uma lobotomia (embora infundada, já que a vítima ainda funcionava socialmente) selou o caso.
O escândalo sacudiu a sociedade por mais ou menos um mês, e presidentes de grandes nações assinaram compromissos públicos de não utilização do Gás DOc. Não antes de argumentar que era muito seguro, é claro.
E como todos aqueles governos tinham oposições sedentas por simpatia popular, vários sensores específicos foram instalados nos locais onde essas aplicações do gás dócil foram comprovadas. Era basicamente o fim da impunidade no Escândalo DOc.
Mas como todos aqueles governos também não eram conhecidos por se entregar facilmente, começou o grande problema: A pesquisa e o desenvolvimento ultra-secretos de um gás parecido que burlasse os sensores. O resultado foi melhor do que o encomendado.
O DOc 2 era mais poderoso, duradouro, hereditário e não deixava rastros reconhecíveis por nenhuma tecnologia existente. É extremamente difícil achar o que não se está procurando. Ele voltou a ser usado impunemente por agências secretas, e não podemos dizer que isso foi ruim: O número de atentados suicidas diminuiu consideravelmente nos anos seguintes.
A situação realmente se complica quando essa substância cai no setor privado. Alguns países terceirizam seus sistemas correcionais, alguns países não fiscalizam muito bem quem os mantém livres de problemas.
A tecnologia necessária para a produção do DOc 2 se populariza rápido demais. O mercado negro se encarrega de espalhar pelo mundo amostras, equipamentos e a matéria prima necessária. Embora a mídia mais uma vez perceba o ocorrido e ataque impiedosamente, desta vez não havia mais como fazer a contenção.
Governos e empresas inescrupulosas não perdiam tempo: Estima-se que mesmo com o aviso prévio, mais da metade da população em países pobres havia sido exposta ao gás em questão de dois anos. O número de ditaduras cresceu exponencialmente, e para ser honesto, os países compostos por uma maioria exposta acabavam bem mais seguros e organizados, apesar de governantes e elite abusarem do poder como nunca.
A tentação era muito grande. A resistência cada vez mais fraca. Uma “bomba” de DOc 2 acabava com uma manifestação popular em minutos. E essa manifestação dificilmente aconteceria novamente, nem mesmo os filhos das pessoas “domesticadas” pelo gás estavam livres. Ele passava diretamente pelo cordão umbilical e amansava a nova geração antes mesmo desta nascer.
Meio século após a criação do gás original, a absoluta maioria da população humana tinha sido furtada de virtualmente todas suas emoções. Os desejos mais primais dos poucos livres restantes podiam ser satisfeitos sem a menor resistência. Alguns continuaram íntegros, mas o poder subiu à cabeça de milhões de homens e mulheres diante de bilhões de expectadores passivos.
Como a imprensa começa a falhar consideravelmente nesta mesma época, não temos muitos relatos das barbaridades cometidas pelos “lobos”. As “ovelhas” com certeza não parecem se importar em serem objetos nos passatempos sádicos daqueles monstros. Mas não demora muito para as coisas tomarem um rumo inesperado.
O comprometimento emocional e a empatia pareciam extintos. E a sociedade começava a funcionar cada vez melhor entre as ovelhas. Por mais que os lobos tentassem, e acreditem, eles tentaram… Nada parecia abalar suficientemente a rotina da humanidade.
Li o estudo de um psicólogo lobo que explica bem o que aconteceu. O senso de função social humano é tão forte quanto o de sobrevivência. Quando o gás tirou qualquer ruído emocional do processo, sobraram bilhões de pessoas dispostas a encenar um mundo perfeito. O cinismo e a rebeldia não tinham mais lugar.
Coisas que nos complicaram por milênios pareciam ser resolvidas em questão de meses. A violência e as guerras foram abolidas, o meio-ambiente era bem cuidado como nunca, vícios como alcoolismo e tabagismo viraram coisas obsoletas, dezenas de curas para doenças até então incuráveis… Ninguém fazia corpo mole, ninguém exagerava na dose. O único objetivo dessas pessoas era alcançar os resultados necessários para viver numa sociedade ideal.
O curioso é que os únicos elementos podres ali eram aqueles que tinham se mantido livres do gás. Embora ainda muito livres para aprontar qualquer coisa com as ovelhas, o repúdio frio e justo delas começa a realmente machucar o comparativamente frágil emocional humano normal.
O bom exemplo tem um poder incrível. Cada vez mais lobos se submetem ao gás por não aguentarem a sensação de serem atrasos para aquela sociedade ideal. Alguns até se submetem voluntariamente a ocupar as vazias prisões daquela sociedade. O mundo caminhava a passos largos para um estado utópico de paz e segurança.
Você deve estar se perguntando se eu estou falando do mesmo mundo no qual você vive. E sua questão é válida. O problema daquela sociedade sem emoções era justamente conseguir o que queria.
Os sonhos e desejos humanos que eles herdaram foram criados numa época onde era basicamente impossível realizá-los. Tínhamos objetivos e mais objetivos para ocupar mais de um século de trabalho duro deles. Só que eventualmente eles conseguiram. Os raros lobos ainda vivos tinham se afastado da civilização. Tinha acabado oficialmente qualquer possibilidade de problemas naquela sociedade.
Ninguém estava feliz, ninguém mais tinha essa capacidade. Trabalhar por anos e anos e não ter como aproveitar os louros dessa vitória é algo complicado. Tão complicado que a nova humanidade simplesmente não sabia mais o que fazer. Lutaram para conseguir um mundo ideal, mas não tinham o que fazer com ele.
Até o Dia da Explosão. O que ninguém tinha imaginado é que não éramos uma sociedade de pessoas boas e justas. Éramos bilhões de psicopatas tentando se encaixar numa sociedade. O estado de normalidade escondia todo mundo à plena vista. Bastou uma das ovelhas perder o controle e tudo desabou.
Rápido. Deixava de ser gripe e virava ebola. Até onde eu sei, foi um pai de família que perdeu a cabeça depois de uma de suas crianças trocar de canal no meio de um filme. Ao invés de pedir educadamente para retornar a atração desejada e ser atendido, como sempre acontecera, daquela vez ele simplesmente se levantou, pegou uma faca na cozinha e estripou todos os outros habitantes da casa.
Pelo menos é isso que está noticiado na imprensa deles. Não achei nenhum indício de crime cometido por ovelha antes desse. Mas depois… Nas primeiras vinte e quatro horas pelo menos um décimo das pessoas expostas à notícia repetiram o ato.
E o crescimento continuou, exponencial. Éramos ideais quatro bilhões de humanos há duas décadas atrás. Somos algumas centenas de milhões hoje. Não foi uma guerra, foi um massacre. Hoje sabemos que o efeito do gás, apesar de hereditário, dilui-se com o tempo. Talvez tenha sido isso, mas basta estudar a história da humanidade antes da grande contaminação para entender que essa não é a nossa forma natural de lidar com as coisas.
Cada dia mais nascem pessoas livres do efeito. Os últimos fora de controle estão sendo presos ou se matando. Temos toda a capacidade de recuperar nossa sociedade, mas não podemos fazer isso se não entendermos nossa natureza. Não precisamos mais do gás, aliás, nunca precisamos. Por favor não façam essa irresponsabilidade de pulverizar mais uma vez esse veneno nos sobreviventes. Nunca é tão fácil.
Espero que meu apelo chegue a tempo.
Ass: Lobo solitário.