Des Contos: Ozon – Parte 1.

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O compartimento parecia ainda menor com a débil iluminação avermelhada. Heitor havia desistido de lutar contra os solavancos que desafiavam seu equilíbrio e encontrara porto seguro numa das frias colunas de sustentação locais. O chacoalhar da carga que preenchia o ambiente com uma incômoda sinfonia de notas metálicas só perdia para o que percorria seu corpo. Fora da acanhada nave classe XM, uma gigantesca e raivosa tempestade magnética que parecia querer rasgar as fundações do espaço e tempo sob suas espirais iluminadas.

Pela porta aberta da cabine de comando, ainda mais escura, observava o piloto compenetrado num painel de instrumentos. O ex-militar que insistia em ser tratado pela sua função ao invés do nome o trouxera até este ponto. Ele tinha as feições castigadas pelo tempo de serviço, mas parecia imune às condições adversas da viagem; olhar fixo, respiração suspensa e músculos retesados como se fosse um predador à espera de uma oportunidade.

HEITOR: Precisa mesmo desligar o aquecimento?
PILOTO: Se você não quer explodir, precisa. E fica quieto.

Heitor resigna-se ao comando e esconde o que pode do rosto dentro do macacão térmico. Já desobedecera a ordem de ficar preso ao seu assento para poder observar pelo painel frontal a dança cósmica de gases incandescentes provocada pela Grande Tempestade de Ozon: provavelmente a maior e mais duradoura encontrada depois de milênios de exploração espacial. Apesar de exaustivamente luminografada para o deleite visual de gerações e mais gerações, nada se comparava à sensação de presenciá-la in loco.

Encantado, mal teve tempo de reagir à sirene. O piloto, no entanto, só estava lá pelo seu apurado senso de reação. Aproveitando uma das raras janelas de oportunidade permitidas pela fúria destrutiva do fenômeno natural, dispara a nave em modo de curva espacial. O destino era o planeta Ozon C; sistema estelar inteiro nomeado em homenagem à tempestade, e não o contrário como esperado.

Os primeiros segundos de qualquer curva espacial não contam com estabilização gravitacional. Lição aprendida: Heitor sente os pés desconectados do chão como se subitamente teto e chão trocassem de lugar. E entre eles uma barra metálica com a qual sua cabeça desprotegida acerta violentamente. Depois disso, silêncio e escuridão.

A música preenche sua mente ao mesmo tempo que sente o ar fazendo o mesmo em seus pulmões. Em poucos acordes percebe se tratar de mais uma das sinfonias elatrianas, que aprendera a detestar nas últimas semanas em companhia do Piloto. A visão retorna, gradativamente menos turva. O ambiente agora bem mais iluminado, seu corpo estirado sob uma superfície macia numa apertada baia de repouso. Um rosto conhecido o traz de volta à realidade.

PILOTO: Chega de descansar.
HEITOR: O que aconteceu?
PILOTO: Você não obedeceu minhas ordens, foi isso o que aconteceu. Você teve sorte que foi só uma pancada, nessa nave não tem unidade médica.

Heitor relembra o momento do impacto a dor no alto da cabeça surge instantaneamente. Ele coloca a mão por sobre a têmpora esquerda, sentindo o inchaço e algo parecido com pontos. Parecido.

PILOTO: Faz tempo que eu não faço isso. Quando você chegar, pede para uma das latas arrumar.
VOZ ROBÓTICA: Destino Ozon C em aproximadamente três minutos.
PILOTO: Vai, arruma suas coisas que vai ser um pouso rápido. A janela não vai ficar me esperando…
HEITOR: Ok…

O Piloto começa seu caminho de volta à cabine de comando. Heitor vacila por alguns segundos, mas um mal educado grito de incentivo do Piloto afia seus movimentos. Com alguma dificuldade, desce de sua cama manchada de sangue e começa a reunir os últimos pertences espalhados pelo compartimento habitacional da nave.

Poucos minutos depois, já devidamente seguro em seu assento, observa pela primeira vez um dos planetas mais isolados do universo conhecido. Ozon C, como sugere o nome, é o terceiro planeta do sistema ancorado pela anã-branca Ozon. Orbitando uma estrela moribunda, Ozon C não exibe nada além de uma espessa camada de gelo uma débil iluminação esbranquiçada que destaca sua curiosa geografia. Durante a descida, Heitor consegue perceber a imensidão da cadeia de montanhas que corta o planeta pelo seu equador e a ainda mais colossal sombra que projeta sobre a superfície.

Logo todo o cenário se vê engolfado pela escuridão, o único ponto de referência são as luzes intermitentes vindas do solo, indicando o local de pouso. Protegida pelo paredão de rocha e gelo dos fortes ventos que cortam os céus dali, a nave faz sua aproximação final de forma tranquila. Bem menos plácida é a reação do Piloto ao finalmente tocar a pista.

PILOTO: Cadê as latas? CADÊ AS LATAS?
HEITOR: Algum conselho?
PILOTO: Só um… Não adianta se arrepender. Agora COLOCA O CAPACETE! Vai! Vai!

Heitor pega a última parte de seu traje e respira fundo. Nunca gostou muito ficar fechado nesses macacões, principalmente porque tudo parece mais confuso dentro deles, movimentos represados por espessas camadas de proteção termoradioativa e sentidos atordoados pela atmosfera artificial interna. A voz do Piloto dissolve-se em sons abafados que tenta decifrar sem muito sucesso.

PILOTO: … latas… velhas… atualiza desde… perder a janela… mato… olha… pariu!

Pela tela frontal, Heitor consegue ver luzes acendendo de forma sequencial, formando uma ponte no breu absoluto. À distância, nota algo parecido com faróis aproximando-se lentamente. Ao passar pelas luzes indicativas no chão, a forma de um veículo começa a se desenvolver. Largos pneus sustentando um grande retângulo metálico desembocando em uma pequena cabine vazia. A visão de Heitor é eclipsada momentaneamente pelo Piloto, que corre através do compartimento para chegar até um painel de comando auxiliar. O homem parece extremamente impaciente, gritando alguns impropérios reconhecíveis até mesmo debaixo de dez centímetros de carboisolantes.

Reverberando pelo ambiente, o som do engate é seguido por uma sirene.

PILOTO: … vai… carga… cuidado… sorte!

O apressado condutor corre de volta para sala de comando, a porta entre as duas áreas fecha-se. Lentamente, uma das paredes do compartimento de carga diretamente à frente de Heitor começa a deslizar para cima. Do outro lado, um banco vazio como único ponto de interesse. Esteiras começam a movimentar as caixas rumo ao que parece ser outro compartimento de carga.

Heitor olha para a pequena janela que o separa do Piloto. O Piloto faz um movimento brusco com as duas mãos, sugerindo que a carga humana faça o mesmo caminho da contida nas caixas. Heitor faz a travessia, senta-se no banco e tem certa dificuldade de fechar o cinto de segurança com trava manual ao invés da costumeira automatizada. Em menos de um minuto, toda a operação de transferência de carga estava finalizada.

Nova sirene, os compartimentos começam a se fechar. O coração de Heitor bate mais forte ao ver um último relance do Piloto ajustando-se novamente ao painel de comando. Sozinho com a carga no ambiente agora selado, consegue ouvir os sons de ignição da nave poucos segundos depois que começa a se movimentar. A realidade assenta em sua mente pela primeira vez em meses de ignorância seletiva, serão vinte anos sem ver mais nenhuma pessoa, ou mesmo qualquer forma de vida.

VOZ ROBÓTICA: Níveis de stress acima do aceitável em situação controlada. Administrando sedativo em 3…
HEITOR: Não!
VOZ ROBÓTICA: 2…
HEITOR: Eu disse que não! HG9… 3… B?
VOZ ROBÓTICA: Código de Controle incorreto. 1…
HEITOR: Nnn…

Continua na parte 2.

P.S.: Vou fazer em partes como um experimento. Sei que pouca gente vai se interessar por continuações. Mas… o dia que eu me importar, os terroristas vencem.

Para reclamar que não aconteceu nada, para dizer que prefere quando a surpresa não é parar no meio, ou mesmo para dizer que conhece algumas pessoas que deveriam ir para Ozon C: somir@desfavor.com

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