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A voz das ruas.

A voz das ruas.

| Somir | | 61 comentários em A voz das ruas.

Mais de 30 milhões de visualizações, 120 mil comentários no Youtube, algumas centenas de respostas e paródias em vídeo… Não sei o quanto fez sucesso no Brasil, mas lá fora foi algo de considerável impacto. Antes de ler o texto, vejam o vídeo a seguir:

Tenho a política de relativizar minhas opiniões quando o assunto não me afeta diretamente. Se minha reação natural foi de achar essa mulher uma fresca sem problemas de verdade na vida, de achar que se depois de 10 horas andando numa cidade como Nova York foi só isso que ela conseguiu é porque o problema que ela relata é desprezível; bom, eu tenho direito à minha opinião.

Mas não é o meu calo sendo apertado. Por maior que seja a capacidade de abstração, não é um problema que eu vá vivenciar na prática. De onde eu enxergo a situação, escutar alguns bons-dias aleatórios não parece merecer a mínima preocupação. Talvez para quem lide com esse tipo de assédio diariamente a coisa vá acumulando ao ponto de se tornar insuportável.

Talvez. Que as mulheres lendo este texto me ajudem a ter uma visão mais abrangente do caso: é mesmo tão horrível? Lembrando que a moça do vídeo pode editar o que achou pior e conseguiu no máximo um cara estranho a seguindo em silêncio (e em plena vista) por cinco minutos. Por mais que seja sim bizarro e obviamente incômodo, na escala geral das coisas parece tão pouco… mas, novamente, não é o meu calo.

O que me deixou mais incomodado no vídeo foi a forma como o seguidor maluco e os caras que falaram meros “ois” acabaram num mesmo pacote de assediadores. Sem distinção. Aparentemente dirigir-se à uma mulher estranha já é o suficiente para considerarem uma invasão imperdoável à sua liberdade pessoal.

Peraí… menos. Num mundo ideal só seríamos interpelados por pessoas interessantes e atraentes, mas o mundo ideal não existe. Algumas mulheres mais corajosas assumem que o grau de ofensa é inversamente proporcional à beleza do assediador, mas a maioria prefere manter a presunção de assédio é ruim independentemente de quem o faz. A verdade é quem passa a cantada pode ser nojento ou apenas ‘muito espontâneo’ de acordo com o quão atraente é. As mulheres provavelmente mentem sobre isso por medo de serem vistas como superficiais ou mesmo promíscuas…

E sim, mais uma vez, não é o meu calo: eu posso ser visto como superficial e/ou promíscuo sem medo de represálias sociais. Entendo por que as mulheres se utilizam desse artifício, mas é importante ressaltar como na sanha de manter as aparências, aberrações como o vídeo acima podem surgir. É quando se mistura algo chato como levar cantada de homem feio/estranho/sem noção com algo aberrante como ser vítima de assédio sexual.

Não é a mesma coisa. O “oi” de estranhos não merece resposta ou sorriso automáticos, é claro, mas há algo de errado com quem se sente violado por isso. Vivemos em sociedade e interação com outros seres humanos é algo esperado. Ainda mais quando se tem (ou se é) algo desejável. Acredito que mulheres nunca gostaram de homem escroto que fala obscenidades para elas nas ruas, mas quando o ser humano não colocava ‘rede’ na frente de ‘social’, havia uma diferença bem mais acentuada entre quem buscava atenção de forma educada e quem gritava impropérios.

Gerações de pessoas cada vez mais acostumadas a bloquear os outros no seu meio principal de interação social parecem cada vez mais ariscas ao conceito de interação. Se não estiver na sua lista, nem oi pode falar! Impressionante que quanto mais amigos na internet, mais estranhos nas ruas. Pessoas se comunicam pela primeira vez de várias formas diferentes, e algumas delas não são tão ruins assim.

Falta o bom senso de pensar que o cidadão poderia ter dito todo tipo de barbaridade, mas escolheu desejar um bom dia. Repito que mulher nenhuma é obrigada a responder de forma positiva ao contato de um estranho, mas saber traçar a linha entre incômodo e abuso é muito importante! Até para viver uma vida mais tranquila, sem ficar desconfiando da própria sombra a cada esquina.

Estamos ficando mimados com tantas ferramentas para aproximar e afastar pessoas pela internet. E some-se a isso a cultura das minorias que se alastra descontroladamente pela sociedade, temos cada vez mais gente acreditando ser intocável, achando que o mundo real deveria ver com o botão ‘bloquear’ para tudo que as incomoda. Na racionalização desse comportamento infantilóide surge o exagero sobre a intenção do outro.

Os outros são machistas, racistas, intolerantes… tudo o que corrobore com o desejo de se cercar apenas de quem lhe traz conforto. Desafiar a auto-imagem doentia dessa gente com um ‘bom dia’ é equivalente a uma estupro! “Como ousam não me permitir na vida real as mesmas facilidades da vida virtual?”

Eu sei que na prática é bem infrutífero tentar se aproximar de uma mulher que não está aberta a conhecer novas pessoas e acho que quem fica pentelhando mulher na rua é um ser sem noção, mas a vida real é muito mais complexa do que curtir ou não uma postagem: existem graus. Acredito que o comportamento do cara que a seguiu deva ser corrigido, mas dos que tentaram em vão atrair sua atenção? Oras, isso realmente torna a vida de uma mulher insuportável?

E não, a resposta dessa pergunta não cabe só na dicotomia entre curtir e descurtir. A internet nos deixa viciados em ‘sim’ e ‘não’ como respostas válidas para qualquer questão. É como se a linguagem de programação usada em sites e aplicativos estivesse vazando lentamente para dentro dos cérebros humanos. Zeros ou uns, amei ou odiei.

Mas não é só disso que eu quero falar hoje: tem a cereja do bolo. Sabem o que está causando a maior confusão nesse vídeo? A maioria esmagadora dos homens que a assediaram eram negros ou latinos! A guerra para ser mais vítima é tão disputada que agora a mulher do vídeo e sua entidade estão sendo atacadas por perpetuar estereótipos racistas.

Lembram que não tem mais relativização? Que o único calo que existe é o próprio? Sabe-se lá se era a intenção dela criticar negros e latinos, mas é isso que a turma ‘sou mais vítima que você’ enxergou. E é isso que colou… não tem a opção “foi uma coincidência” ou “na verdade os homens mais pobres que fazem isso”, só tem a opção de vítima ou opressor.

E ela passou de vítima a opressora. Adoro quando isso acontece. Provam do próprio veneno. Queria fazer todos os homens parecerem monstros tarados e sem controle, acabou com presunção de racista! Na verdade ela mesmo se colocou nessa armadilha: foi filmar em bairro pobre para aumentar a probabilidade de escutar barbaridades, acabou filmando a população mais comum nesses bairros.

Gente menos educada é mais abusada, mulheres nessas comunidades são menos intolerantes a cantadas de rua… Ela foi lá justamente para conseguir material para o vídeo. E é justamente aqui que nem o argumento do ‘calo alheio’ pode protegê-la: sabia o que estava fazendo e enlameou sim mais ainda a imagem de outras minorias só para tentar se provar mais vítima que os outros.

É muito bom quando o mundo dá um jeito de se corrigir. Eu começo a ver uma luz no fim do túnel, e não porque a humanidade está ficando mais inteligente. Quando os intocáveis se tocam, é acusação para todo o lado e gente desesperada para não perder o apoio de seus defensores. Com o meio-termo tornando-se obsoleto, a indústria do politicamente correto começa a andar sobre um fio cada vez mais fino.

Não basta ser vítima, tem que ser MAIS vítima que o outro. E o espaço disponível sob os holofotes é cada vez mais disputado. Argumentos progressivamente mais apelativos e exagerados, pessoas mais e mais dispostas a pegar pesado para garantir seus quinze minutos de fama oprimida!

Eles vão se pegar! E nós vamos assistir de camarote. Isso é emblemático e já está virando tática para quem não aguenta mais essa cultura de vitimização. Encontrar o opressor no oprimido tem resultados frequentemente hilários. Não duvide que o primeiro a mencionar que só homens negros e latinos apareciam no vídeo era um troll.

A donzela em perigo do vídeo tentou passar a perna na parcela mais pobre da população de sua cidade e acabou caindo de bunda no chão ela mesma. Aliás, essa frase explica basicamente tudo o que eu acabei de escrever… vitimização é passar a perna em si mesmo.

Para dizer que o seu calo dói muito com essas cantadas, para dizer que esse povo de Nova Iorque é fraquinho, ou mesmo para dizer qual público eu oprimi dessa vez: somir@desfavor.com


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